Segurança pública, racismo e a construção dos sujeitos ‘matáveis’ no Brasil

Não gostamos do que vemos no espelho e preferimos negar e calar, valorizando as narrativas – constantemente renovadas desde antes da República e, sobretudo, após o fim da escravidão – que destacam o país pacífico e não racista

Atila Roque* – Nexo

A volta para casa dos cinco jovens residentes na favela de Costa Barros, zona norte do Rio de Janeiro, na madrugada de 29 de novembro passado, um domingo, após uma noite de celebração e festa no Parque de Madureira –  um dos poucos espaços públicos de lazer dos subúrbios cariocas –, terminou em mais uma chacina que chocou pela brutalidade, mas não, infelizmente, por sua excepcionalidade. No caminho daqueles jovens havia uma viatura do 41º Batalhão da Polícia Militar do RJ com policiais que descarregaram mais de cem tiros de fuzil e pistola sobre o carro onde estava os jovens. Alguns relatos de testemunhas dizem que os rapazes já tinham parado o carro e levantado as mãos, um gesto que qualquer o jovem negro morador do Rio de Janeiro, em particular aqueles que vem das favelas e das periferias da cidade, aprende rapidamente a fazer diante da abordagem policial. Sabem, esses jovens, que nesses encontros a vida está sempre por um fio. Não foi diferente para os meninos que celebravam a amizade,  o primeiro emprego de um deles e a ilusão de que eram livres para circular sem medo pela cidade.

Em outubro passado, em uma outra ação de consequência trágica, um policial do mesmo 41º BPM atirou e matou dois jovens que estavam em uma moto. O policial afirmou que “confundiu” com uma arma o macaco hidráulico que um deles carregava e por isso disparou. Atirou para matar sem que nenhuma ameaça tivesse sido feita à sua integridade ou de qualquer outra pessoa. Esse mesmo Batalhão da PM, o 41º, foi o que apresentou o maior número de casos de homicídios em 2014.  Foram 68 pessoas mortas em apenas um ano. O 41º BPM tem apresentado nos últimos anos o maior número de vítimas em suas operações. E nada foi feito a respeito disso. Ao contrário, quando questionadas sobre isso, as autoridades do Rio de Janeiro respondem justificando que aquela seria uma área conflagrada, que ali atuam grupos criminosos, e que não é possível baixar a letalidade da polícia no local neste contexto de “guerra às drogas”.

Histórias e tragédias com as de Wesley, Wilton, Roberto, Carlos Eduardo e Cleiton, os jovens e adolescentes executados em Costa Barros, se repetem quase diariamente diante dos nossos olhos, mas continuamos a colocar a cabeça no travesseiro todas as noites e dormir sem que pesadelos nos assombrem. Assistimos relaxados às novelas de nossa preferência, onde, com frequência, a violência é redimida pela criatividade dramatúrgica – basta ver a quantidade de vilões perdoados, mesmo depois de crimes e maldades sem fim, incluindo assassinatos. Fazemos a leitura dos jornais focados em manchetes que, segundo nos dizem, tratam dos assuntos que “realmente importam”: a decadência da política, o escândalo da corrupção e as agruras da economia.

A geografia segregada das cidades, a impunidade que prevalece em homicídios cometidos por policiais e a política de segurança focada na guerra e no enfrentamento armado do tráfico suspendem na prática o estado de direito e instala o estado de exceção em certas áreas das cidades, sinalizando com uma autorização tácita para a execução dos “elementos suspeitos”. Uma seletividade perversa que torna alguns sujeitos matáveis, sem que sintamos qualquer horror ou responsabilidade em relação a isso. Resultado do que a autora feminista, Judith Butler, chama de “enquadramento” do valor de uma vida que a torna passível ou não do luto.

Ficamos, naturalmente, emocionados com o sofrimento e a dor que atingem pessoas distantes de nós, quanto mais  distante melhor, digo, desde é claro que também sejam importantes na Europa ou, no máximo, nos EUA. O resto do mundo (Síria, Iraque ou Nigéria) e as tragédias do terrorismo e da imigração entram na agenda na medida em que também viram manchetes no “The New York Times”, no “The Guardian”, na BBC, no “Le Monde” e na CNN. Excepcionalmente também vemos o assassinato de negros e o racismo institucional das polícias receberam manchetes de primeira páginas e longas coberturas televisas no decorrer de semanas à fio, como vimos com o assassinato por um policial do jovem Michael Brown, em Ferguson, Missouri, nos EUA. A distância tranquiliza e liberta a emoção e a indignação frente a histórias de vidas e sonhos brutalmente interrompidos.

