“os que se manifestam pelo golpe e pela ditadura militar, são chamados de “pessoas de bem”, e as tropas estão ali para protegê-los de qualquer perigo que possa vir dos “terroristas” (…). Assim, os manifestantes respondem tirando fotos abraçados às forças da lei. Enquanto nas passeatas de luta por direitos, o que sobra é gás, bala e porrada para quem luta”.
Ainda que a conjuntura política brasileira esteja um pouco confusa, com um partido de trabalhadores no governo jogando contra os trabalhadores, as manifestações desse dia 16 de agosto aparecem como um momento único para pensar a luta de classes no Brasil. E, apesar do fato de muita gente sequer desconfiar o significado das palavras de ordem que carregam nos cartazes, há duas visões de mundo em batalha nesses dias de agosto.
Uma delas é a visão socialista. A busca por uma maneira de organizar a vida que não explore o outro, que não concentre os meios de produção e a riqueza nas mãos de poucos, que garanta o direito à saúde, educação, moradia, segurança, que se faça dentro de uma democracia participativa, na qual as pessoas possam decidir a vida, sem o acosso do dinheiro e da corrupção. Essa proposta certamente não está no governo, o qual os manifestantes do dia 16 querem derrubar. Mas, apesar disso, ela assoma, porque é contra isso que os que exigem o “fora PT” mais clamam.
A outra visão em disputa é a defesa de uma via autoritária do sistema capitalista vigente que, para existir, precisa da exploração do outro, da pobreza, da dor, da miséria, da exclusão. Um sistema que se baseia numa falsa democracia pois, nele, o que impera, é o poder do dinheiro. Só quem tem a grana é o que pode ser cidadão da polis.
Alguém pode dizer que não é nada disso, e que o que está em jogo é apenas o “fora Dilma” e o “fora PT”. Mas, em verdade, o fora Dilma é só a forma como esse debate aparece. A essência do conflito é o modo de organizar a vida, ou seja: capitalismo x socialismo.
Na esquerda brasileira há muito tempo que se sabe que o PT não representa o socialismo, apesar de os seus adversários tentarem – e de certa forma conseguirem – colar no partido de Lula essa etiqueta. E só acredita nisso quem não tem mesmo qualquer conhecimento sobre o que seja o socialismo. A verdade sobre o caminho que o PT escolheria estando no poder apareceu três meses depois da posse de Lula, em 2003, quando o governo iniciou a Reforma da Previdência, uma perversa retirada de direitos que inaugurou uma série de outros golpes nos trabalhadores. E, ainda que o PT tenha implantado um jamais visto processo de redução da pobreza, tudo se limitou ao campo das políticas públicas, sem qualquer passo além no rumo de uma outra forma de ser Estado.
É fato que o PT, durante o chamado “espetáculo do crescimento”, acabou com a fome crônica que havia no país (mais de 30 milhões de pessoas), criou universidades, aumentou significativamente o número de jovens na faculdade e deu possibilidade da casa própria para milhares de famílias. Mas, ao mesmo tempo, foi o tempo em que a fronteira agrícola expandiu de forma assustadora, com assassinatos de camponeses e indígenas, sem que o latifúndio fosse tocado. Pelo contrário, no segundo mandato de Dilma, o latifúndio até ganhou o Ministério da Agricultura. Também o sistema financeiro seguiu intacto, com os filhos diletos do capital comandando a economia brasileira, e a dívida pública sendo paga religiosamente, sem que a proposta de auditoria fosse levada à sério. Igualmente a indústria brasileira caiu de produção, com o crescimento vertiginoso da exportação de bens e até de comida. O Brasil aumentou o número de universidades, mas não investiu na ciência, preferindo o dependente caminho da inovação.
Assim, o PT jamais sequer se aproximou que qualquer proposta socialista, que dirá comunista, que é o momento do fim das classes e do estado. Não. O PT seguiu a mesma velha cartilha do capitalismo dependente, com a formulação de algumas políticas públicas que permitiram a entrada de milhões de pessoas na roda do consumo. Isso gerou o chamado neodesenvolvimentismo que, afinal, teve vida curta, com o governo agora aplicando um violento ajuste para poder manter os compromissos com os credores.
Mas, então, se o PT não é socialista e governa mais para os ricos que para os pobres, por que os velhos grupos de poder querem o seu fim? A resposta é simples: eles não querem concorrência.
Os grupos que comandam as marchas contra a corrupção são os mesmos que comandaram o país por décadas, enchendo os bolsos, e estão repeltos de gente manchada pelo que dizem repudiar: a corrupção. O ex-presidente FHC foi o responsável por um tremendo esquema criado pelas privatizações, que desmontou empresas públicas e vendeu o patrimônio nacional à preço de banana. O senador Ronaldo Caiado, líder da velha UDR (União Democrática Ruralista) , braço armado do latifúndio, já foi pego com trabalhadores escravos nas suas fazendas. O atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, também está envolvido em corrupção ativa. As igrejas que integram a bancada da Bíblia no Congresso insuflam o ódio e o fundamentalismo. É um circo de horrores. Para eles, derrubar o PT é apenas abrir caminho para suas próprias demandas. E, nelas, está, principalmente, a instituição de uma mão dura capaz e impedir o pensamento crítico e as reivindicações populares.
