A brutal desocupação realizada na terça-feira 17 na capital pernambucana é só um dos escândalos de um projeto imobiliário de luxo que atropela até o Ministério Público para ser erguido.
Por Renan Truffi, Carta Capital
“Não se governa uma nação sem ouvir as pessoas. A boa política é feita sempre com muito diálogo, e transparência em todos os sentidos”, escreveu o ex-governador de Pernambuco e candidato do PSB ao Palácio do Planalto, Eduardo Campos, no Twitter, na noite de segunda-feira 16. Enquanto a mensagem era postada na rede social, policiais militares do estado que Campos governava até dois meses atrás se preparavam para cumprir uma ordem de reintegração de posse no Cais José Estelita, uma área abandonada no centro do Recife que é alvo de disputa judicial e estava ocupada por aproximadamente 60 ativistas.
Sob as ordens de atual governador de Pernambuco, João Lyra (PSB), sucessor de Campos, a Tropa de Choque e a Cavalaria da PM descumpriram o acordo de esperar o fim das negociações com o poder público para desocupar o local. A corporação não avisou nem mesmo o Ministério Público Federal sobre a reintegração de posse, como ficou combinado. Cerca de 150 PMs chegaram de surpresa à ocupação às 5 horas da manhã e não deram tempo para que as pessoas deixassem o local. Advogados do movimento foram impedidos de entrar para negociar uma saída pacífica e os PMs não pouparam bombas de gás lacrimogênio, bala de borracha e spray de pimenta. O saldo foi de pelo menos três feridos e quatro detidos.
O MPF classificou a operação de “arbitrária” e afirmou que a PM usou “medidas típicas de cumprimento de ordens contra criminosos”. A Universidade Federal de Pernambuco emitiu nota dizendo que a desocupação “desrespeita frontalmente o acordo envolvendo diversas instituições, a Prefeitura do Recife e os empreendedores” e manifestando “preocupação quanto ao futuro das negociações iniciadas, que tinham como objetivo a defesa de uma cidade melhor, mais humana e mais inclusiva.” A Anistia Internacional também repudiou a ação e afirmou que “condena o uso excessivo da força”.
O acordo quebrado foi firmado com os integrantes do movimento Ocupe Estelita, no último dia 23 de maio, na presença de promotores do Ministério Público de Pernambuco, do MPF, da Secretaria de Defesa Social e Direitos Humanos, além de integrantes da Prefeitura de Recife. A presença de promotores, no entanto, não fez com que a PM honrasse sua palavra. Coincidência ou não, a escolha foi organizar a ação para o mesmo dia de um jogo do Brasil na Copa do Mundo (o segundo, contra o México), quando o caso poderia ter menos exposição na imprensa. A desocupação é o mais recente episódio polêmico de uma briga iniciada em 2008 e que diz respeito a um problema não só do Recife, mas de várias capitais brasileiras: a falta de diálogo e consulta popular sobre o desenvolvimento da cidade, uma situação que beneficia as empreiteiras, as grandes financiadoras de campanha política no País.
O início
Há seis anos, a União decidiu leiloar o terreno do Cais José Estelita. O local tem uma área de aproximadamente 101,7 mil metros quadrados, abriga um pátio ferroviário e uma série de armazéns de açúcar abandonados pelo poder público. Apesar do cenário apocalíptico que domina o terreno, a propriedade está em um ponto estratégico da cidade. A área fica entre Boa Viagem, bairro de classe média alta com uma avenida beira-mar dominada por edifícios de luxo, e o Recife Antigo, como é conhecido o centro histórico da capital pernambucana. Cartão postal do município por ficar de frente para a Bacia do Pina, o local chamou a atenção de um grupo de construtoras. Essas empresas criaram o Consórcio Novo Recife e desenvolveram um projeto com o mesmo nome para a região.
O grupo imobiliário, formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos, comprou a área da antiga Rede Ferroviária Federal (RFFSA) por 55 milhões de reais. A ideia é construir pelo menos 12 torres, sendo sete residenciais, duas comerciais, dois flats e um hotel. Tudo com até 40 andares, além de estacionamentos para aproximadamente 5.000 veículos. No total, o projeto foi orçado em 800 milhões de reais, com custo do metro quadrado estimado em pelo menos 4 mil reais. O preço inicial dos apartamentos vai variar entre 400 mil e 1 milhão de reais cada. O plano causou indignação em professores, arquitetos, movimentos sociais e moradores da região. Mobilizados, eles começaram a acompanhar reuniões do Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Prefeitura, que avaliou a proposta imobiliária do Novo Recife.
