Além de ter negado presença indígena, colonização agrícola e Itaipu ‘aumentaram pressão fundiária’ sobre oeste paranaense e contribuíram para esfacelamento de aldeias
Por Tadeu Breda, da RBA
“Mesmo sendo tarde, tudo isso tem que ser conhecido. Ninguém sabe o que passamos aqui”, conclui Casemiro Pereira, 54 anos, pouco antes de se despedir da psicanalista Maria Rita Kehl com um aperto de mãos e a promessa de que sua história será contada ao país. A integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ouviu ontem (31) seu relato numa abafada sala de paredes brancas da escola Teko Nemoingo, município de São Miguel do Iguaçu.
Cercada de lavouras de milho por todos os lados, a aldeia Ocoy, às margens do lago de Itaipu, foi a quarta terra indígena visitada por Maria Rita durante o périplo da CNV pelos territórios guarani do oeste do Paraná. O pequeno gabinete escolar, enfeitado com passarinhos azuis, fez as vezes de auditório onde Casemiro deixou-se “marear” pela memória do sofrimento. E onde, minutos antes, seu vizinho, Silvino Vaz, 50 anos, confessara a tristeza trazida pelas recordações. “Foi muito duro.”
Enquanto o aniversário de 50 anos do golpe promovia protestos populares nas grandes cidades e discursos presidenciais em Brasília, a psicanalista se sentava a ouvir antigos relatos dos indígenas que vivem na fronteira com o Paraguai. Foram testemunhos de assassinatos, surras, trabalhos forçados, esbulho territorial e fugas ocorridas antes e depois do assalto militar ao poder, antes e depois das inundações do Rio Paraná provocadas pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
“É minha sexta audiência com povos indígenas”, contabilizou a representante da CNV, citando visitas aos suruí do Pará, aos waimiri e ianomamis de Roraima, aos pataxó e tupinambá da Bahia e aos kayowá do Mato Grosso do Sul, além de uma recepção aos xavante, em Brasília. “Aos poucos, porque não sou nenhuma especialista, quero cumprir meu mandato na comissão para denunciar o maior número possível de violações aos direitos humanos dos povos indígenas entre 1946 e 1988.”
Apenas os relatos dos guarani do oeste do Paraná demandariam de Maria Rita um trabalho hercúleo. Sozinha, em dois anos e meio, seria impossível sistematizar a memória das arbitrariedades cometidas contra as etnias brasileiras no período. “É missão para 50 pessoas”, reconhece. A tarefa só lhe está sendo menos ingrata graças ao empenho de pesquisadores que se dedicam à questão. Um deles é Ian Packer, antropólogo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) que no ano passado produziu o relatório Violações dos direitos humanos e territoriais dos guarani no oeste do Paraná.
Escrito para auxiliar a CNV, o estudo se atém aos 42 anos que, por lei, delimitam a atuação da comissão. Em mais de cem páginas, contextualiza os depoimentos colhidos no último fim de semana pela psicanalista, e mostra como “empresas e proprietários de terra interagiram com organismos e agentes públicos durante a ditadura e no período pré-golpe na consecução de seus interesses privados”. O relatório se dedica ainda a embasar, com evidências documentais e históricas, como os índios foram excluídos dos empreendimentos faraônicos realizados pelo regime, e que “atropelaram seus direitos”.
A história que Casemiro Pereira quis contar a Maria Rita, mesmo depois de tanto tempo, refere-se tanto à tomada de terras indígenas por colonizadores quanto à construção de Itaipu. Em seu relatório, Packer afirma que “o processo de expropriação territorial dos guarani do oeste do Paraná foi conduzido sob a égide de um sistemático descumprimento da legislação indigenista e de um genocídio silencioso acobertado pelo regime de exceção vigente no país”.
À sua maneira, Casemiro ratificaria pessoalmente tais afirmações à CNV. “O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) pegou esse pedaço aqui, entrou, e chegava colono dizendo que tinha comprado a terra e que índio tinha de sair, senão ia morrer”, atesta. “Vinha com polícia, com arma, dava três dias pra gente sair. Índio foi para o Paraguai, fugido. Caía no Rio Paraná e cruzava. Quem ficou foi morrendo, matado.” E quem não tinha canoa atravessou a fronteira no fôlego, como Silvino, também morador de Ocoy. “Passei o Paranazão a nado.”
De acordo com o testemunho dos mais de 20 guarani ouvidos por Maria Rita Kehl em três dias nos municípios paranaenses de Guaíra, Terra Roxa e São Miguel do Iguaçu, o país vizinho foi apenas um dos destinos dos índios que escapavam à chegada violenta dos brancos nos anos 1940, 1950 e 1960. Muitos também se dirigiram ao Mato Grosso do Sul, que também está do outro lado do rio. Outros ainda partiram para São Paulo e Santa Catarina.
Os relatos evidenciam que os índios que ficaram na região foram forçados a trabalhar na abertura de picadas e estradas, e na colheita da erva mate. “Hoje em dia a gente fala em agronegócio, mas a gente vê que nessa porção do território brasileiro, no início do século passado, já começavam os negócios com uma mega empresa chamada Mate Laranjeira”, aponta a integrante da CNV. “Temos que investigar mais, mas pelo padrão das violações e pela onipresença dessa companhia, é bem possível que tenha contado com apoio de agentes do Estado para expulsar e escravizar índios.”
