Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA

A reportagem divulgada pelo último número da revista Veja, provocativamente intitulada “Farra da Antropologia oportunista”, acarretou uma ampla e profunda indignação entre os antropólogos, especialmente aqueles que pesquisam e trabalham com temas relacionados aos povos indígenas. Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos (como o de que menos de 10% das terras estariam livres para usos econômicos, pois 90% estariam em mãos de indígenas, quilombolas e unidades ambientais!!!) conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos a definição de terras indígenas.

Afirmações como a de que laudos e perícias seriam encomendados pela FUNAI a antropólogos das ONGs e pagos em função do número de indígenas e terras “identificadas” (!) são obviamente falsas e irresponsáveis. As perícias são contratações realizadas pelos juízes visando subsidiar técnica e cientificamente os casos em exame, como quaisquer out ras perícias usuais em procedimentos legais. Para isto o juiz seleciona currículos e se apóia na experiência da PGR e em consultas a ABA para a indicação de profissionais habilitados. Quando a FUNAI seleciona antropólogos para trabalhos antropológicos o faz seguindo os procedimentos e cautelas da administração pública. Os profissionais que realizam tais tarefas foram todos formados e treinados nas universidades e programas de pós-graduação existentes no país, como parte integrante do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subalternizadas e marginalizadas.

Não há qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diver sas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Subtítulos como “os novos canibais”, “macumbeiros de cocar”, “teatrinho na praia”, “made in Paraguai”,  “os carambolas”, explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas. Enquanto nas criticas aos antropólogos raramente são mencionados nomes (possivelmente para não gerar demandas por direito de resposta), para os indígenas o tratamento ultrajante é na maioria das vezes individualizado e a pessoa agredida abertamente identificada. Algumas vezes até isto vem acompanhado de foto.

A linguagem utilizada é unicamente acusatória, servindo-se extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito. As diversas situações abordadas foram tratadas com extrema superficialidade, as descrições de fatos assim como a colocação de adjetivos ocorreram sempre de modo totalmente genérico e descontextualizado, sem qualquer indicação de fontes. Um dos antropólogos citado como supostamente endossando o ponto de vista dos autores da reportagem afirmou taxativamente que não concorda e jamais disse o que a revista lhe atribuiu, considerando a matéria “repugnante”.  O outro, que foi presidente da FUNAI por 4 anos, critica duramente a matéria e destaca igualmente que a citação dele feita corresponde a “uma frase impronunciada” e de “sentido desvirtuante” de sua própria visão. Como comenta ironicamente o jornalista Luciano Martins Costa, na edição de 03-05-2010 do Observatório da Imprensa, “Veja acaba de inventar a reserva de frases manipuladas”.

A agressão sofrida pelos antropólogos não é de maneira alguma nova nem os personagens envolvidos são desconhecidos. Um breve sobrevôo dos últimos anos evidencia isto. O antropólogo Stephen Baines em 2006 concedeu uma longa entrevista a Veja sobre os índios Waimiri-Atroari, população sobre a qual escrevera anos antes sua tese de doutoramento. A matéria não saiu, mas poucos meses depois, uma reportagem intitulada “Os Falsos Índios”, publicada em 29 de março de 2006, defendendo claramente os interesses das grandes mineradoras e empresas hidroelétricas em terras indígenas, inverteu de maneira grosseira as declarações do antropólogo (pg. 87).  Apesar dos insistentes pedidos do antropólogo para retificação, sua carta de esclarecimento jamais foi publicada pela revista. O autor da entrevista não publicada e da reportagem era o Sr. Leonardo Coutinho, um dos autores da matéria divulgada na última semana pelo mesmo meio de comunicação.

Em 14-03-2007, na edição 1999, entre as pgs. 56 e 58, uma nova invectiva contra os indígenas foi realizada pela Veja, agora visando o povo Guarani e tendo como título “Made in Paraguai – A FUNAI tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome”. O autor era José Edward, parceiro de Leonardo Coutinho, na matéria citada no parágrafo anterior. Curiosamente um subtítulo foi repetido na matéria da semana passada – “Made In Paraguay”.  O então presidente da ABA, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, solicitou o direito de resposta e encaminhou um texto à revista, que nem sequer lhe respondeu.