O que começou como uma reivindicação natural da população por mais diálogo e participação levou à criação do grupo Direitos Urbanos, que hoje representa a maioria dos integrantes do Ocupe Estelita.
“A Direitos Urbanos canalizou todo mundo que estava insatisfeito. O projeto Novo Recife, por ser de frente para o rio [Bacia do Pina]; corredor natural de ventilação da cidade; área de patrimônio histórico; ligada a várias comunidades e bairros que sofrem pelo abandono dessa área, agrediu as pessoas, agrediu o senso estético das pessoas, e o que as pessoas pensam do que é sustentável”, diz a advogada Liana Cirne Lins, integrante do grupo. “É um projeto que destrói uma paisagem muito bonita, uma das mais bonitas de quem vem de Boa viagem. Não queremos esse desenvolvimento porque isso não é desenvolvimento. Isso é retrocesso, é um modelo de urbanismo da década de 70 da década de 80 que está superado”, afirma Lins.
À medida que o Direitos Urbanos se fortalecia, começaram a vir à tona as irregularidades do projeto Novo Recife. Por conta das denúncias, o plano imobiliário é alvo de cinco ações judiciais diferentes, sendo uma do Ministério Público Federal, uma do Ministério Público de Pernambuco e mais três ações populares.
Irregularidades
Não são poucos os problemas do projeto Novo Recife. De acordo com o MPF, o primeiro deles é que o leilão da área nunca poderia ter sido feito. Isso porque toda vez que a União vai vender uma propriedade pública é necessário consultar outros órgãos públicos que eventualmente tenham interesse na área. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Pernambuco havia manifestado vontade de se responsabilizar pela área, mas mesmo assim o leilão ocorreu e só o Consórcio Novo Recife se mostrou interessado no Cais José Estelita. Nenhuma outra empresa apareceu para disputar a compra da área. Com isso, o grupo imobiliário pagou o valor mínimo estipulado pelo governo federal para a propriedade. Como desembolsou 55 milhões de reais por pouco mais de 100 mil metros quadrados, o Consórcio Novo Recife pagou pouco menos de 500 reais pelo metro quadrado. Isso em uma das capitais brasileiras mais caras para se morar no País. De acordo com índice Fipe/Zap, que acompanha os preços dos imóveis à venda anunciados na internet, o preço médio do metro quadrado na capital pernambucana é de 5.673 reais.
Ainda que tenha pago um valor irrisório para a área, o Consórcio Novo Recife também deixou de cumprir procedimentos básicos em projetos imobiliários dessa magnitude. O grupo não fez um estudo de impacto de vizinhança, estudo de impacto ambiental nem submeteu o projeto aos órgãos necessários, como o próprio Iphan, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres. Apesar de tudo isso, o projeto imobiliário foi aprovado pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Prefeitura de Recife em 28 de dezembro de 2012, a poucos dias do fim da gestão do ex-prefeito João da Costa (PT-PE). A sessão foi realizada a portas fechadas e a advogada Liana Lins, do grupo Direitos Urbanos, foi proibida de participar do encontro.
O maior sinal de que o poder econômico exerce influência desproporcional na disputa entre construtoras e sociedade civil ocorreu alguns meses depois da aprovação do projeto no CDU. No início de 2013, a então promotora de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), Belize Câmara , participou de debates sobre o projeto Novo Recife em audiências públicas e entrou com uma ação civil pública em que solicitou a suspensão do plano imobiliário. Entre outras coisas, Câmara argumentava que o projeto não obedecera critérios básicos, como o parcelamento do terreno [divisão em lotes] antes da aprovação do plano.
Alguns dias depois de a Justiça acolher o pedido e decretar a suspensão do licenciamento da obra, Belize Câmara foi afastada do cargo sob a justificativa de acumular funções. Isso porque ela também era titular na Promotoria da Infância de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. “Não posso falar [se foi pressão política que a fez ser afastada], mas isso [acumular funções] é comum entre os promotores. A sociedade não engoliu. O que eu posso dizer é que, em geral, são as maiores construtoras que fazem doações de campanha. E essas construtoras querem contrapartida. Isso gera uma espécie de promiscuidade entre a iniciativa privada e o poder público”, criticou a promotora.
