Nota da ABA: Sobre o rompimento das barragens de rejeito em Mariana, Minas Gerais

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público manifestar seu pesar e sua solidariedade a todas as vítimas, humanas e não humanas, do rompimento das barragens de rejeitos Fundão e Santarém em Mariana, Minas Gerais. Como associação científica cujas pesquisas se referem, em muitas situações, a comunidades atingidas por grandes empreendimentos minerários, vimos nos somar às vozes da sociedade brasileira que exigem a responsabilização das empresas envolvidas, Vale-BHP Billinton-Samarco, bem como cobrar a celeridade nas ações voltadas para o restabelecimento das vidas dos ecossistemas e comunidades atingidas. Lembramos, neste último caso, que não se trata apenas de indivíduos que perderam casas e propriedades, mas de coletividades que, ao longo da bacia do Rio Doce, assistem ao desaparecimento das condições que sustentavam suas práticas, usos e formas de viver. Enfatizamos a trágica situação das comunidades Paracatu de Baixo e Bento Rodrigues, sendo que essa última, soterrada, teve a especificidade do seu ser, fazer viver, bruscamente interrompida com esse incidente.

Ressaltamos que estudos antropológicos têm evidenciado muitas falhas no licenciamento ambiental de grandes obras, incluindo os projetos de mineração. Estudos de Impacto Ambiental geralmente falhos e mal feitos; licenciamentos fragmentados; licenças concedidas com número excessivo de condicionantes, as quais nem sempre são cumpridas nas fases apropriadas do licenciamento; ausência de participação efetiva da sociedade civil e, sobretudo, dos grupos atingidos; audiências públicas que não cumprem a sua função precípua, mas ocorrem como mero dispositivo burocrático – no que tem se transformado, por fim, o processo de licenciamento como um todo -, são alguns dos elementos destacados por pesquisadores desta Associação.

Algumas dessas características podemos, desde já, reconhecer no licenciamento das estruturas operadas pela Samarco e implicadas no rompimento das barragens. Verifica-se, inicialmente, uma confusão entre as licenças concedidas, suas revalidações e fusões, com sobreposições de projetos, o que dificulta a avaliação de viabilidade socioambiental das sucessivas intervenções, em especial seus efeitos sinérgicos e cumulativos, o que enseja o subdimensionamento dos impactos.

O Relatório de Impactos Ambientais do Projeto Unificação e Alteamento das Barragens de Rejeito Germano e Fundão indicava, por sua vez, a necessidade de ampliação das barragens existentes ou da implantação de novas barragens para atender à operação de uma usina que já se encontrava em instalação. Isso evidencia que a empresa havia investido na ampliação da capacidade de produção, negligenciando o aumento dos riscos envolvidos.

A desconsideração da população afetada é outro aspecto que deve ser destacado. Na fase da Licença Prévia e da Licença de Instalação para Alteamento e Unificação das Barragens de Germano e Fundão, a Samarco S/A afirmou, ao classificar os impactos face às expectativas geradas na população, que não identificou durante os estudos ambientais receio da população entrevistada, em relação ao risco ou à segurança das barragens de Germano e Fundão. Ora, essa afirmação, contrariada por outros estudos já realizados na comunidade de Bento Rodrigues, é bastante grave, pois levou à classificação de impactos como de baixa magnitude, com a previsão de apenas um programa de comunicação social para mitigação dos efeitos, medida mínima e insuficiente.

O estudo desses licenciamentos deixa transparecer um longo caminho ainda a ser percorrido para a efetivação dos direitos humanos socioambientais, garantidos na Constituição de 1988 e em diversos tratados internacionais, dos quais o Brasil é parte. A luta dos(as) trabalhadores(as), movimentos socioambientais e das comunidades impactadas por grandes empreendimentos requer que esses novos direitos sejam incorporados ao Direito Minerário. Por influência do setor minerário, evidenciada em financiamentos de campanhas eleitorais, não foram incluídas no Projeto de Lei do Novo Código de Mineração, em tramitação na Câmara dos Deputados, as mudanças necessárias para a proteção das comunidades, dos seus territórios e dos(as) trabalhadores(as). O desastre ocorrido no dia 05 de novembro último expõe de uma forma muito triste e cruel, as consequências irreversíveis do não cumprimento da garantia desses direitos.

Por fim, preocupa o Projeto de Lei 2.946/2015 enviado pelo governador Pimentel para ser votado em caráter de urgência pela Assembléia Legislativa do estado de Minas. Nele, retira-se da sociedade civil e dos grupos atingidos a possibilidade de participação nas decisões sobre a mineração e demais projetos; cria-se uma superintendência de projetos prioritários com poderes para intervir no licenciamento, em qualquer de suas fases, a fim de conclui-lo e, de forma ainda mais preocupante, desvincula das decisões as anuências de órgãos como a FUNAI, o IPHAN e a Fundação Palmares, responsáveis pelas políticas territoriais que envolvem povos indígenas, quilombolas e tradicionais, bem como o patrimônio histórico e cultural, frequentemente impactados por esses projetos. Tal PL, na esfera estadual, associa-se ao PL 654/2015 do Senador Romero Jucá, na esfera federal, assim como à PEC 215 e à revisão do Código da Mineração, configurando grande golpe aos direitos constitucionalmente assegurados aos povos indígenas, quilombolas e tradicionais.

Entendendo que o rompimento das barragens resulta de um conjunto de negligências do Estado brasileiro no acompanhamento da garantia dos direitos constitucionais, a ABA vem se pronunciar no intuito se solidarizar com a população atingida e requerer que:

  1. O Conselho Nacional de Direitos Humanos notifique os organismos internacionais dos quais o Brasil é parte, sobre as violações de direitos humanos praticadas pela SAMARCO S.A, Vale e BHP Billiton, signatárias do Pacto Global do setor empresarial, e em especial o descumprimento do programa APELL for Mining;
  2. O Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais, e o do Espírito Santo, se empenhem na investigação e responsabilização dos danos causados pelo rompimento das barragens;
  3. Que sejam arquivados o PL Estadual (MG) 2.946/2015, o PL Federal 654/2015, a PEC 215 e a revisão do Código da Mineração, nas respectivas esferas de tramitação.

Associação Brasileira de Antropologia e seu

Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos

Destaque: Foto: Cristina Boeckel/G1.

 

Comments (1)

  1. Esse foi foi um dos textos mais esclarecedores e objetivos que já li desde esta tragédia! A população em especial de Minas Gerais precisa tomar nota sobre os Projetos de Lei citados e os políticos responsáveis para que seja cobrado um posicionamento coerente.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.