Casa da Morte: depoimento de coronel choca ativistas e parentes de vítimas

Ministra Maria do Rosário Givaldo Barbosa / O Globo
Ministra Maria do Rosário Givaldo Barbosa / O Globo

‘Ditadura usou psicopatas’, diz ministra Maria do Rosário

Chico Otávio, Tatiana Farah e Carolina Benevides – O Globo

RIO E SÃO PAULO — Revelado com exclusividade pelo GLOBO, o depoimento do coronel reformado Paulo Malhães é uma mostra do nível de perversidade a que chegaram militares e outros agentes da repressão não só ao torturar, mas ao desaparecer com os corpos. Essa é a opinião dos presidentes das comissões da Verdade de São Paulo, acostumados a ouvir trágicos e violentos depoimentos de vítimas e operadores do regime militar. Para a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, “o depoimento do coronel mostrou que a ditadura valeu-se de psicopatas”:

— Porém, há outros que participaram e até hoje não falaram por vergonha. Ainda há tempo para que eles mudem de ideia, sobretudo se tiverem um lampejo de dignidade.

Malhães prestou um depoimento de 20 horas à Comissão Estadual da Verdade do Rio, ao qual O GLOBO teve acesso. Ele contou como desaparecia com os corpos das vítimas da Casa da Morte, centro de tortura localizado em Petrópolis que deixou apenas uma sobrevivente. Dedos das mãos e arcadas dentárias eram arrancadas para evitar identificação. Os corpos eram enrolados em plásticos e jogados no fundo do rio, não sem antes ter o abdômen aberto para que, inchados, não boiassem.

No último domingo, O GLOBO trouxe um relato de Malhães em que ele, ainda sob anonimato, revelou ao jornal ter desenterrado e jogado no mar o corpo de Paiva. O cadáver tinha sido enterrado no Recreio dos Bandeirantes, mas ele retirou o corpo e o lançou ao mar. Como ele assumiu seu depoimento à Comissão, o GLOBO suspende o anonimato. Agora, o coronel deve repetir o que disse à Comissão Nacional da Verdade (CNV).

— É o depoimento de um militar que dá a dimensão de até onde eles chegaram durante a ditadura. Uma perversidade extrema. Ele oficializa o que se tem investigado desse período. E começa a ficar claro para a população o que eles eram capazes de fazer — disse o deputado Adriano Diogo, que preside a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, de São Paulo, lembrando que o deputado assassinado será homenageado no ato preparado pelas comissões da Verdade no dia 31 de março.

O presidente da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo, vereador Gilberto Natalini, afirmou que a revelação de Malhães comprova a veracidade dos depoimentos de ex-presos políticos, incluindo ele. Para Natalini, setores da sociedade têm dificuldade de acreditar na perversidade do regime e em atos cruéis que marcaram as prisões e as mortes de brasileiros:

— É uma monstruosidade. Eles sabiam ser cruéis e eram bem treinados não só na tortura como no desaparecimento dos corpos. Esse depoimento legitima tudo o que disseram e o que dizem os ex-presos políticos.

Integrante da Comissão Nacional da Verdade, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias contou que a CNV vai convocar Paulo Malhães para depor. A data do depoimento não está fechada:

— Prefiro esperar o depoimento para falar sobre o que ele disse, mas acho tudo uma barbaridade.

Primo de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, que comandava a VAR-Palmares na época em que a presidente Dilma fazia parte da organização, Sérgio Soares Ferreira lembrou que se passaram 43 anos desde a prisão e disse que familiares de desaparecidos políticos não podem ver o depoimento de Malhães de forma inocente:

— Espero que estimule outros a falar e acho espetacular que o grande público saiba o que aconteceu. Mas, para mim, como familiar de desaparecido, o depoimento tem muitas incongruências. Se esquartejavam pessoas, quem ia lá fazer isso? Não é só cortar, tem uma técnica. O coronel fala, mas mantém o pacto de não dizer o nome de ninguém. E, em sua fala, é como se dissesse: esquece, os restos mortais não serão encontrados. Como se colocasse um pá de cal. Mas não vou parar. Para nós, que somos familiares, o processo democrático só avança quando o passado for desvendado.

Advogada que integra a CNV, Rosa Cardoso disse que o depoimento de Malhães e de outros agentes “não são revelações devidas apenas às vítimas, mas a toda a sociedade”.

— A crueldade sempre impressiona e emociona. Eu fui advogada de presos políticos. As histórias são terríveis. Houve terrorismo de Estado praticado no Brasil.

Rosa afirmou que o depoimento de Malhães aponta que a forma como se fazia o desaparecimento dos corpos variava entre os diversos grupos que operavam no regime. E afirma que, ao ter sua identidade revelada, Malhães acabou se protegendo contra eventuais retaliações:

— A partir do momento em que ele expõe o nome, fica muito difícil que aconteça alguma violência. Não é possível, acreditável, que aconteça alguma coisa porque a suspeita recairia sobre as pessoas de quem ele está falando ou sobre a própria corporação, de uma forma mais ampla.

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