Poucos meses depois a revista Veja, em sua edição 2021, voltou à carga com grande sensacionalismo. A matéria de 15-08-2007 era intitulada “Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a FUNAI nada faz para impedir o infanticídio” (pgs. 104-106). O subtítulo diz explicitamente que o infanticídio não teria sido abandonado pelos indígenas em razão do “apoio de antropólogos e a tolerância da FUNAI.” A matéria novamente foi assinada pelo mesmo Leonardo Coutinho. Novamente o protesto da ABA foi ignorado pela revista e pode circular apenas através do site da entidade.

Em suma, jornalismo opinativo não pode significar um exercício impune da mentira nem práticas sistemáticas de detratação sem admissão de di reito de resposta. O mérito de uma opinião decorre de informação qualificada, de isenção e equilíbrio. Ao menos no que concerne aos indígenas as matérias elaboradas pela Veja, apenas requentam informações velhas, descontextualizadas e superficiais, assumindo as características de uma campanha, orquestrada sempre pelos mesmos figurantes, que procuram pela reiteração inculcar posturas preconceituosas na opinião pública.

No acima citado comentário do Observatório da Imprensa o jornalista Luciano Martins Costa aprendeu muito bem e expôs sinteticamente o argumento central da revista no que concerne a assuntos indígenas: “A revista afirma que existe uma organização altamente articulada que se dedica a congelar grandes fatias do território nacional, formada por organizações não governamentais e apoiada por antropólogos. Essa suposta “indústria da demarcação” seria a grande ameaça ao futuro do Brasil.” Este é o argumento constante que reúne não só a matéria da semana passada, ma s as intervenções anteriores da revista sobre o tema. Os elos de continuidade fazem lembrar uma verdadeira campanha.

Numa análise minuciosa desta revista, realizada em seu site, o jornalista Luis Nassif fala de uma perigosa proximidade entre lobistas e repórteres nas revistas classificadas como do estilo “neocon”. A presença de “reporteres de dossier” é uma outra característica deste tipo de revista. À luz destes comentários caberia atentar para a lista de situações onde a condição de indígenas é sistematicamente questionada pela revista. Aí aparecem os Anacés, que vivem no município de São Gonçalo do Amarante (onde está o porto de Pecem, no Ceará); os Guarani-M’bià, confrontados por uma proposta do mega-investidor Eike Batista de construção de um grande porto em Peruíbe, São Paulo; e os mesmos Guaranis de Morro dos Cavalos (SC), que lutam contra interesses poderosos, sendo qualificados como “paraguaios” (tal como, aliás, os seus parentes Kayowá e Nandevá do Mato G rosso do Sul, em confronto com o agro-negócio pelo reconhecimento de suas terras).

Como o objetivo último é enfraquecer os direitos indígenas (que naturalmente se materializam em disputas concretas muitas vezes com poderosos interesses privados), os alvos centrais destes ataques tornam-se os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados (a matéria cita o Conselho Indigenista Missionário/CIMI por várias vezes e sempre de forma igualmente desrespeitosa e inadequada).

É neste sentido que a CAI vem expressar sua posição quanto a necessidade de uma responsabilização legal dos praticantes de tal jornalismo, processando-os por danos morais e difamação. Neste momento a Presidência da ABA, está em conjunto com seus assessores no campo jurídico, visando definir a estratégia processual de intervenção a seguir.

Dada a assimetria de recursos existentes, contamos com a mobilização dos antropólogos e de todos que se preocupam com a defesa dos direitos indígenas para , através de sites, listas na Internet, discussões e publicações variadas, vir a contribuir para o esclarecimento da opinião pública, anulando a ação nefasta das matérias mentirosas acima mencionadas. Que não devem ser vistas como episódios isolados, mas como manifestações de um poder abusivo que pretende inviabilizar o cumprimento de direitos constitucionais, abafando as vozes das coletividades subalternizadas e cerceando o livre debate e a reflexão dos cidadãos. No que toca aos indígenas em especial a Veja tem exercitado com inteira impunidade o direito de desinformar a opinião pública, realimentar velhos estigmas e preconceitos, e inculcar argumentos de encomenda que não resistem a qualquer exame ou discussão.

