Aliança ecológica: ‘Precisamos nos dar conta de que somos integrantes da natureza’

Marcela Belchior – Adital

O Papa Francisco parece nos chamar à consciência para retomarmos a origem da humanidade. Quem nós, humanos, somos neste mundo: viemos da natureza, somos filhos e irmãos da terra, e não seus senhores. Partindo dessa premissa e sintetizando, claramente, sua teologia na Encíclica Laudato Si’, publicada recentemente, tratando especificamente do meio ambiente, o Sumo Pontífice aponta para a maturação de uma Igreja e uma sociedade que há décadas atenta para a simbiose entre ética, política, economia, filosofia e espiritualidade. Bem como gesta uma nova compreensão sobre a aliança entre a humanidade e o ambiente que a abriga.

Para discutir o assunto, a Adital entrevistou o teólogo e professor de Filosofia Rogério Jolins Martins, mestre e doutorando em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Martins explica que a Encíclica propõe fazer uma revisão dessa concepção de pensamento e de atitudes, mas que, para isto, precisa-se de uma mudança espiritual, como dimensão mais profunda do ser humano. “Precisamos nos dar conta de que somos integrantes da natureza e não um corpo à parte”, afirma.

Nesse sentido, as decisões humanas, hoje profundamente vinculadas ao poder do capital, não deveriam estar submetidas à lógica de consumo massivo, ou seja, não é a economia que deve determinar os posicionamentos humanos, mas o contrário. “Isto é processo de conversão”, destaca o teólogo. O colapso do ecossistema leva à derrocada do modelo capitalista. “Não existe poder sem a pessoa. Por isso, a vida vem primeiro e, para vivê-la bem, a proposta da Encíclica é se pautar por consumos moderados e conscientes”, acrescenta.

A mensagem libertadora do Papa Francisco, resultado dessa nova hermenêutica, propõe novos hábitos e desperta a necessidade de renovar um paradigma em direção ao respeito à ecologia e suplantar a lógica da degradação ambiental. Mas tem um grande desafio: atravessar a barreira dos interesses do capital internacional.

“Os países menos privilegiados não têm problema com a Encíclica do Papa. (…) O problema está onde estão os maiores interesses. Por exemplo, sei, por noticiários, que alguns empresários conservadores dos Estados Unidos não estão satisfeitos com os posicionamentos do Papa e tentam lhe impingir a imagem, hoje negativa, de comunista, de populista”, afirma Martins. “Como o grande público não lê a Encíclica para dar-lhe razão, então absorve o que a grande imprensa, geralmente na mão desses homens, divulga”.

ADITAL – O Papa Francisco começa a encíclica Laudato Si’(“Louvado Seja”, em português) criticando a crença de que os humanos sejam proprietários e dominadores da terra que nos rodeia, “autorizados a saqueá-la”. Afirma que, em vez de proprietários, os humanos são filhos ou irmãos da terra. Como podemos compreender esse contraponto sob um ponto de vista teológico?

Rogério Jolins Martins- Não sei se trata-se, estritamente, de um contraponto. Parece que ele chama à consciência para a retomada da nossa origem e de quem nós somos neste mundo: viemos da natureza, da argila (Gn) e do Seu Ruah. Neste caso, somos filhos da terra, ou, pode-se considerar, aqueles que fazem parte do seu processo.

ADITAL – Podemos alcançar alguma compreensão acerca das raízes éticas e espirituais da degradação ambiental provocada pelo ser humano?

RJM – A degradação ambiental teve origem com o processo de hominização. Hoje, com o aumento do número de humanos, há que se preocupar com a natureza, que não suporta um modo depredativo, que foi intensificado a partir de [Francis] Bacon e [René] Descartes. A Encíclica propõe fazer uma revisão desta concepção de pensamento e de atitudes, mas que, para isto, precisa-se de uma mudança espiritual como dimensão mais profunda do ser humano.

ADITAL – Como a ideia de ecologia integral (englobando a preocupação pela natureza, justiça para com os pobres e paz interior) vem sendo difundida pela Igreja Católica ao longo de sua história? Houve significativas mudanças no interior de seu pensamento? É esta uma preocupação maior da religião contemporânea?

RJM – A Encíclica cita as más interpretações que, historicamente, se fez com o trecho que, no Gênesis, fala de “submeter” e “dominar” a terra. Esta compreensão teve seu clímax com Bacon, quando se passou a compreender que a natureza está a serviço do homem e, por isto, seria necessário o homem conhecê-la para dominá-la. Uma preocupação mais explícita por parte da Igreja se dá quando São João XXIII, na Pacem in Terris, sinaliza para uma proposta de paz frente à deterioração com as guerras e também ao ambiente. Daí para cá, o tema passou ser recorrente.

