Das peripécias do prefeito

Elaine Tavares – Palavras Insurgentes

O preconceito nasce da mentira, da ideologia (que é a falsa consciência) e do medo daquilo que, para nós, aparece como diferente. Daí que a melhor maneira de lidar com isso é o conhecimento, o debate, a livre discussão sobre os temas considerados tabus. Homossexualidade, sexualidade, orientação sexual, feminismo, machismo, são alguns desses temas que, em pleno século XXI, ainda provocam alvoroço. Não sem razão, afinal, estão sempre sendo colocados embaixo do tapete. Por conta disso parece tão surreal a reunião que o prefeito de Florianópolis, César Souza Junior, teve com pastores evangélicos e lideranças católicas. Não que ele não possa conversar com essas pessoas, afinal, são tão cidadãos da cidade quanto qualquer um de nós. Mas o que assusta é o resultado dela.

Segundo se pode observar num vídeo divulgado pelo superintendente do Instituto de Geração de Oportunidades de Florianópolis (Igeof) e pastor da Assembleia de Deus, Everson Mendes, o prefeito se compromete em deixar de fora do Plano Municipal de Educação – que estabelece as políticas por um década – qualquer menção à identidade de gênero ou sexualidade. E mais, diz o prefeito: “A educação e a religião são atribuições da família. A prefeitura e o Estado não podem se intrometer, até porque há muitos outros pontos importantes a serem discutidos (dentro do Plano Municipal de Educação). Da minha caneta, nada que diga respeito a ideologia de gênero será encaminhado à Câmara. Assumimos aqui esse compromisso público”.

A imagem da reunião mostra o prefeito, no centro, e os pastores com as mãos impostas sobre ele, abençoando. Como resumo de tudo, diz o pastor Mendes: “Vitória da família e do povo de Deus”.

O fato em si traz profundas contradições.  Se educação e religião é atribuição da família, como diz o prefeito, então o que a religião tem a dizer ao estado? Se o estado é laico, como pode permitir a interferência da religião nos seus planos para a cidade? Em que medida o Plano Municipal de Educação, ao fazer menção à gênero e sexualidade, está se metendo na família ou na religião? E por que, não discutir gênero ou sexualidade pode ser considerado vitória da família? Discutir machismo, feminismo, sexualidade, orientação sexual e outros temas dessa lavra não só é papel da educação pública, como um dever. É certo que esse não é ponto mais importante num plano de educação, mas não cabe aos religiosos exigirem algo dessa natureza.

Diante de uma realidade nacional, na qual se vê cotidianamente, pessoas agredindo pessoas por conta de sua sexualidade, e até matando por isso, esse passa a ser um tema obrigatório nas escolas. Quando uma criança, desde os primeiros passos escolares, já começa a discutir essas questões, terá, com certeza, muito menos possibilidade de se deixar levar pela ignorância ou pelo preconceito. Isso sim seria a vitória da família, de todo o tipo de família. O município, que é responsável pelo ensino fundamental, não pode ser espaço de obscuridade. Tem, por obrigação, que ser um ambiente de conhecimento, se realmente estiver disposto a formar pessoas críticas e capazes de participar da vida da cidade.

O que choca nesse episódio do encontro do prefeito com os líderes religiosos é a ignorante aquiescência à perpetuação das trevas do desconhecimento e do preconceito. Não falar é se omitir diante da realidade. Não falar é ser conivente com toda a violência que é gerada pelo discurso que confere aos que escolhem caminhos diferentes dos da maioria a marca do “demônio”. Esse é um discurso da idade média, quando o poder religioso temia o conhecimento laico, e que, desgraçadamente, tem reaparecido de forma assustadora.

No princípio, esse tipo de discurso, que paradoxalmente vem da boca daqueles que dizem seguir a Jesus (um homem que só pregou amor), provocou risos e brincadeiras nas redes sociais. Foi tratado como uma aberração. Mas, quando percebemos como tudo isso está se imiscuindo na vida do estado, é hora de olhar para esse discurso de ódio com mais cuidado. Agora, vendo um prefeito, de uma cidade como Florianópolis, constrito diante dos religiosos, submeter-se a esse compromisso, a situação assume formas bem mais sérias. Afinal, se aquele que rege os destinos da cidade, se deixa levar pelas teias do preconceito e confirma a omissão da escola diante dos temas que estão pulando na cara dos educadores, o que mais se pode esperar? Hoje, rende-se a não falar em gênero, amanhã render-se-á a quê mais? Voltaremos aos tempos da ditadura no qual a palavra liberdade não podia ser escrita? O que mais será retirado dos documentos oficiais?

Sabemos que há uma classe de políticos que é capaz das coisas mais vis para garantir votos e governabilidade. Mas, é bom que eles saibam que também há uma comunidade que se move, questiona e reivindica. A escola deveria ser espaço de fomento da democracia e da participação popular,  lugar de vivências humanas amorosas vitais para o futuro das crianças, corrente de discussão de uma nova práxis. Ali, na escola fundamental está o novo, o futuro, e é ali que podemos  mergulhar no conhecimento, oferecendo às crianças outra visão de mundo no qual não caibam a violência e o preconceito.

O prefeito César Souza Junior, ao prometer não incluir esse debate na escola, só perpetua o que, talvez, lhe interesse: a ignorância.

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