A violência e a discriminação nos outros incomoda, mas entre nós produz silêncio e negação. Essas têm sido as principais estratégias adotadas pela sociedade e pelo Estado brasileiro para lidar com as duas características estruturantes e organizadoras das desigualdades e do poder no Brasil:  o racismo e  a violência. Não gostamos do que vemos no espelho e preferimos negar e calar, valorizando as narrativas – constantemente renovadas desde antes da República e, sobretudo, após o fim da escravidão – que destacam o país pacífico e não racista.

De maneira recorrente em nossa história a violência foi explicada e justificada como episódios isolados controlados (leia-se brutalmente reprimidos) pelas forças da ordem (Revolta dos Males, Palmares, Canudos). A “democracia racial” foi ativamente procurada através de políticas públicas que variavam da promoção do  “embranquecimento” através do incentivo a imigração europeia, à valorização da mestiçagem, juntamente com a permanente desqualificação simbólica de tudo que remetesse a ascendência africana, amplamente majoritária, de nossa população. Sem esquecer da perseguição e repressão ativa ao longo de todo o século 19 e boa parte do século 20 de diversas manifestações da cultura e das religiões de matriz africanas.

Esse é, em linhas muito gerais, o contexto histórico que se encontra na raiz do racismo e da violência cotidiana que corrói cada vez mais profundamente o estado de direito e a democracia no Brasil e que raramente mobiliza, a não ser excepcionalmente, as chamadas classes média e alta em nossa sociedade. E tudo isso à revelia das análises e estatísticas de violência produzidas regularmente ao longo das últimas duas décadas, em especial, desde que começaram a ser publicados os “Mapas da Violência”, a partir dos dados da Base de Dados Nacional do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Datasus (Ministério da Saúde).

Ou seja, não podemos alegar, em defesa da nossa apatia, o benefício da  ignorância. É como se estivéssemos diante não apenas de uma epidemia crônica de homicídios, mas, ainda pior, de uma epidemia de indiferença, que anestesia os sentidos da sociedade e do Estado. A dor dessas vidas perdidas para a violência letal parece ser uma questão privada de familiares e mães que clamam por justiça, com pouco eco na esfera pública. Não se converte na verdadeira emergência cívica e principal prioridade do país.

Um dos aspectos mais perturbadores dessa realidade é verificar que justamente no período em que o Brasil fazia a transição da ditadura para a democracia, avançando na conquista de um amplo universo de direitos econômicos, políticos e sociais, a violência letal decorrente de homicídios aumentava de maneira espantosa. Verificamos, nos dados do “Mapa da Violência”, que desde 1980, quando a taxa foi de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes, até 2003, quando a taxa chega a 28,9 , um crescimento de 4% por ano. A partir de 2003, consequência, segundo vários estudos, das campanhas de desarmamento e de políticas pontuais de prevenção e redução da violência em alguns estados de grande peso demográfico, as taxas de homicídio tenderam a cair até 2007, quando se verifica o reinício da escalada de mortes.

Um análise mais detalhada dos dados confere credibilidade ao que uma parcela dos movimentos sociais, em especial aqueles ligados aos movimentos negros, classifica como um  verdadeiro “genocídio”, a atingir em cheio a juventude negra. Os números e o perfil das vítimas de homicídios no Brasil confirmam esse cenário: 56 mil pessoas foram assassinadas em 2012. Trinta mil eram jovens entre 15 e 29 anos de idade, 93% do sexo masculino e 77% negros. E a curva de crescimento continua ascendente. Nos últimos dez anos, por exemplo, a violência letal entre os jovens brancos caiu 32,3% e entre os jovens negros aumentou 32,4%. Ou seja, os homicídios de jovens negros são um dos principais pilares que sustentam o aumento das mortes. O outro pilar é a indiferença com a qual a sociedade e o estado tratam essas mortes, como se já tivessem passado a fazer parte da paisagem natural de nossas cidades.

Temos  espantosa realidade de 82 jovens assassinados todos os dias. É como estivéssemos diante da queda de uma avião de médio porte a cada dois dias lotado de jovens e isso mal vira notícia nos jornais. O homicídio foi também a principal causa da morte entre adolescentes com idade entre 12 e 18 anos (45,2%), em cidades com mais de cem mil habitantes. São números equivalentes a soma de mortos em vários conflitos de guerra. A taxa de homicídios no Brasil se encontra entre as maiores do mundo.

Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo.  Conhecemos esses dados, mas naturalizamos o horror. Como se essas mortes fossem destino. Não era. É uma escolha, um resultado de escolhas que fizemos ou deixamos de fazer. Nem mesmo as política de redistribuição de renda e redução da pobreza absoluta implementadas durante a última década foram capazes de alterar esse quadro. O que estamos assistindo, muito provavelmente, é que as mesmas famílias que ascenderam a uma nova (mesmo precária) classe média, perdem filhos, irmãos e maridos para a violência letal. O Brasil saiu do mapa da fome, mas permanecemos invictos no mapa da violência.