Ocupe Estelita
Além do afastamento de uma adversária, chamou a atenção a facilidade do Consórcio Novo Recife para conseguir autorizações, documentos e alvarás mesmo sem seguir todos os procedimentos necessários. No último 21 de maio, o grupo imobiliário conseguiu autorização da Prefeitura de Recife para demolir os armazéns de açúcar, mesmo após a Justiça ter proibido qualquer etapa da obra em função da ausência de estudos obrigatórios.
A demolição só não ocorreu por acaso. A derrubada, que seria realizada na calada da noite, chamou a atenção de um dos ativistas da Direitos Urbanos. O publicitário Sergio Urt passava pela região do Cais José Estelita quando viu a movimentação e resolveu filmar. Ele deu a volta no terreno e conseguiu fotografar e registrar a derrubada da estrutura, mas acabou sendo visto pelos funcionários do grupo imobiliário. Só deu tempo de mandar as imagens para as primeiras pessoas de sua lista de contatos. Logo Urt foi cercado pelos seguranças e espancado. Ele teve o celular quebrado e os documentos roubados. Só após muita insistência conseguiu sua carteira de volta.
A informação circulou rapidamente no Facebook e uma multidão de pessoas foi ao terreno para protestar e pressionar pela interrupção da demolição. Para vigiar os funcionários e impedir que as máquinas voltassem a derrubar os armazéns, surgiu a ideia dos ativistas de ocupar o Cais José Estelita. Inspirados no “Ocupe Wall Street”, movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social que surgiu nos Estados Unidos, eles buscaram barracas, mantimentos e resolveram passar a primeira noite na propriedade.
A partir daí, apesar do silêncio da imprensa pernambucana em relação ao caso, o movimento ganhou adesão e o número de ocupantes aumentou. Com a repercussão, o prefeito de Recife, Geraldo Júlio (PSB), aceitou intermediar uma negociação entre o grupo imobiliário e o movimento. Ainda assim, a Justiça concedeu reintegração de posse aos novos proprietários, mas a liminar foi contornada depois que a PM concordou em esperar o término das negociações. O alvará de demolição também foi suspenso pelo poder municipal.
Nos 28 dias em que durou a ocupação, o Ocupe Estelita ganhou também apoio da classe artística de Recife. Músicos, escritores e cineastas ajudaram a romper com o silencia da mídia tradicional ao fazerem campanha pela causa na internet. Os músicos Ney Matogrosso e Zélia Duncan, o cineasta Kléber Mendonça e a banda Nação Zumbi foram alguns dos nomes que entoaram o coro. E, com o apoio estrutural do Som na Rural, projeto de música itinerante da capital pernambucana, o movimento conseguiu levar nomes da cena musical de Recife, como Karina Buhr e Otto, para fazer show na ocupação, de graça.
Em domingos diferentes, os dois levaram aproximadamente 10 mil pessoas ao Ocupa Estelita. A exposição gerou tensão até mesmo para Otto, uma figura pública conhecida. O cantor recebeu ligações com recomendações de não tocar no Cais José Estelita. Otto atribuiu os avisos “apenas amigos desinformados”. “Acho que a gente tem que mapear esses lugares que, às vezes, não é nem histórico. Mas tem que mapear para ver onde é que tem lugares como esse. Isso tem que ser uma ferramenta de mobilidade. “A gente nunca deixou de sofrer em Recife, mas só agora temos um avanço tecnológico, com as mídias sociais, para segurar essa onda”, diz. “Em qualquer lugar do mundo, a construção de 12 torres é um impacto muito grande. O cimento tem muita força. Recife já é uma cidade muito afundada. Já destruíram muita coisa aqui”, defende Otto.
A pressão do capital
Apesar de Otto explicar que recebeu apenas ligações de amigos preocupados e não intimidações, esta não seria a primeira vez que as construtoras pernambucanas recorrem à rede de influências para tirar oponentes do caminho e conseguir levar seus projetos imobiliários à frente. Autora de uma das ações do MPF contra o projeto Novo Recife, a procuradora da República Mona Lisa Ismail admite que o poder econômico das empresas costuma influenciar, sim, as decisões judiciais.
“O nosso país passa por uma crise de legitimidade institucional. Isso ficou claro com a onda de protestos e decorre da falta de credibilidade da população nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na grande maioria das ações [no Judiciário] envolvendo interesses econômicos e empreendimentos de destaque, no final do processo, as decisões sempre tendem a beneficiar o interesse privado”, lamentou Mona Lisa em tom pessimista, quando questionada sobre a possibilidade da reintegração de posse ser cumprida no Cais José Estelita, um dia antes da PM aparecer de surpresa na ocupação.
