Renato Santana, Cimi (Brasília)
Galdino Pataxó Hã Hã Hãe estava em Brasília (DF) em luta pelas terras originárias de seu povo quando foi queimado e morto, na madrugada de 20 de abril de 1997, por cinco garotos de classe média alta – um deles filho de juiz Federal. O assassinato chocou a opinião pública e mostrou ao mundo a situação social a que estavam expostos os índios brasileiros.
Na ocasião, o indígena travava intenso diálogo com o Judiciário por conta de ação envolvendo a retirada dos latifundiários invasores do território originário e que desde 1982 estava parada, sem decisão.
Quase 15 anos depois, parentes de Galdino ainda brigam pela finalização da mesma ação cuja autoria é da Fundação Nacional do Índio (Funai) e trata da nulidade de títulos imobiliários dos invasores da Terra Indígena (TI) Caramuru – Catarina Paraguassu, nos municípios de Camacã, Pau-Brasil e Itajú do Colônia, sul da Bahia.
Incluída na pauta de reivindicações do acampamento da Jornada Nacional de Lutas da Via Campesina e da Assembleia Popular, instalado desde segunda-feira (23) ao lado do Ginásio Nilson Nelson (DF), a causa do povo Pataxó Hã hã hãe é para que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votem pela anulação dos títulos e que os invasores sejam retirados do território.
“Quem doou esses títulos tinha muito poder político”, conta o cacique Nailton Pataxó Hã hã hãe. Durante todo o século XX e início do XXI os interesses políticos fatiaram a área, então Reserva Caramuru, em latifúndios e pequenas propriedades – através de arrendamentos e títulos.
Desde o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão substituído pela Funai – ao Governo da Bahia, num período de quase 100 anos, desrespeitaram não apenas o território originário como também decisões do próprio Estado sobre a posse dos indígenas das terras.
Arrendamento: tragédia estatal
Recentes descobertas arqueológicas apontam para a presença indígena no território há, no mínimo, 620 anos – conforme aplicação de Carbono 14 em urna funerária descoberta na área da Reserva Caramuru. No entanto, o artefato apenas ressalta conclusões a que o Estado chegou ao início do século XX, por intermédio de um decreto de 20 de março de 1926.
Na ocasião o Governo da Bahia destinou 50 léguas quadradas – mais de 240 mil hectares – para a preservação de recursos florestais e para a proteção de índios Pataxó, Tupinambá e demais etnias lá encontradas. Apenas dez anos depois, em 1936, ocorreu a medição da área, já definida.
Tem início então uma sucessão de irregularidades, massacre de índios e roubo de território que perduram até os dias de hoje; o SPI passa a arrendar parte das terras destinadas aos indígenas. Além disso, outros invasores passam a invadir as terras.
Os povos originários esboçam resistência e conflitos são registrados. Ao final de um período que passou pelas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960, boa parte dos índios foram expulsos – sobretudo pelo medo da morte que atingira centenas deles – e outros permaneceram nas terras ocupadas tradicionalmente, mas em situação análoga a escravidão em serviços nos latifúndios dos invasores.
“Não podíamos nos assumir como índios. Quem assim fazia corria o risco de ser morto pelos invasores. Eles nos proibiam. Cresci sem poder me assumir como índia porque meus pais também não se assumiam. Éramos como escravos”, lembra Laura Pataxó Hã hã hãe. Acima dos 70 anos, a indígena afirma que a família sempre viveu nas áreas que compreendem o território.
Durante este processo, o governo baiano passa a emitir títulos imobiliários para os invasores do Território Indígena sob a alegação de que lá não viviam mais índios. O procedimento ocorreu até a década de 1980 – investigações, apresentadas na ação da Funai, constataram títulos imobiliários do Estado da Bahia.
Retomada: direito constitucional
Quando a área foi medida e definida pelo Estado vigorava a Constituição de 1934, cujo artigo 129 dizia: “Será respeitada a posse de terras aos silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Não foi assim que ocorreu e os indígenas expulsos se fixaram em cidades próximas a reserva ou partiram para Minas Gerais e São Paulo.
Nas cartas constitucionais posteriores a elaborada em 1934 (1937, 1946, 1967/69 e 1988) o dispositivo é mantido. Atrás do direito originário e legal, em 1975, um grupo de indígenas se reúne para organizar a retomada. Até que no Dia do Índio de 1982 o movimento ocorre e os Pataxó Hã hã hãe voltam para suas terras.