O mais chocante, na perspectiva do estado de direito, é que uma parte significativa da letalidade decorre de ações das polícias. Não é exagero dizer que as polícias no Brasil se encontram entre as que mais matam e morrem no mundo. Dados divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 490 policiais tiveram mortes violentas no ano de 2013. No período de 5 anos (2009-2011) a soma é de 1.770 policiais vitimados. Cerca de 75,3 foram mortos fora do horário de serviço. No mesmo período, as polícias brasileiras mataram em serviço – em nome do estado, ou seja, de cada um de nós – 11.197 pessoas, o equivalente ao que as polícias dos EUA mataram em 30 anos.

Esse quadro é o resultado mais acabado do fracasso de uma política de segurança que estabeleceu a guerra como paradigma de ação, onde os inimigos são, em grande medida, os jovens das favelas e das periferias de nossas cidades, em grande maioria negros. Enquanto a segurança pública e os profissionais que atuam nessa área, inclusive e especialmente os policias, não forem reconhecidos como uma prioridade do Estado na defesa e garantia dos direitos humanos de todas as pessoas continuaremos a conviver com esse estado de verdadeira epidemia de homicídios.

Há poucos meses, a Anistia Internacional lançou o relatório“Você matou meu filho – Homicídios cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro”. A pesquisa indica que nos últimos cinco anos, os autos de resistência representaram em média 16% do total de homicídios cometidos na capital fluminense. Em 2012 os homicídios decorrentes de ações de policiais em serviço chegou a representar cerca de 20% do total de homicídios. Em dez anos, entre 2005 e 2014, a polícia matou 8.466 pessoas durante operações policiais no Estado do Rio de Janeiro, sendo 5.132 apenas na capital fluminense. Em 2014, foram 580 vítimas, 244 na capital. Um aumento de quase 40% em relação ao ano anterior. E no ano de 2015 a tendência de aumento persiste. Esses números nos mostram que cerca de 16% do total de homicídios na cidade do Rio foram cometidos por policiais em serviço. Essa instituição que deveria garantir o direito à segurança pública para todos tem sido a responsável por uma parcela significativa do total de homicídios. O mais revoltante é saber que essa prática da polícia não é novidade para ninguém e, no entanto, as autoridades falharam em adotar as medidas para acabar com a alta letalidade da polícia e com as execuções.

Por isso que, às vésperas do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10/12), não devemos temer o reconhecimento de que estamos à beira de um abismo que nos leva em direção  ao estado de exceção e de barbárie. E se não formos capazes de mobilizar o melhor de nós, as forças mais criativas e potentes da sociedade brasileira, em especial aquela representada pelos movimentos culturais e de reivindicação por justiça organizados pelos jovens das periferias e favelas de nossas cidades,  todos sairemos perdendo:  o sistema de justiça, que não dá conta, a polícia que está em guerra contra a sociedade, o chamado “cidadão de bem”, brutalizado pelo medo, a sociedade, que admite e alimenta a vingança em vez da justiça. Perdemos, acima de tudo, a nossa própria humanidade comum.  É hora também de dizer não ao racismo que naturalizou essa violência.

O fim trágico da vida desses jovens vem acompanhado da anulação simbólica de suas histórias, a dor das famílias e dos amigos ignorada, sonhos e trajetórias de vidas suprimidos. Isso ocorre devido à naturalização da violência e a um grau assustador de complacência em relação a essa tragédia. É como se estivéssemos dizendo, como sociedade e governo, que o destino deles já estava traçado. Estavam destinados à tragédia e à morte precoce, violenta, porque nasceram no lugar errado, na classe social errada e com a cor da pele errada, em um país onde o racismo faz parte do processo de socialização e do modo de estruturação do poder na sociedade.

São jovens submetidos constantemente a um processo que os transforma em ameaça, os desumaniza, viram “delinquentes”, “traficantes”, “marginais” ou, às vezes, nem isso, apenas “vítimas” de um contexto de violência e discriminação em relação ao qual a sociedade prefere virar às costas e olhar para o outro lado, com raras exceções.

É preciso quebrar esse padrão de violência e indiferença e compreender que o país está perdendo o melhor da sua juventude. Esses meninos não estavam destinados a morte violenta, mas sim a serem médicos, artistas, engenheiros, professores, filhos e pais, avôs e presidentes da República. E para isso a cultura é o principal instrumento para romper a invisibilidade e reconhecer a potência criativa, de vida, da juventude negra. O novo, a mudança, precisa ser imaginado antes de se tornar realidade.

*Historiador e diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil.

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