ADITAL – O Para Francisco adverte que, sem uma abertura para a admiração e o encanto com a natureza e o meio ambiente, nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais. Espiritualmente, o que faz parte desse “sentir-se intimamente unido a tudo o que existe”? Que processo é esse?

RJM – Precisamos nos dar conta de que somos integrantes da natureza e não um corpo à parte. A Encíclica considera que, pela tradição judaico-cristã, não podemos nos conceber apenas como integrantes da natureza, mas, mais do que isso, como pertencentes à criação de Deus (p. 62).

ADITAL – Os caminhos para unir toda a “família humana”, conforme diz o Papa, na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, passa por um conjunto complexo de esferas: política, ética, filosófica, espiritual, econômica. Como podemos enxergar elementos de cada uma delas na vida cotidiana?

RJM – Dizia [Michel] Foucault que nossas relações no cotidiano são de poder e, com isto, também política, ética e também de tomada de posicionamentos. A Encíclica chama a atenção que implícita na relação de compra há uma relação moral (p. 166), um agir presente, um modelo de vida. As decisões humanas não deveriam estar submetidas aos produtos que elas compram, ou seja, não é a economia que deve determinar o posicionamento humano, antes o contrário. Isto é processo de conversão.

ADITAL – O Cristianismo prega o olhar sobre os mais pobres, que podemos compreender como os oprimidos, injustiçados e excluídos, nos mais diversos âmbitos. As consequências da degradação ambiental recaem sobre esses de maneira mais dramática? Como?

RJM – Sim, os pobres são mais desorganizados e têm menos recursos para lidarem com a segurança de todo tipo. Por exemplo, não tendo recursos suficientes, constroem em lugares de risco.

ADITAL – O Santo Padre convida todos a renovarem o diálogo sobre como estamos construindo nosso planeta, exaltando os caminhos percorridos pelo movimento ecológico mundial e criticando a recusa dos “poderosos” e o desinteresse da grande parte da população. Quem são os principais mediadores na edificação dessa solidariedade universal?

RJM – A Encíclica retoma um pouco do histórico das reuniões e conferências acerca do meio ambiente, desde Estocolmo [Suécia], em 1972. Os interesses particulares, de cada país, sempre têm prevalecido nesses fóruns. Face à urgente demanda do tema, ele conclama a um diálogo sincero e verdadeiro por parte de todos, no reconhecimento da problemática e na adesão a um projeto comum.

ADITAL – O Sumo Pontífice propõe uma mudança no estilo de vida, relacionado diretamente à ideologia capitalista de produção e consumo, como forma de evitar um colapso dos ecossistemas. De que maneira isso deve ressoar na política internacional, especialmente entre as grandes potências, que se utilizam dos recursos naturais dos países de menor prestígio econômico?

RJM – O desinteresse em aderir a um modelo sustentável é, justamente, por parte desses países, pois têm muito a perder, não só economicamente, mas também em poder de influência e outros. Esquecem-se de que não existe poder sem a pessoa. O colapso do ecossistema leva à derrocada do modelo capitalista. Não existe poder sem a pessoa. Por isso, a vida vem primeiro e, para vivê-la bem, a proposta da Encíclica é pautar se por consumos moderados e conscientes.

ADITAL – De que modo a postura de Francisco deve reverberar em sua relação com os chefes de Estado das grandes potências mundiais? E com os países menos privilegiados?

RJM – Os países menos privilegiados não têm problema com a Encíclica do Papa. Eles já estão acostumados a um modelo de vida austera, a não ser sua pequena elite econômica, que é também política. O problema está onde estão os maiores interesses. Por exemplo, sei, por noticiários, que alguns empresários conservadores dos Estados Unidos não estão satisfeitos com os posicionamentos do Papa e tentam lhe impingir a imagem, hoje negativa, de comunista, de populista e coisas do tipo. Mas são tentativas de desacreditar a pessoa do Papa, pois ele tem conseguido a simpatia não somente dos cristãos católicos, mas de pessoas de outras religiões e até de não crentes. Como o grande público não lê a Encíclica para dar-lhe razão, então absorve o que a grande imprensa, geralmente na mão desses homens, divulga.

