Por Raquel Rolnik*
Sexta-feira passada, escrevi no meu blog sobre a polêmica da presença da Polícia Militar no campus da USP, que vem gerando discussões e manifestações desde que três alunos da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) foram detidos no pátio da faculdade. Entre assembleias confusas e ocupações de prédios, o ápice da crise se deu na madrugada de terça-feira (08), quando a PM fez a reintegração de posse da Reitoria, levando presos 73 estudantes que ocupavam o prédio em protesto contra o convênio da USP com a PM.
Um policial aponta a arma para uma estudante de braços levantados, a tropa de choque entra no prédio e arromba portas (mesmo depois de a polícia já estar lá dentro), sem deixar ninguém mais entrar (nem a imprensa, diga-se de passagem), nem sair, tudo com muita truculência (leia o relato de uma aluna que não estava na ocupação, mas estava presente) – estas imagens não diferem muito do que já vemos a PM fazer na cidade, no Estado e no país.
A diferença é que, desde os anos 1980 até hoje, a chamada “autonomia” da USP constituiu uma espécie de blindagem seletiva às mazelas da cidade, inclusive em relação à repressão policial. Circulação restrita, portões fechados nos fins de semana, impossibilidade de localização de uma estação de metrô dentro do campus são algumas das marcas da segregação da universidade em relação à cidade.
Agora, em nome da segurança – aliás, a mesma que justifica as restrições de circulação e a segregação – rompe-se o bloqueio e, sob aplausos dos meios de comunicação, a polícia entra em cena para acabar com a farra de estudantes baderneiros. Afinal de contas, como declarou o governador Geraldo Alckmin ontem à imprensa, “a lei é para todos”.
Vale lembrar ao governador que nossa legalidade não é feita apenas de infrações penais, mas também de direitos. Isso vale dentro e fora da USP. Ou seja, são inaceitáveis, igualmente, as desocupações violentas em favelas, os despejos forçados de milhares de pessoas sem teto e sem terra, as abordagens humilhantes a moradores de rua, as execuções sumárias, entre tantas outras situações cujos agentes são a mesma PM que está hoje na universidade.
Os eventos da última terça-feira revelam também, com todas as tintas, a falência do diálogo na USP. Esse foi um dos pontos que destaquei no meu primeiro texto sobre esse assunto: a gestão da USP precisa se democratizar. Não dá mais pra ter um processo decisório baseado apenas na hierarquia da carreira acadêmica, ignorando os distintos segmentos que compõem a universidade, e sem gerar canais de expressão destes segmentos. Ontem o governador Geraldo Alckmin disse ainda que “estes alunos precisam ter aula de democracia”. Pelo visto, o próprio governo e a Reitoria também precisam se atualizar sobre o tema e se matricular nesse curso.
No fundo, o que o Governo do Estado e a Reitoria conseguiram foi dar mais voz e força a um grupo que é minoritário entre os estudantes da USP. Entraram no jogo da radicalização, da violência e do acirramento do conflito, sem esforço de construção de uma estratégia política menos tosca, que efetivamente expressasse a vontade das maiorias, que não foram consultadas. Certamente, se o fossem, não estariam a favor da forma como foi feita a ação de ontem, nem tampouco da atitude dos alunos que ocuparam a Reitoria…
Por fim, diante de alguns comentários que li e ouvi por aí, é importante afirmar que é inaceitável a desqualificação que alguns fazem dos alunos e professores da FFLCH e do conhecimento que se produz naquela faculdade. A FFLCH é um lugar que, historicamente, produziu e continua produzindo pensamento crítico, fundamental não só para a USP e para São Paulo, mas para um país que deseja incluir na agenda de seu crescimento econômico algo mais do que possibilitar a todos comprar mais geladeiras, carros e roupas iguais às das celebridades.
*Raquel Rolnik é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.