Não é sem razão que nas passeatas chamadas por esses grupos apareça um festival de bizarrice. Pessoas reivindicando o assassinato dos comunistas, outras chamando os milicos para um “intervenção temporária”, garotas com cartazes dizendo “não ao gênero”, tudo em nome de deus e da família. E se algum defensor do governo fala em pegar em armas, esse é acusado de “terrorista”. Ou seja, apontam o dedo para o outro sem ver a trava no próprio olho.
As bancadas da bala, da bíblia e do boi representam o pensamento mais atrasado que há no país e são elas as que têm dado a linha nos protestos. É uma corruptela conservadora do capitalismo que, ao mesmo tempo que quer garantir o acúmulo das riquezas, também pretende implantar o obscurantismo, num minotáurico sistema de lucro para alguns, misturado ao atraso mental. Assim, garantem um regime duro, sem perder as benesses do sistema. A proposta política é o aprofundamento da dependência econômica e uma ligação de vassalagem mais profunda com os países centrais. Não são à toa os cartazes escritos em inglês, enviando mensagens aos “mestres” estrangeiros. Nesse dia 16, por exemplo, circulava no facebook a mensagem: “Amigos, a ONU já autorizou a intervenção militar no Brasil. Tudo vai ficar bem”. Essa é a ideia.
Então, o discurso conservador, de morte ao comunismo (?) e pela mão-dura dos militares, tão igual ao do pré-golpe de 1964, é o que acabou levando as pessoas para a rua. Não que no meio delas não existam cidadãos de boa fé, que, contrários às políticas do governos, se somam – ingenuamente – aos delírios golpistas dos comandantes da oligarquia. Há os que verdadeiramente acreditam que o PT é comunista e vai levar o Brasil ao caos. Mas, mesmo assim, ainda que se possa entender o pensamento ingênuo, é grande o nível de violência que cabe dentro dos discursos.
Vai daí que voltamos a luta de classe. Marx dizia que a violência é a parteira da história e qualquer um que tenha estudado um mínimo da história da humanidade sabe disso. Os conflitos contra os interesses das classes empobrecidas sempre são eivados de violência por parte de quem detém o controle da força. E, mesmo nos confrontos mais sangrentos da humanidade, sempre há os que – sob o manto da servidão voluntária – se juntam aos poderosos contra os de sua própria classe, preferindo viver como escravo a ser livre.
No Brasil de 2015 estamos assim, caminhando entre três veredas. Numa está o conservadorismo mais primário que recrudesceu sua força, perdeu a vergonha, não se esconde, está nas ruas. Na outra está o governismo, de um conservadorismo não tão grotesco como o da oligarquia, que consiste em todo um conjunto de forças que não quer perder o espaço que garantiu no poder, e não arrisca buscar novos caminhos. E, por fim, na terceira rota vão os que conseguem sair da consciência ingênua, que fazem a crítica ao governo e que avançam na construção de um outro modo de organizar a vida. Nem o obscurantismo rural/religioso, que prega o golpe, nem o PT. Mas, essa é uma rota difícil, principalmente porque a direita tradicional conseguiu colar no PT o selo de “esquerda” e isso torna mais duro o processo de reconstrução de um espaço crítico e socialista.
Não bastasse isso, nos últimos dias pode-se perceber uma viragem na conduta do maior meio de comunicação de massa, a TV Globo, que “misteriosamente” parou de fomentar o golpe contra a presidenta Dilma. Isso pode significar que um grande acordo foi firmado, o que pode atrasar ainda mais as possibilidades de retomada do caminho pela esquerda, afinal, 98% do país recebe o sinal aberto da Globo e esse ainda é um poderoso instrumento de produção da mais-valia ideológica. Através das notícias, dos programas de entretenimento e das novelas, a ideologia produzida ofusca o pensamento crítico e consolida a ideia de que o mundo do consumo é melhor dos mundos, ainda que boa parte das gentes não tenha como entrar. E se estiver colado no governismo, a coisa piora.
Para os que durante uma vida inteira caminharam pela rota da esquerda, sem desviar o curso por conta de promessa socialdemocrata, a realidade é de luta e enfrentamento. Nesse dia 16, isso ficou patente. Quando as passeatas são de reivindicação de direitos ou contra os ataques das transnacionais ou do governo, a polícia é chamada para reprimir e golpear. Quando a manifestação é chamada pela oligarquia as ruas das grandes cidades são também tomadas pela polícia. Mas, nesse caso, os que se manifestam pelo golpe e pela ditadura militar, são chamados de “pessoas de bem”, e as tropas estão ali para protegê-los de qualquer perigo que possa vir dos “terroristas” (leia-se petistas ou qualquer um de camisa vermelha). Assim, os manifestantes respondem tirando fotos abraçados às forças da lei. Enquanto nas passeatas de luta por direitos, o que sobra é gás, bala e porrada para quem luta.
Retomando a tese inicial, a essência de tudo isso é, então, o modelo de organização da vida. E se não queremos nem uma ditadura, nem o PT, resta-nos seguir na luta, reconstituindo a difícil malha de uma força de esquerda capaz de oferecer, verdadeiramente, uma outra proposta para o país.
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