ADITAL – Qual a potência da fé e da espiritualidade como mediadoras nesse processo de renovação das relações humanas com os outros elementos cósmicos, que o Papa chama de “aliança entre a humanidade e o ambiente”?

RJM – Primeiro, porque a maioria da humanidade é religiosa e, no fundamento de todas as religiões, há um sentido de compaixão muito forte. Segundo, porque essa nova hermenêutica se torna uma referência clara para os fiéis da Igreja e pessoas de boa vontade, acerca de como pautar as motivações de sua fé na vida cotidiana. Terceiro, porque o elemento fundamental da salvação, que é a Eucaristia, é um dom da criação.

ADITAL – Em diversas passagens da encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco se utiliza de conclusões científicas para legitimar sua argumentação. Em que medida essa conjunção da teologia de Francisco com a ciência renova a Igreja Católica e a mensagem que leva aos seus fieis e não fieis?

RJM – A Igreja acolhe, com satisfação, os resultados da ciência, quando os mesmos visam ao bem comum. Não acolhem e nem devem os resultados como soluções técnicas para os problemas graves do mundo e da vida. Por isso, chama para o diálogo sério e respeitoso. Os homens que fazem ciência, visando ao sentido próprio do conhecimento no benefício de toda humanidade, não têm dificuldade de entender a proposta de Francisco.

ADITAL – Seria precipitado interpretar que vivemos um tempo em que ocorre uma gradual mudança de paradigma dentro da Igreja Católica?

RJM – É interessante a forma como a Encíclica se inicia: faz uma retomada breve do que disseram os últimos papas acerca do meio ambiente. Faz também uma retomada do que as conferências mundiais sobre o meio ambiente disseram. Faz ainda uma retomada da contribuição que diversas conferências episcopais ao redor do mundo deram acerca dessa problemática. Penso que, se há uma mudança de paradigma, ela está acontecendo desde São João XXIII, quando aconteceu o Concílio Vaticano II, sendo também o primeiro papa a que Francisco faz referência com a preocupação com o meio ambiente. Então, essa abertura está sintonizada a partir dessa época.

ADITAL – Possui a mensagem de Francisco poder de ressonância efetivo para dissipar-se por toda a estrutura da Igreja Católica?

RJM – Ele diz que a consciência da crise precisa traduzir-se em novos hábitos. Apesar dos jovens estarem sensíveis à demanda de outro paradigma, de respeito à ecologia, os mesmos nasceram e foram educados num contexto de altíssimo consumo e bem-estar, o que torna difícil a maturação de outros hábitos. Mas é um desafio ao processo educativo (p. 168). Sua palavra tem boa acolhida e incrementa essa sensibilidade que já havia em alguns círculos. Precisa-se da dura tarefa de desfazer-se de um modelo do qual ninguém quer abrir mão.

ADITAL – O pensamento e a atuação do Papa Francisco reforçam a ideologia defendida, nas últimas décadas, pela Teologia da Libertação? Como isto se dá?

RJM – A Teologia da Libertação não é de Francisco, não é de Gustavo Gutierrez, não é de Leonardo Boff, não é de [Jon] Sobrino. É uma teologia pensada a partir do Evangelho e dos pobres. Em outros lugares, o Evangelho foi pensado a partir de seus contextos. Aqui, na América Latina, e ainda com particularidades entre os países, foi pensado de tal modo. Nos Estados Unidos, o Evangelho foi pensado com um cunho liberal, a partir de um modelo político que eles vivem. Assim, a teologia assume o “chão”, a realidade, em que o povo vive. Francisco pensa a partir do seu universo de compreensão do mundo em diálogo com os “outros mundos”.

ADITAL – A teologia do Papa Francisco contribui para aproximar-se de outras concepções religiosas e espirituais? Quais? Em que isso pode beneficiar as relações político-religiosas em âmbito planetário?

RJM – O Papa Francisco pensa na Igreja e no mundo. Daí a Evangelii Gaudium [exortação apostólica do Papa] e a Laudato Si’. Não há uma Igreja isolada no mundo. Ela estabelece uma relação de interdependência com o mundo e também com outras experiências religiosas e outras culturas. Propõe ao mundo a alegria, que consiste em crer, e o contributo da fé cristã. Convida não só os cristãos católicos a se unirem em prol do cuidado com a casa comum. Vê as relações para além dos círculos internos da Igreja. Assim, ao mesmo tempo em que ele pensa a Igreja, pensa também onde a Igreja se situa, e para quem ela está a serviço.

Leia a versão completa da encíclica Laudato Si’em português e en español.

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