Para Liana, a ação só deixa evidente a falência do Estado Democrático de Direito, já que ação foi “uma clara repressão política”. “O objetivo da ação da polícia do estado de Pernambuco claramente não era a desocupação do imóvel. Tratava-se de notório objetivo de usar da máxima violência contra os ativistas, ainda que, e especialmente porque, sem nenhuma necessidade que justificasse a ação agressiva. O direito está de luto e desempoderado. Em seu lugar comanda o dinheiro, com as instituições estatais a serviço do poder econômico”, afirma.
Apesar do desfecho, as lideranças do movimento Ocupe Estelita acreditam que a repercussão em torno da violência policial na reintegração de posse vai fortalecer ainda mais o movimento. Politicamente, o caso já criou uma saia justa. Vice na chapa de Eduardo Campos, a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva condenou a ação da PM. “O pedido de reintegração de posse expedido pela Justiça e executado nesta terça-feira poderia ter seguido o mesmo princípio do diálogo, em vez de terminar com uma desocupação arbitrária”, escreveu ela no Facebook. Eduardo Campos continua calado.
Outro lado
A reportagem de CartaCapital questionou a gestão de Geraldo Júlio sobre como, entre outras coisas, a Prefeitura de Recife concedeu alvará de demolição dos armazéns do Cais José Estelita mesmo após a Justiça ter dado liminar que suspendeu parte do projeto. A assessoria de imprensa respondeu apenas que este ato “não envolve a atual gestão”. Além disso, o comunicado enfatiza o papel do prefeito no que diz respeito as ações mitigatórias, como são chamadas medidas que tentam reduzir impacto negativa de alguma obra.
“Esta atuação garantiu os seguintes benefícios para a cidade: Parque Linear com 90 mil metros quadrados ao longo da Bacia do Pina (maior que o Parque da Jaqueira); seis quadras poliesportivas e áreas de lazer sob o Viaduto Capitão Temudo; Biblioteca Pública no giradouro do Cabanga; intervenção na esplanada do Forte das Cinco Pontas, com a demolição do viaduto, urbanização e paisagismo; implantação de ciclovia conectando a zona sul com o Bairro do Recife; dentre 16 medidas acordadas, quase duplicando o valor sob responsabilidade do empreendedor, de 32 para 62 milhões de reais”, diz o texto. Estas ações, no entanto, são bastante questionadas pelos integrantes do movimento Ocupe Estelita já que o Parque Linear ficaria localizado entre duas vias de alta velocidade. Além disso, a principal reivindicação é rever a construção das torres de luxo.
O Consórcio Novo Recife, por sua vez, nega que o leilão tenha sido realizado de forma irregular. De acordo com a assessoria de imprensa do grupo imobiliário, o Iphan não manifestou interesse na área a tempo. Essas afirmações não batem com os fatos apresentados pela procuradora Mona Lisa Ismail, que diz ter ouvido técnicos do Iphan tanto de Pernambuco como de Brasília.
“O que o MPF não diz é que tanto o pleno do TRF/5ª Região, quanto a sua 4ª Turma, foram unânimes em cassar a decisão liminar do 1º Grau (21ª Vara Federal/PE), que acolhia a sua pretensão de obstaculizar o projeto Novo Recife, por equivocadamente considerar que o Pátio Ferroviário das Cinco Pontas [localizado dentro do Cais José Estelita] deveria ser preservado como um todo, o que, aliás, como informado discorda o Iphan, que não se opõe a construção do empreendimento”, rebate o texto.
Sobre as acusações de não ter parcelado o terreno ou elaborado estudos, como o Estudo de Impacto de Vizinhança, entre outros, a assessoria de imprensa do Consórcio Novo Recife resume que “todos os procedimentos legais foram cumpridos”. “O projeto atende rigorosamente as Leis municipal, estadual e federal, e todos os estudos necessários para sua aprovação foram anexados, inclusive com a apresentação do Memorial de Impacto”, afirma o comunicado.
Sobre as ausências de laudos elaborados por órgãos como o Dnit, o Consórcio Novo Recife esclarece que irá submeter o projeto quando for necessário emitir “Alvarás de Construção”. “O projeto tem a liberação e concordância por parte do Iphan. As consultas ao Dnit e ANTT, como recomendado na aprovação pelo CDU (Conselho de Desenvolvimento Urbano), e solicitadas pela Superintendência Regional do Iphan, serão necessárias na ocasião da emissão dos Alvarás de Construção, procedimentos, ainda, em curso”, conclui.