A diversidade de povos é característica inerente ao território tradicional Pataxó Hã hã hãe. Lá viviam os Pataxó, os Baenã, Sapuyá, os Kariri, os Kamakã e os Tupinambá. Todos convivem até hoje no território e apesar de reconhecerem suas etnias individuais, os indígenas se denominam Pataxó Hã hã hãe. “Eu e minha família somos Kariri Sapuyá, mas a luta pela terra é dos Pataxó Hã hã hãe. A colonização e o que sofremos depois determinou isso”, frisa a cacica Ilza.
O fato é que as tais 55 léguas quadradas estipuladas em 1926 se diluíram no caminhar da história e chegam a 1982 estipuladas em 54.105 mil hectares e deixa de ser reserva para se tornar Território Indígena Caramuru – Catarina Paraguassu, adequando-se à nova categoria estabelecida pela Constituição de 1988. Do total de hectares, 3 mil indígenas vivem hoje em menos da metade do território estipulado.
“Só permanecem na área os grandes latifundiários invasores. Os pequenos saíram todos e são esses que ficaram os mais poderosos, amigos ou parentes de políticos, que nos ameaçam de todas as formas”, diz cacique Gerson.
Retirada dos invasores: próximo passo
Os invasores desqualificam o relatório antropológico, ou qualquer outra prova, que ateste a ocupação tradicional e define a identificação e delimitação da área. Alegam que os índios nunca o ocuparam com “permanência efetiva” e que a posse nunca teve continuidade.
“Fomos expulsos, assassinados e escravizados. Até hoje qualquer movimentação nossa a polícia aparece com helicópteros, os pistoleiros agem”, ataca cacique Nailton. Outro argumento usado pelos invasores é que o Estado da Bahia arrendou terras pela ausência dos índios e por isso considerou o território devoluto.
O Supremo Tribunal Federal (STF), onde tramita a ação, pediu quatro perícias antropológicas. A última delas desconstrói todos os argumentos: os índios lá estão desde 1651; a presença dos Pataxó Hã hã hãe sempre foi permanente e secular em um território delimitado e claramente reconhecido – não eram nômades; tal vivência na terra nunca se interrompeu: mesmo com a crueldade dos invasores, muitos indígenas permaneceram na mata ou nas fazendas.
No STF, o julgamento da ação já começou e o relator do processo, o ex-ministro Eros Grau, entendeu que os índios estavam presentes na área muito antes da Constituição de 1967/69 e, portanto, votou pela nulidade dos títulos dos invasores. O julgamento será retomado em breve – com a apresentação do voto da ministra Carmem Lucia. Tinha sido interrompido por um pedido de vistas. O povo Pataxó Hã hã hãe agora espera que os ministros acompanhem o raciocínio de Eros Grau – mesmo que este já tenha se aposentado.
“É um desejo que temos ter a nossa terra de volta, sem nenhum invasor dentro ameaçando a comunidade e o futuro de nosso povo. Queremos sensibilizar os ministros, a sociedade. É um direito nosso e muitos já morreram nessa luta”, frisa cacique Nailton.
Terra: o cuidar indígena
O espaço é curto: 18 mil hectares frente aos 54 de direito. E é nesse pedaço diminuto do território que os Pataxó Hã hã hãe plantam um leque amplo e diversificado de gêneros alimentícios – sem o uso de agrotóxicos – e tiram diariamente 10 mil litros de leite, além de carne e cacau. Os invasores apostam na monocultura e no modelo do agronegócio.
“Doamos dois caminhões com legumes e frutas diários para o município de Pau Brasil. A cidade se transformou depois que os índios voltaram. Tanto que elegemos vereadores e recebemos grande apoio da sociedade”, destaca cacique Gerson.
A capacidade de produção dos indígenas é tamanha que fazem parte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Governo Federal, que escoa a produção da pequena agricultura. É da terra, portanto, que os Pataxó Hã hã hãe garantem a vida e o projeto de futuro.
Futuro, esse, que já é moldado por quem será liderança do povo. Caso de Aritana Pataxó Hã hã hãe. Seu pai, Goducha, era uma importante liderança quando morreu, em março deste ano, vítima da desassistência médica que assola povos indígenas no Brasil inteiro. “Desde criança acompanho retomadas e pretendo seguir na luta de meu pai e de meu povo”, diz.
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