Pesquisa revela que índio foi a primeira vítima de crime homofóbico no Brasil

Tibira, da tribo dos tupinambás, foi morto a mando do capuchinho francês Yves d’Évreux. Seu corpo foi colocado na boca de um canhão e estraçalhado. Seu “crime”: era homossexual

Por Euler de França Belém, no Jornal Opção

A reportagem “Amor de índio”, de André Bernardo, publicada na excelente revista “Aventuras na História”, revela que o índio Tibira foi a primeira vítima de crime homofóbico no Brasil. “No ano de 1614, o missionário francês Yves d’Évreux (1577-1632), da Ordem dos Capuchinhos, ordenou a prisão, tortura e execução do índio Tibira, da tribo dos tupinambás, sob o pretexto de ‘purificar a terra do abominável pecado da sodomia’”, relata André Bernardo.

Tibira fugiu, mas foi capturado pelos franceses, com o apoio de alguns índios. “Amarrado pela cintura à boca de um canhão, ‘onde deitaram-lhe ferros aos pés’, teve seu corpo destroçado. Parte dele caiu aos pés do forte [de São Luís do Maranhão]. A outra desapareceu no mar.” Yves d’Évreux, ao contar a história no livro “Viagem ao Norte do Brasil nos Anos de 1613 e 1614” (“Voyage Dans le Nord du Brésil Fait Durant les Annés 1613 et 1614”), escreveu que Tibira era um homem “bruto, mais cavalo do que homem”. O religioso batizou-o, pouco antes de mandar matá-lo, com o nome de Dimas (referência ao “bom ladrão”, o que foi perdoado por Jesus Cristo na cruz).A reportagem “Amor de índio”, de André Bernardo, publicada na excelente revista “Aventuras na História”, revela que o índio Tibira foi a primeira vítima de crime homofóbico no Brasil.

“No ano de 1614, o missionário francês Yves d’Évreux (1577-1632), da Ordem dos Capuchinhos, ordenou a prisão, tortura e execução do índio Tibira, da tribo dos tupinambás, sob o pretexto de ‘purificar a terra do abominável pecado da sodomia’”, relata André Bernardo.

Ouvido pela “Aventuras na História”, Luiz Mott, doutor em antropologia pela Unicamp, sublinha que não há “notícia no Brasil de outros criminosos que tivessem sido executados na boca de um canhão”.Yves d’Évreux colheu as supostas últimas palavras de Tibira: “Vou morrer. Não tenho mais medo de Jurupari (diabo). Agora, sou filho de Deus”. Os franceses mandaram um tupinambá mata-lo. “Morres por teus crimes, aprovamos tua morte e eu mesmo quero pôr fogo no canhão para que saibam e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que cometeste”, disse o índio Caruatapirã, o algoz. Os termos evidentemente são transcrições do capuchinho.

Luiz Mott sugere que, “ao castigar um adepto da sodomia com a pena capital, os religiosos aplicavam a pedagogia do medo não só para erradicar a abominação da terra selvagem mas também para inibir sua prática nefanda entre os colonos”. André Bernardo escreve que, “no Brasil colonial, a utilização de um canhão como instrumento de execução pode ser explicada como artifício para espetacularizar a morte de um pecador. Segundo Mott, o extremismo homofóbico perpetrado no Ma­ranhão infringia o próprio Direito Canônico da Igreja Católica, que não autorizava missionários a condenar suspeitos de sodomia à morte”.

Para Luiz Mott, “a execução de Tibira foi totalmente arbitrária. Só o Tribunal do Santo Ofício tinha jurisdição papal para queimar sodomitas”. Pode-se dizer, portanto, que o capuchinho cometeu um crime ao autorizar o assassinato.

Sexo entre os índios

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, sugere que a constituição do ser humano é bissexual. Há quem fale numa pansexualidade. Porém, para parte dos religiosos, uma pessoa é heterossexual — que seria o “certo” — ou é homossexual, o supostamente “errado”. A sexualidade dos índios brasileiros era, por assim dizer, “aberta”. Os europeus ficaram estupefatos com a liberdade dos indígenas, com sua falta de “limites”, com seus valores “menos rígidos”.

Num documento de 1549, o jesuíta português Padre Manuel da Nóbrega revela — a revista prefere o termo “denuncia” — à Coroa Portuguesa que “os índios do Brasil cometem pecados que clamam aos céus”. No “Tratado Descritivo do Brasil”, de 1587, o historiador português Gabriel Soares de Sousa registra: “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado que eles não cometam”. O prazer desabrido dos índios incomodava, sobretudo assustava, os portugueses. Mas decerto também atraía.

O comportamento de algumas mulheres, as çacoaimbeguiras, também assustava os portugueses, principalmente quando “saíam para caçar, participavam de guerras, tinham esposas”. O historiador português Pero de Magalhães Gandavo, no “Tratado da Terra do Brasil”, de 1576, escreveu: “Algumas índias deixam todo o exercício de mulheres e, imitando os homens, seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada. E assim se conservam como marido e mulher”.

Para o desconforto de Yves d’Évreux, não havia prática de homossexualidade apenas entre os tupinambás. André Bernardo anota que “outras etnias, como guaicurus, xambioás, nambiquaras, bororos e tikunas também eram adeptas da homossexualidade”.

O sociólogo Estevão Rafael Fernandes, professor da Uni­versidade Federal de Rondônia e doutor pela UnB, disse à “Aventuras na História” que a homossexualidade “era comum em sociedades indígenas brasileiras, e não havia estigma no grupo. Há várias fontes que apontam para um papel espiritual desempenhado por esses indivíduos [homossexuais] nas aldeias. O que os missionários e colonizadores percebiam como depravação era, muitas vezes, potencial xamânico para os indígenas”.

Índios homossexuais dos Estados Unidos e do Canadá, perseguidos por ingleses, franceses e espanhóis, eram chamados, explica Estevão Rafael Fernandes, de “two-spirit” pelos integrantes das tribos. Era uma bênção e não uma maldição “nascer com ‘dois espíritos’”.

Cordel e cinema

A história de Tibira, depois de quatro séculos, continua forte na cultura — livros, filmes e cordéis. A pesquisadora Salete Maria da Silva, da Universidade Federal da Bahia, escreveu o cordel “Tibira do Maranhão”.

Autor de “São Tibira do Ma­ranhão”, Luiz Mott sugere, reporta André Bernardo, “a canonização de Tibira como o primeiro mártir gay indígena brasileiro”.

O documentário “Tibira É Gay”, do cineasta Emílio Gallo, discute a homossexualidade de quatro índios da tribo dos maués. É de 2007.

Destaque: Luiz Mott

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