Dia militante em Altamira, por Claret Fernandes*

*para Combate Racismo Ambiental

Sofia está perdida naquele ambiente destroçada. Não tem mais as referências: a Peixaria da Graça, o Bar da Loura, a Geleira, as ruas da Amizade, da Esperança, da Concórdia, da Olaria, tudo virou pó.  É uma visitante que não sabe pra onde ir. O baixão, em Altamira, antes lotado de casa e de gente, agora é um deserto. Coisa brutal!  Na sua mente, lembranças dos interditos proibitórios impostos a militantes do MAB por parte da Norte Energia. Um deles é preso na luta contra a privatização da água. O caso é assim: a Prefeitura envia à Câmara Projeto de Lei 132 que cria a Coordenadoria de Saneamento do Município e, no seu artigo 4º, autoriza a Prefeitura a terceirizar os serviços para empresa privada sem discussão com a população e com os demais poderes. Isso gerou revolta e protestos.

Em meio aos rastros de prepotência, porém, Sofia tem um sentimento de alegria. O Conselho Nacional de Direito Humano – CNDH aprova relatório sobre Belo Monte, no dia 8 de agosto, recomendando aos órgãos públicos que ‘exijam o cumprimento efetivo e integral de todas as condicionantes do Plano Básico Ambiental – PBA’. Apensa não concorda com o termo ‘recomendar’, acha pouco. Outra notícia que lhe agrada, mais recente, é que o IBAMA, na pessoa de seu diretor de licenciamento, Tomaz Miazaki, nega pedido de Licença de Operação à empresa no dia 22 de setembro. São apontados 12 itens pendentes. A LO é a última de três licenças, que autoriza o enchimento do lago, e foi solicitada no dia 11 de fevereiro. Verdade ou não, dizem que a Norte Energia estaria decepcionada com essa decisão, pois, no seu calendário, já venderia energia em novembro. Pode ser! Mas leis são fios tênues perante o império econômico, a não ser quando instrumentos de luta.

 Enquanto está sob a sombra de uma das pouquíssimas árvores restantes, juntamente com outros visitantes, Sofia vê alguém que passa e lhe sorri e, olhando-a no rosto, aponta o dedo e diz: ‘seus companheiros estão lá’. O passante a reconheceu. É o que faltava. Ela sai da sombra. Ainda não está tão certa do caminho, mas não tem mais dúvida da direção, duas coisas completamente diferentes. Avista um carro conhecido, dos pais de Amanda, vê um rebuliço de gente, na varanda da casa. Aproxima-se. Estão mesmo ali, na Carla!

Os recém-chegados com Sofia sobem a escadinha, que dá acesso ao assoalho. Cumprimentam-se, abraçam-se. Sofia, embora tímida, gosta desse jeito dos lutadores, onde militantes novatos são tratados como velhos conhecidos, com laços mais fortes que os de sangue. Um gravador, no chão, quase é atropelado. O pé passa rente, mas, por sorte, não esbarra, e, após o susto, vem o respiro aliviado. Retomam-se os trabalhos: Carla está sendo entrevistada!  Cada qual, então, vai se ajeitando, no chão, numa tábua ou de pé, escorado no parapeito da varanda. Enquanto a Militante vai ajudando na tradução, alguns catam laranja no assoalho, num saco de linhagem, e chupam. Finda a entrevista. Tiram-se fotos de praxe. E todos vão almoçar na casa de Amanda, um convite irrecusável de seus pais. Já passa de meio dia!

Apesar do tempo medido, o ambiente agradável da casa de Amanda, com uma área aos fundos, faz do almoço um momento ímpar. Risos, histórias. O processo de luta costuma transformar grandes apertos em belas piadas. Um que outro passa por uma madorna. Mas o relógio, que não dorme, põe fim ao breve descanso. É hora de enfrentar o trânsito caótico para chegar ao Jatobá. Nova entrevista de militantes locais com os norte-americanos. Eles querem saber tudo: as pendências, a forma de organização do Movimento. Partilham, também, suas lutas; contam que, em Detroit, muitas famílias não pagavam sua conta de água pelo alto preço e tinham o serviço cortado. Então organizaram as ‘senhoras das águas’, 12 mulheres que, discretamente, às vezes à noite, visitavam as casas e religavam a água.

 Encerrados os trabalhos de entrevista, despedem-se, pois precisam passar pela secretaria do MAB, tomar um banho rápido e seguir para a UFPA para um último compromisso, à noite. Sofia e seus companheiros permanecem com as mulheres militantes, cuja sabedoria impressiona as visitas. A luta é uma escola! Elas, diria Sofia, cultivam a dialética. Matilde, especialmente, fala do Xingu como quem chora um ente querido. Um corte na carne! Lembra a vida nova que nasce com a organização, nos grupos de base, nos enfrentamentos. Longe do discurso verde irresponsável  e do pragmatismo desenvolvimentista neoliberal inconsequente – ambos capitalistas, duas pontas de um mesmo novelo. Para Matilde, o  Xingu é água, é peixe, é planta, mas, principalmente, são seus povos. A sua noção de Xingu inclui a função social do rio. Assim, ficar sem o rio é morrer aos poucos, e mais apressadamente, de saudade, da privação do pescado, do lazer, da qualidade de vida que ele oferece. Matilde entende que esse, sim, é um crime hediondo: transformar uso social de qualquer bem natural em uso privado.

