CIMI – Algum dia da sua vida você chegou a imaginar que a espiritualidade dos povos indígenas poderia ser comprada? Nos seus piores sonhos, pensou em pagar pelo trabalho de polinização que as abelhas realizam desde que o mundo como conhecemos hoje é mundo? Concebeu que uma paisagem teria um valor definido em uma bolsa de valores? Ou, ainda, acreditou que seria possível pagar pelos conhecimentos milenares de comunidades tradicionais, como os pescadores artesanais e as quebradeiras de coco?
Mesmo considerando que os povos do Sul global foram, desde o início dos processos de colonização, literalmente roubados pelos países do Norte – através da intensa exploração mineral, da extração de madeira e biodiversidade, da usurpação de conhecimentos tradicionais e da escravidão -, as perguntas acima soam como surreais e inimagináveis. Isso se deve ao fato de que essas situações colocadas remetem a uma fronteira extremamente radical do capitalismo: a financeirização da natureza – que, aliás, só seria possível através da privatização da natureza.
O pior é que essa “financeirização e privatização da natureza” tornou-se realidade. Isso mesmo, há vários anos os capitalistas trabalham no sentido de privatizar e financeirizar os elementos da natureza – água, terra, ar, fauna, flora, conhecimentos dos povos tradicionais – e as as funções essenciais – fotossíntese, retenção de carbono, polinização, transporte de sementes pelos pássaros – que a natureza realiza para garantir a própria vida na Terra, não somente de humanos, mas de todos os seres vivos.
Claro está que para os mercados mundiais, para quem o que importa é a maximização dos lucros, o comércio de serviços ambientais representa uma nova e promissora fonte de lucratividade.
No entanto, a imensa maioria da população brasileira e mundial não sabe o que significa esta proposta macabra e assustadora que evolui rapidamente nos escritórios do Banco Mundial, de algumas das ONGs conservacionistas mais ricas do mundo, que ainda se aliam a corporações historicamente reconhecidas como destruidoras do meio ambiente, como a Shell, a Dow Chemical, a BHP Billiton, a British American Tobacco, a Petrobras e a Vale.
Como é comum em ocasiões que interessam aos poderes hegemônicos do capital, a proposta é baseada em conceitos bastante abstratos, de difícil compreensão e com um vocabulário repleto de termos em inglês e de um sem fim de siglas que parecem uma sopa de letras: CO2, IPCC, Redd, MDL, Waves, GEE, UNFCCC, PSA, Teeb, Nama, CCRA, COP, MEA…
Ou seja, é explícito o vasto desconhecimento sobre o tema das mudanças climáticas, sempre retratado pela mídia de modo alarmista, superficial e descontextualizado e, ainda, sujeito das distorções feitas em nome dos interesses corporativistas. Esta nova fronteira do capitalismo, a “verde”, se coloca como heroína, no sentido de apresentar os mecanismos e instrumentos necessários para ou “mitigar” ou atenuar os problemas climáticos e econômicos. E, assim, ela chega mascarada de “verde”, “sustentável”, “ecológica”, “florestal” e, agora, até mesmo “holística”.
No entanto, considerando seus principais “mentores” e a insistente recusa dos países industrializados – historicamente responsáveis pela poluição do planeta e de sua atmosfera – em se comprometerem com a diminuição de suas emissões de gases de efeito estufa (considerados os responsáveis pelas mudanças climáticas), fica evidente que o capitalismo verde é uma falsa solução.
Além de desconsiderar a dívida climática que estes países têm com os povos do Sul global – afinal, foi através do consumo desenfreado de combustíveis fósseis e da apropriação de bens comuns que eles cresceram economicamente -, esta proposta ainda pretende, através de mecanismos de “compensação”, colocar nas costas destes povos – que sempre preservaram os seus territórios – um ônus consideravelmente maior.
Através da perda da autonomia e do controle dos territórios pelas populações tradicionais, pretende-se impedir que a caça, a pesca, o roçado e outras atividades necessárias para garantir a sobrevivência destes povos continuem a ser feitas de modo a “compensar” as ações de destruição e poluição feitas pelas corporações, porque elas não pretendem mudar o seu modo de produzir.
Grave é a constatação de que muitos projetos do capitalismo “verde” já estão implementados no Brasil e em outros países. E as comunidades tradicionais e os povos indígenas estão diretamente ameaçados por eles.
Ofensiva à vista
A próxima Conferência das Partes (COP) das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 20) será realizada em Lima, noPeru, em novembro de 2014, e deverá avançar no sentido da normatização de uma legislação internacional para os mecanismos da economia verde. Processo que, provavelmente, será finalizado na COP 21 a ser realizada em 2015, em Paris, na França (país industrializado, localizado no Norte global). A partir daí, o caminho estará traçado para as legislações nacionais e as corporações poderão contar com uma segurança jurídica para suas empreitadas. Assim, rasga-se a Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras normas e legislações que garantem o direito dos povos indígenas e tradicionais aos seus territórios.
Diante desta nova estratégia do sistema capitalista e de suas instituições, corporações e ONGs aliadas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mais uma vez, coloca-se ao lado dos povos indígenas e na defesa de seus direitos. Articulados com outros parceiros, nos próximos dias, estaremos resgatando algumas análises e publicações que contribuem para a reflexão e para uma perspectiva crítica sobre o capitalismo “verde”.
Nesse sentido, estaremos empreendendo esforços para compreender as propostas e os mecanismos, suas consequências e impactos na vida dos povos; para compartilhar essa compreensão e as análises feitas a partir dela; e para resistir, seja contribuindo para a organização dos povos seja ressaltando a perspectiva milenar do Bem Viver. Através dela, os povos indígenas estabelecem uma relação de harmonia com os outros seres e com a natureza – não baseada no produtivismo e na competição, algumas das causas da atual crise civilizatória que vivemos.
Na convivência com os povos indígenas, percebemos que são eles, com seus conhecimentos e sabedoria, as fontes inspiradoras para um outro tipo de modelo de sociedade onde o “ser” prevaleça sobre o “ter”, enfim, para uma real sociedade do futuro.