João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI

Comments (2)

  1. Quero expressar minha opinião a cerca da reportagem realizada pela Veja. Eu seria leviana se tecesse considerações sobre fatos que desconheço. Contudo, sobre os Borari e, o Sr. Odair José, posso afirmar com conhecimento de causa que, a matéria, apesar de superficial, é absolutamente verdadeira. Depoimento do suposto Cacique Odair José prestado por escrito ao MPF, sua narrativa é toda entrecortada, como se não soubesse se expressar na língua portuguesa. Contudo, tenho vídeos onde ele fala fluentemente, ou seja é um farsante. Seus familiares afirmam que, não descendem de etnia indígena e, seus antepassados são originários de Belém e, até do Rio Grande do Norte. Cita-se ainda que, onze das quatorze comunidades que compõem a Gleba Nova Olinda I onde pretende-se criar a terra indígena Maró para abrigar a suposta etnia Borari, são absolutamente contrárias a sua criação, por conhecê-los e, saber de suas origens. Aliás, a área pretendida, foi colonizada por Maranhenses, Piauienses, Cearenses, pessoas vindas do Mato Grosso e, até do Paraguai e, todas as comunidades da gleba, sofreram o mesmo processo de indução e, até ameaças para se auto-declararem indígenas, tendo estas se recusado a fazê-lo a excessão de três comunidades. Estes fatos, são de conhecimento público pois, estão registrados em boletins de ocorrência na delegacia de Polícia em Santarém e, foram objeto de ampla cobertura jornalística local. Menciona-se ainda que, recente pesquisa bibliográfica aponta para o fato desta etnia “Borari” nunca ter existido. Informo-lhes ainda que, este não é o único caso em nossa região. Só em Santarém, pretendem criar doze áreas indígenas, para abrigar etnias extintas e, outras que nunca habitaram este município como; Tupinambá, Cara Preta e Munduruku. Aliás, próximo a Santarém, estão sendo criadas duas terras indígenas Munduruku que, estão sendo contestadas pelo próprio Instituto Chico Mendes, por estarem sendo criadas por processo supostamente fraudulento. Dessa forma, seria prudente não fazer uma defesa generalizada desses processos de auto-reconhecimento, para não incorrerem no erro de estarem defendendo, impostores, farsantes e espertalhões.

  2. Bom dia, com todo respeito ao artigo publicado de impugnação, quero dizer que grande parte da população brasileira também impugna a forma como nos últimos anos tem acontecido a demarcação de terras indígenas e agradecer a revista veja pelo trabalho de seriedade e de tão importância no momento atual do Bum indígena.
    Sei que existem pessoas serias e picaretas como em toda profissão, mas gostaria que o Sr desse um estudo feito por um antropólogo qualquer que tenha sido negativo a confirmação de área indígena. Pois já pesquisei muito e não encontrei. Fico me perguntando: será que todas, todas as áreas requeridas são realmente povoadas por índios ou todo antropólogo e ideologista)
    Tenho conhecimento de lugares citados nesta reportagem que são uma farsa sim. De lugares que sempre foram povoados por comunidades tradicionais e do dia para noite chegou um padre, ensinou alguns a dançarem e os convenceu que se auto declarar índio hoje em dia, que era lindo ser índio e defender a floresta, que era fácil conseguir alguns milhões de hectares e que traria retornos e segurança para o resto da vida, como cesta básica, saúde, o não pagamento de impostos, varias ONGs financiando a preservação da floresta, vários fundos para isto e etc.
    Tenho realmente pena destas pessoas que se deixam levar por um sonho de fantasia que logo La na frente vai acabar, pois sabemos bem que as coisas não acontecem assim. Vemos ai verdadeiros índios muitas vezes batalhando pela ida da Funasa em suas tribos, muitos morrendo, muitos que não tem nada para comer a não ser farinha, pois o governo não incentive eles a plantarem. Como sempre falo, não basta dar um mundo de terras nem a índios, nem a comunidades, nem assentamentos, nem a ninguém se não se der subsídios para produzirem. A terra não produz por conta própria.
    Bem, o que me assusta e que esta fabrica de índios que o Brasil desenvolveu so tira a oportunidade de verdadeiros índios e de comunidades tradicionais muitas vezes que são expulsas de locais que estão a séculos pela criação de uma reserva que não creio terem os melhores critérios para avaliação se são ou não área de população indígena.
    E necessário uma mudança nos critérios adotados para a avaliação de um pedido de reserva indígena, pois acredito sim que os interesses internacionais são a força maior para esta pouca vergonha que esta acontecendo no nossos pais. Acorda Brasil !

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