Ruralismo arcaico promove conflito contra comunidade indígena em Mato Grosso do Sul

Por Roberto Liebgott, Cimi Regional Sul

Num país como o nosso, dê o agro a um governante sensato e ele moverá o Brasil”. A formulação é de Kátia Abreu (Folha de S. Paulo, 24/05/14), mas entre os parlamentares brasileiros a premissa é quase consensual. O setor do agronegócio seria a alavanca, e, para ele, todas as concessões parecem pequenas. Os conflitos de terra que assolam o Brasil são vistos como efeitos colaterais no movimento dessa alavanca que supostamente geraria, para o Brasil, ordem e progresso.

A alavanca do agronegócio tem, de fato, movido o Brasil, mas não em direção ao equilíbrio, à segurança e à rentabilidade econômica prometida e sim em direção a um abismo, no qual declinam os princípios éticos, os valores sociais e humanos, os preceitos constitucionais que asseguram aos povos indígenas o respeito às suas formas de vida e aos seus territórios. A alavanca do agronegócio vai (re)movendo, de acordo com interesses e necessidades dos setores nele representados, os obstáculos que impedem seu movimento e sua expansão. Vai esmagando aqueles que não se dobram ao produtivismo, aqueles que são tidos como obsoletos.

O conflito de terras que presenciamos hoje no estado de Mato Grosso do Sul e, mais especificamente, no município de Antônio João, é emblemático para entendermos para onde a alavanca do agronegócio tem nos conduzido.

Conforme se define no texto constitucional brasileiro, a demarcação de terras indígenas é um procedimento administrativo a partir do qual o governo federal reconhece a tradicionalidade da ocupação indígena, e se responsabiliza pela garantia de usufruto exclusivo por parte destes.

Em 1999 o governo federal iniciou os trabalhos de identificação da Terra Indígena Ñanderú Marangatú. Passados 16 anos, esse processo ainda não foi finalizado. Em março de 2005, a área chegou a ser homologada com uma extensão de 9.241 hectares. Depois da homologação, as comunidades Kaiowá e Guarani iniciaram um processo de retomada, visto que suas terras estão invadidas por fazendas. Contudo, por ser uma área ocupada por fazendeiros e de grande interesse para o agronegócio, ainda em 2005 o então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim suspendeu, por intermédio de uma liminar, o decreto de homologação e a comunidade indígena foi despejada. A suspensão impediu ainda que a área indígena fosse registrada no Serviço de Patrimônio da União (SPU), última etapa do processo demarcatório.

Uma longa espera se sucedeu, na qual os Kaiowá e Guarani pacientemente aguardaram que fossem retomados os procedimentos de desintrusão de seu território tradicional, mas, nestes dez anos, após a homologação, nenhuma medida concreta foi tomada pelo governo federal para assegurar a posse e usufruto exclusivo destes povos sobre suas terras.

A vida em acampamentos se mostrou insustentável para os Kaiowá e Guarani e, por isso, em agosto deste ano eles retomaram as fazendas Primavera, Fronteira, Cedro, Bananal e Barra, situadas dentro dos limites de seu território.

Estas retomadas têm sido desqualificadas, criminalizadas e nomeadas como atos de invasão por parlamentares e ruralistas da região. Dentre as vozes mais ferozes que se erguem contra os Kaiowá e Guarani estão as de Roseli Ruiz, presidente do Sindicato Rural de Antônio João, e a de sua filha, Luana Ruiz. Herdeiras de uma tradição ruralista arcaica, ambas têm atacado pública e abertamente as instituições (governamentais e não governamentais) que atuam na defesa dos direitos indígenas. Declarações depreciativas sobre a Fundação Nacional do Índio (Funai), sobre o Ministério Público Federal (MPF), por exemplo, têm sido frequentes.

Em vídeos postados na internet, mãe e filha têm convocado os setores do agronegócio a unirem-se contra aqueles que ameaçam os interesses de proprietários rurais (ainda que esses interesses colidam frontalmente com os preceitos constitucionais). E elas não têm economizado palavras de ódio no intuito de difamar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cuja trajetória histórica de mais de 40 anos evidencia a seriedade e o compromisso com a vida dos povos indígenas e com o cumprimento dos preceitos constitucionais.

A estratégia utilizada para difamar e estabelecer um sentido indesejável e nefasto à atuação do Cimi expressa, por tabela, todo o preconceito destilado contra os Kaiowá e Guarani. O preconceito se manifesta, por exemplo, na ideia de que os indígenas seriam “massa de manobra”, manipuláveis ou incapazes de promover autonomamente ações em favor da garantia de seus direitos territoriais.

Ao afirmar, em redes sociais, que “o Cimi insiste em dizer para os índios que eles têm direitos que não tem”, tentam fazer letra morta as garantias expressas no Artigo 231 da Constituição Federal e, por outro lado, o sentido do ato administrativo de demarcação. Se a terra indígena Ñanderú Marangatú foi demarcada, o Estado reconheceu, no ato da demarcação, o direito originário, inalienável e imprescritível dos Guarani e Kaiowá. Felizmente, apesar das pressões parlamentares e ruralistas, os preceitos constitucionais são soberanos e definem os caminhos para a resolução de embates fundiários: as terras indígenas são bens da União e os títulos que sobre elas incidirem são nulos. Nos termos da lei, não são os interesses dos fortes, os desbravadores, os impetuosos que prevalecem, e sim daqueles para quem a terra é mais do que um recurso econômico.

Por fim, enquanto os Guarani e Kaiowá buscam soluções para assegurar sua sobrevivência física e cultural, seguem as incitações para que agricultores do Mato Grosso do Sul e fazendeiros do Paraná, mais especificamente da região de Guaíra, se posicionem contra as ações dos povos indígenas. Expressões como “estamos dispostos a matar ou morrer” têm sido usualmente utilizadas em postagens irresponsáveis. Estas sim são um perigoso chamado à intolerância e à violência.

As consequências desses ataques se expressam, por exemplo, em atos covardes como o assassinato de Semião Vilhalva, na manhã do dia 29 de agosto, durante o ataque de fazendeiros contra os Kaiowá e Guarani. Ele tinha apenas 24 anos, estava desarmado, procurava o filho à beira de um córrego e foi morto com um tiro no rosto.

Versões fantasiosas foram veiculadas na internet e em jornais locais onde se dizia que Semião estaria morto há mais de 24 horas. Tais versões, ao que parece, tinham a intenção de imputar aos próprios indígenas a morte do Semião e desviar o foco dos fazendeiros que, a partir de uma reunião realizada no Sindicato Rural de Antônio João, decidiram enfrentar os indígenas e expulsá-los das áreas ocupadas.

Não há como entender esse assassinato, senão como efeito da intolerância instituída, da vontade de exterminar aqueles que lutam para restabelecer seus espaços tradicionais de vida. Atos de intolerância não são isolados, são manifestações extremas de um pensamento cultivado, alimentado, reforçado, por exemplo, em manifestações ferozes e irresponsáveis de ruralistas que não têm apreço à verdade e à justiça.

Retomando a alegoria de Kátia Abreu, com a qual se inicia este texto, a alavanca do agronegócio tem movido muito mais do que empreendimentos e fortunas, ela tem promovido a violência, o preconceito e o desrespeito pela vida. A imagem da alavanca também pode ser útil para se pensar como se deu o assassinato de Semião Vilhalva: dê força ao pensamento intolerante e preconceituoso de um ser arrogante e ele moverá a mão que aciona o gatilho.

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