Recorrendo à própria memória ou à memória de seus pais, já falecidos, os guarani atualmente instalados nas 13 aldeias da região de Guaíra e Terra Roxa deram testemunho da exploração de mão de obra na produção do mate. Com mais de 60 anos, Damião Acosta afirmou à psicanalista que trabalhou em ervatais desde os seis anos de idade. “Às vezes éramos pagos pelo trabalho, às vezes não. Se não quisesse trabalhar, apanhava”, disse, em sua língua materna. “Em vez de pagar, o branco costumava matar o índio.”
Hoje morador da aldeia Y’hovy, a dez minutos do centro de Guaíra, Damião construiu uma pequena réplica das estruturas de bambu que utilizavam para secar e defumar o mate. E, usando ramos de eucalipto, porque a terra que ocupam já não possui árvores de mate, mostrou a Maria Rita Kehl como se processava a erva naqueles tempos. Uma hora depois, Rufina de Souza contaria à CNV que seu avô pediu ao seu pai para fugir rumo ao outro lado do rio pouco antes de receber um tiro em pagamento às exaustivas horas de trabalho.
O relatório do CTI sustenta que o então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que em 1969 daria lugar à Fundação Nacional do Índio (Funai), desde os anos 1940 se utilizava de estratégias para esvaziar a presença guarani no oeste do Paraná. Primeiro, deslocando os índios para reservas kaigang no interior do estado – o que pode ser configurado como uma medida de “extrema imprudência e violência” ao juntar “dois grupos inimigos no mesmo espaço”. Depois, negando o acesso dos guarani a direitos tão básicos como ter um documento de identidade.
Além dos casos de trabalho forçado e tomada de terras, a inexistência de postos do serviço indigenista no oeste paranaense também contribuiu, segundo o relatório, para que os guarani da região se deslocassem a Japorã (MS) e Jaguapiré (MS), em busca do RG que lhes daria acesso a atendimento de saúde e educação. Uma vez lá, muitos eram instados a permanecer. Por isso, apesar de terem vindo à luz em solo paranaense, trazem na cédula Mato Grosso do Sul como lugar de nascimento.
É o caso de Assunção Benítez, 66 anos. O cacique da aldeia Tajy Poty, em Terra Roxa, contou à CNV que deixou a região para cortar cana-de-açúcar no estado vizinho, depois de ter fugido rumo à cidade para evitar os trabalhos forçados na abertura de estradas. “Tirei documento com 48 anos, por aí. O papel diz que eu nasci no Mato Grosso do Sul. Eu disse que tinha nascido aqui no Paraná, mas disseram para colocar Porto Lindo”, relata, em referência à terra indígena de Japorã (MS). A Funai chegaria ao oeste paranaense apenas em 2012.
De acordo com o relatório do CTI, as consequências das violações de outrora “se fazem sentir de maneira dramática ainda hoje”, sobretudo na situação de pobreza em que vivem as comunidades indígenas da região de Guaíra e Terra Roxa. O reconhecimento oficial de que os guarani foram parcialmente expulsos do oeste do Paraná parece ser vital para a concretização das atuais demandas por demarcação. Ainda mais quando a sociedade local, conforme denunciaram os próprios índios em seus depoimentos à CNV, promove uma campanha negando-lhes direito à terra por serem “paraguaios”. Em fevereiro, após decisão judicial, a Funai publicou portaria ordenando realização de estudos na área.
Negar identidade indígena aos guarani da região, porém, não é novidade. Relatos e documentos oficiais mostram que a tática foi utilizada pelo regime durante a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. “A Funai ficou contra nós, a gente sabe, em vez de defender”, lembrou Casemiro Pereira, da aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, à beira da represa. “Em Curitiba, levou carta dizendo que não era índio porque tinha barba e bigode. Tinha também antropólogo da Itaipu que dizia que era mestiço. E mandou expulsar nós.”
O relatório produzido por Ian Packer revela que o especialista da Funai responsável por concluir o processo de titulação, indenização e desapropriação das terras guarani que seriam inundadas pela represa foi Célio Horst, era filho de criação do ditador Ernesto Geisel. De acordo com o documento, Horst concluiu que apenas cinco famílias que residiam na região eram “guarani de verdade”. Ainda assim, recomendou sua retirada da terra. O resultado desse processo foi a criação de uma reserva de 230 hectares, onde hoje vivem – ou se espremem, como dizem – 700 índios.
Casemiro contou à CNV que se deu de maneira violenta a expulsão dos guarani que viviam nas áreas prestes a serem tomadas pelas águas da barragem, nos anos 1980. “Tinha muito guarani, mas queimaram casa. Incra fez isso. Trouxe militar e expulsou e matou gente lá”, relatou, explicando que, antes da represa tomar conta de tudo, a aldeia se chamava Jakutinga. “Não sei quanta gente morreu, mas foi mais da metade. Alguns fugiram para o Paraguai.”
“Voltarei a Dourados (MS) agora em abril para ouvir o relato de outros povos indígenas, e ainda terei maio, junho e julho, quando preciso entregar meu relatório, para viajar ao Xingu, no Mato Grosso, para entender o que aconteceu antes da formação do parque com os avá-canoeiro”, anuncia Maria Rita Kehl, responsável na CNV por pesquisar as violações contra índios e camponeses. “Não sei se minhas recomendações serão seguidas, mas é evidente que a mais importante é a demarcação de terras.”
Depois de contar sua história a Maria Rita Kehl, que agradeceu o depoimento, Casemiro ouviu da psicanalista que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade será impresso, vendido em livrarias e enviado a todas as escolas e universidades do país. “Inclusive para cá”, reforçou. “Ah, isso é bom”, devolveu o guarani, aparentando estar satisfeito com a oportunidade de transmitir suas recordações. “Me manda uma cópia que eu quero mostrar para o meu piá.”
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.