Matilde não é das que fazem elogio à miséria como se viver empobrecida fosse uma opção. O baixão nunca foi fácil: nuvem de muriçoca, água de má qualidade, ruas escuras, traficantes de fora alojados ali, batidas frequentes da Polícia. O filho da vizinha morre com uma bala na cabeça, trauma que está gravado na sua memória. O transtorno de todo ano, nas águas grandes, ter que mudar-se para o parque de exposições, ficar lá até três meses, ser humilhada, sob lona, implorando uma cesta básica, invejando os cavalos de raça na baia ao lado, com muita comida, pelo liso e dono enricado. Matilde esboça um sorriso, e confessa que, naquele sofrimento todo, desejou, ardentemente, ser um cavalo e ter dono.  Mas agora não! Quer ser pessoa  de verdade, sem dono. Na luta, vem aprendendo que a liberdade vale mais que tudo. E hoje sonha com ela, noite e dia. Matilde até aceita que sua casinha agora, embora muito longe do seu direito, é melhor que antes. Reconhece, porém, que a casa de muitos, nas palafitas, eram muito melhores. Sua convicção é de que a vida dos atingidos, no seu conjunto, piorou. É que o grande céu se faz de pedacinhos de paraíso, coisinhas de nada, plenas de história e sentimento, e esses, quase todos, estão soterrados nos destroços: o baixão por dentro, a relação de vizinhança, a proximidade do rio, a facilidade de acesso ao centro da cidade, o ursinho de pelúcia, a conquista coletiva da caixa d’água, a quadrilha na Olaria e o sonho aguçado da redenção, agora um pesadelo. Matilde termina assim: ‘ainda bem que a organização plantada lá persiste cá, nos grupos de base, essa arte de transformar revezes da vida em possibilidades’.

Sofia entende muito bem a metáfora de Matilde. Por fora, o baixão parece todo igual, mas por dentro tem suas nuances, suas peculiaridades; inferno e céu ao mesmo tempo, um materializado na histórica negação do direito e, o outro, na capacidade criativa do povo em luta pela sobrevivência.  Boa parte das moradias por dentro é um brinco: bem arejadas, aconchegantes, fartas de carinho e alimento. A casa de Nalda, então, era singular! Se Norte Energia e Governo inflacionam o inferno é pra fazer Belo Monte soar à redenção. Hoje isso soa balofo. A palavra final, novamente, está com o povo, na rebeldia organizada.

Na volta pra Brasil Novo, onde está hospedada, entre os solavancos da Kombi, a algazarra dos amigos, o cochilo e a consciência, Sofia vai refletindo o dia. Vem-lhe à cabeça cada momento, um filme. A labuta de Letícia pra acordar todo mundo cedo, na hora de sair para Altamira. Não é fácil! Uns adoram a cama de manhã, outros gostam de banho demorado, há até quem gaste um tempo na maquiagem como se preparasse pra uma festa. Mas Sofia é prática, nesse aspecto: quem luta quotidianamente pela classe trabalhadora e não muda de lado nem na vitória nem na derrota merece todo respeito.

Pegando o caderno de anotações, Sofia lê uma afirmação de Thaís Santi, Procuradora da República em Altamira: ‘o que é preciso dizer ao governo federal é que, se a escolha governamental é usar o Xingu para gerar energia, isso tem que ser feito dentro da lei’. Depois vai ruminando dois pensamentos-chave de coisas que ouvira durante o dia.  Na questão indígena, a palavra é retrocesso. Na Constituição de 1988 se conquistou o direito da sua autodeterminação, hoje, 27 anos depois, ganha força a incorporação. O segundo pensamento é o significado de ‘interesse nacional’. O que é isso? O interesse do dominador, do mais forte. A minoria teria que ceder a favor de uma  suposta maioria, denominada genericamente de Pátria. No caso de Belo Monte, uma ‘minoria’ de mais de 40 mil pessoas. ‘Interesse nacional’, assim, é um salvo-conduto que permite todo tipo de barbárie, desde a ilegalidade ao desrespeito ao Direito Humano. É a senha do neocolonialismo, onde pessoas viram apenas números, um estorvo que precisa ser removido, e o projeto de dominação vira o sujeito da história.

Os olhos de Sofia pesam de sono. Mas ainda encontra energia para lembrar-se de um fato, quase anedótico: ao invés de retirar famílias que serão afetadas com o enchimento do lago de Belo Monte, no bairro Independente II, a Norte Energia propõe instalar uma bomba para, permanentemente, retirar a água.

Letícia cutuca, delicadamente, a costela de Sofia. Ela acorda meio assustada, repara em volta, olha a cerca de madeira, em frente, reconhece a casa, e exclama: ‘chegamos!’.

*Missionário na Prelazia do Xingu e militante do MAB.

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