A onipresente publicidade infantil na internet

Quase desconhecidas e totalmente descontroladas, campanhas invadem quotidiano das crianças, exploram vulnerabilidades e instigam desejo de consumo obsessivo

Por Lais Fontenelle Pereira, em Outras Palavras

A comunicação de mercado se reinventou e hoje fala 24 horas por dia com as crianças, num formato transmídia de publicidade que tem a internet como centro. Isso acontece em consonância com a realidade explícita nos dados de janeiro de 2014 da pesquisa comScore, que apontam: o número de crianças e adolescentes nas redes sociais brasileiras aumentou 118% entre 2012 e 2013 – de 4,3 milhões para 9,4 milhões de usuários com mais de 18 horas mensais conectados.

Ao incluir questões sobre publicidade e consumo, a pesquisa Kids Online Brasil 2014 mostrou que o mercado tem conseguido atingir seu alvo: entre as crianças e adolescentes de 11 a 17 anos usuários da internet, 77% possuíam perfil no Facebook e, desse montante, 80 % reconheceram ter tido acesso a publicidade pela TV, 61% pelas redes sociais e 30% pelos jogos.

Mas a mudança mais radical talvez tenha sido a inauguração da convergência midiática, em particular pela intensificação do uso das mídias móveis, os tablets e smartphones, por crianças, e que assim passaram a ser interpeladas intensa e abusivamente pela publicidade. Nos ambientes de mobilidade, o assédio das crianças sem a mediação do adulto é tão mais facilitado quanto difícil se torna para as crianças identificar os apelos do marketing. O leque de formatos possíveis de inserção comercial na web é infinito: banners, patrocínios, email, pop up, entre muitas outas novidades, o que implica riscos que passam pela compra inadvertida de produtos até a exposição de dados privados ou sigilosos.

Outra questão é que as crianças, atualmente, são além de expectadoras também produtoras de conteúdo comercial. Portais voltados ao público infantil, têm sido lançados por empresas que aproveitam o interesse das crianças por conhecimento, entretenimento e tecnologia para anunciar seus serviços e produtos, por meio de conteúdo supostamente educacional e de entretenimento. Produtos alimentícios e brinquedos, por exemplo, são apresentados em meio a jogos, atividades e vídeos na forma de “advergames”, que disfarçam seu propósito comercial e associam na memória das crianças a imagem da marca a conteúdos positivos.

Também na internet e redes sociais, uma técnica recente merece atenção: unboxing ou unwarping (termo em inglês para o ato de desembalar um produto), último formato de publicidade dirigida às crianças, já virou febre entre as menores de 4 anos. Ela traz as próprias crianças como produtoras desse conteúdo, além de consumidoras. A publicidade consiste em vídeos no youtube em que crianças (ou mãos adultas) desembrulham objetos, brinquedos em especial, com uma narração. Ao apresentar e desvendar o objeto, essa técnica tem o poder de incitar o desejo nas crianças, além de interferir no seu brincar – ditando regras e assim contribuindo para reduzir sua capacidade imaginativa.

O maior canal do gênero, o FuntoyzCollector – antes chamado de DisneyToyCollector, direcionado para bebês e crianças em idade pré-escolar, tem hoje mais de 5 milhões de assinantes e 7 bilhões de visualizações. Segundo recente reportagem do Gizmodo, a popularidade dos vídeos de unboxing cresceu 57% no ano passado, conforme o Google, e o número de vídeos enviados, 50%. Uma simples busca no Youtube gera mais de 20 milhões de vídeos, que no ano passado ultrapassaram um bilhão de visualizações. Isso demonstra o alcance dessa comunicação de mercado “camuflada” de entretenimento para crianças.

Temos também acompanhado, nesses tempos de consumo e conectividade, o crescimento dos Youtubers mirins vendendo produtos. Trata-se de pequenas celebridades que detêm canais no Youtube e perfis em diferentes redes sociais, em geral Instagram, e que chegam a mais de 240 mil assinantes ou seguidores e impressionantes 91.974.702 visualizações de seus vídeos. Essas crianças recebem presentes e são cooptadas pelas marcas para trabalhar para elas, de forma velada, vendendo produtos em seus canais e criando fidelidade e adesão entre seus pares.

Defesa do consumidor

O projeto Criança e Consumo do Instituto Alana enviou em setembro, ao Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro uma representação contra a empresa Foroni pela sua estratégia de comunicação mercadológica da “Promoção Desafio Foroni”. Trata-se de um exemplo de publicidade transmídia: a campanha incentivava a comunidade escolar a produzir um vídeo que tivesse como trilha sonora o jingle do comercial da Foroni, e os participantes concorriam a cadernos, notebook, projetores e viagens a Orlando (EUA) e Vancouver (Canadá).

Para promover o Desafio, foi desenvolvida uma comunicação mercadológica em diferentes âmbitos do cotidiano das crianças. Na televisão circulava um vídeo de inspiração da Promoção tendo como cenário o ambiente escolar. Crianças e adolescentes conhecidas por serem blogueiros, vlogers ou youtubers mirins recebiam produtos da empresa.

Assim, a corporação explorou diversos âmbitos do universo infantil, de modo a que as crianças vivenciassem a marca e se tornassem suas consumidoras e promotoras de vendas – sejam as que assistem ao comercial e reproduzem a mensagem a familiares; as que fazem o vídeo e a publicidade gratuita da empresa; ou ainda o youtuber mirim, que recebe os produtos para divulgá-los. Não deixavam saída para as crianças.

Sabemos que publicidade para crianças com menos de 12 anos é considerada abusiva e ilegal, segundo artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor. Sabemos também que, em sociedades de consumo como a nossa, publicidade é a “alma do negócio”: estimula as compras, aquece a produção, gera empregos e renda e é considerada relevante no desenvolvimento econômico do país. Entretanto, nenhum tipo de desenvolvimento, seja ele econômico, tecnológico ou científico, deveria ser mais importante que o desenvolvimento psicológico e cognitivo infantil.

Os impactos sociais, ambientais e econômicos da publicidade infantil merecem atenção. Todos os agentes sociais, e aí se incluem família, Estado, educadores e mercado, têm a responsabilidade compartilhada de transformar essa realidade e ditar novos paradigmas para as crianças. Denunciar, fiscalizar e coibir excessos são formas de pressão para alcançar a efetividade da lei.

Para ajudar a sociedade civil na proteção dos direitos da criança frente à publicidade infantil, o Instituto Alana lançou ferramentas no seu projeto Prioridade Absoluta. A publicidade infantil merece nossa atenção: até quando vamos permitir a mercantilização impune de nossas crianças?

Imagem: Isabelle Arsenault, Minds.

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