José Ribamar Bessa Freire – Diário do Amazonas
Faltou um convidado para a canonização de Anchieta que teve missa festiva em Roma, quinta feira, 24, celebrada pelo papa Francisco. Estavam lá o vice presidente da República Michel Temer, os senadores Renan Calheiros (AL) e Ricardo Ferraço (ES) “figuras ilibadas” do PMDB (vixe, vixe), além de outros integrantes de uma gulosa comitiva com polpudas diárias e passagens pagas pelos cofres públicos. Mas ficou vazia a cadeira do cacique Babau Tupinambá, convidado pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O fato está carregado de simbolismo.
O “apóstolo dos índios” foi canonizado sem a presença de um único representante daqueles que catequizou. Seria o primeiro milagre do novo santo se a igreja estivesse lotada de índios ou se Anchieta convertesse a cambada de medalhões (se você está indignado, coloque um “r” depois da primeira sílaba) ali presentes.
Quem acredita na fé dos medalhões, que atire a primeira pedra! Na última vez em que rezou o Pai-Nosso, Renan era coroinha da igreja Nossa Senhora das Graças, padroeira de Murici (AL), de olho no saquinho da coleta de espórtulas da missa. Por isso, ainda reza pela antiga cartilha: “perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos os nossos devedores”.
O papa ganhou a simpatia de milhões de brasileiros ao se pirulitar logo após a missa para não ter o desprazer de encontrar Renan et caterva, que beijaria sua mão e publicaria a foto. Ninguém, porém, expulsou esses vendilhões do templo. Ninguém perguntou: cadê o Babau? Naquele momento, o cacique estava em Brasília, depondo na Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional, de onde saiu preso pela Polícia Federal, a quem se entregou. Na hora exata da prisão, distante dali, os medalhões, contritos, diziam “amém” na missa celebrada em português pelo papa.
Cortador de orelhas
O cacique Babau Tupinambá, apesar de ter boca, não foi a Roma, lembrando episódios da ditadura militar, quando proibiram a saída de Daniel Matenho Cabixi, de Mario Juruna e dos índios Kayapó. Babau foi impedido de viajar por um juiz substituto da Vara Criminal da Justiça do município baiano de Una, que decretou sua prisão temporária. Diante disso, a Policia Federal suspendeu o passaporte que lhe havia concedido.
Qual o motivo da prisão? Impedir Babau, que luta pela recuperação do território Tupinambá, de entregar ao papa documentos denunciando a violação aos direitos indígenas no Brasil e de falar com jornalistas de vários países. Esse é o motivo real. Alegaram outro: ele estaria envolvido no assassinato do agricultor Juracy Santana, no dia 10 de fevereiro último, segundo depoimento de alguém que”tomou conhecimento que após morto, Juracy teria a orelha cortada, sendo que a dita orelha era para ser entregue ao Cacique Babau”.
Juro que o juiz aceitou essa “prova” na falta de outra. Apenas dez dias se passaram entre a morte e o mandado de prisão, num inquérito viciado em que as testemunhas ouvidas foram pessoas denunciadas pelo próprio cacique, conforme nos relata Renato Santana, da Assessoria de Comunicação do CIMI – Conselho Indigenista Missionário. No inquérito e na decisão do juiz, não foi ouvido o outro lado.
O que um juiz que toma decisões sobre índios conhece sobre o tema? Com essa pergunta, iniciei o curso Consequências sociais das decisões judiciais – o direito dos povos indígenas,ministrado no ano passado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) para juízes em vitaliciamento. Na ocasião, recorri a documentos do Arquivo Nacional. Lá, no Fundo Polícia da Corte, existem livros com a relação de presos na primeira metade do século XIX. Num deles consta um índio que foi preso em 1831, por “estar numa atitude de quem estava pensando em roubar”.
O juiz de direito, que chefiava a polícia, era tão eficiente que lia até pensamento. É isso aí. O cacique Babau foi preso porque “estava pensando em cortar orelhas”, segundo seus adversários. É muita mesquinharia. É uma ofensa à inteligência dos brasileiros. Podemos acusar o juiz de que “está pensando” que somos idiotas. Somos? Como é que 200 milhões de cidadãos aceitam, calados, tamanho escárnio? Morro de vergonha “de minha pátria, de minha pátria sem sapatos e sem meias, pátria minha tão pobrinha” como cantou Vinicius de Morais.
Kate e a mídia
Um cacique tupinambá é preso para evitar que viaje e represente os índios na canonização de um santo. A grande imprensa, nem seu souza. Não deu um pio. Nenhum registro. Só a Folha de São Paulo deu uma notinha escondida. Os jornalões futricam e futricam factóides. Dedicaram páginas e páginas à recente viagem do duque William, da Kate e do filho deles George à Austrália e Nova Zelandia, registraram até o arroto do pequeno príncipe. Com todo respeito à Kate, Babau é mais importante, não apenas para mim, mas para a história do Brasil, para a humanidade, embora não para certa imprensa.
Por que a mídia dá enorme espaço para “assunto tão transcendental” como a operação plástica nos pés – “uma febre nos Estados Unidos” – e ignora o cacique Babau quando ele se defende lá no Congresso Nacional, na presença da presidente da Funai, da procuradora da República e de parlamentares de vários partidos? A noticia fervilha nas redes sociais, mas é ignorada fora delas.
Babau criticou a morosidade na demarcação das terras indígenas e depois se entregou à Polícia. Permanecia preso em Brasília, sob custódia, aguardando transferência para um presídio em Ilhéus (BA), por determinação do juiz substituto Maurício Barra, o mesmo que expediu o mandado de prisão. Os fazendeiros, enfim, podem dormir tranquilos: suas orelhas não serão cortadas, o pensamento sobre isso está preso.
Só acredito que Anchieta não é santo de casa, se a presidente Dilma der um soco na mesa e gritar: “senhores ruralistas, meu campo político é dos lascados, não permito que se rasgue a Constituição e se oprima os índios. A terra indígena Tupinambá, identificada em 2011, aguarda portaria do ministro da Justiça. Cardoso, assine a portaria”.
Mas santo de casa não faz milagres. Os bandeirantes estão voltando. Desconfio que vem chumbo grosso por aí. Índios do mundo inteiro, uni-vos!
P.S.1 – Quando esse texto já havia sido escrito, recebi a notícia da morte em Brasília do linguista Aryon Rodrigues, 88 anos, o velório foi na sexta, 25. Aryon era um sábio, amigo dos índios. Escreveu seu primeiro artigo sobre a língua guarani quando tinha 16 anos e publicou no jornalzinho do Grêmio Estudantil. De lá para cá, não parou de pesquisar sobre as línguas indígenas. Ganhamos todos com ele, com sua vida, com sua luz. Ganharam os índios, ganhou a academia. Todos perdemos um pouco com sua despedida. Que descanse em paz, amado e homenageado por todos nós.
P.S. 2 – Desde 1999, a escolha para o cargo de diretor do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia é feita baseada em avaliação criteriosa de um Comitê de Busca nomeado pelo ministro, cujos membros são expoentes das áreas de pesquisa e inovação no Brasil. Esse processo foi adotado para coibir ingerência político-partidária nas indicações. Agora, novamente o INPA está em momento de mudança, e já foi designado o Comitê de Busca, que deve ter autonomia para indicar ao ministro o(s) nome(s) que considerar mais adequado(s), sem pressão política de qualquer natureza. Alguns políticos já estão querendo nomear. Olho neles!