O plano nacional de educação na década dos afrodescendentes

Diosmar Filho[1]

Quando vou para Bângala, meio demente
Onde morou Caymmi, nasceu Luíz Gama
Transito nesta irônica antítese – Independência
de tantos dependentes
E passo pelo quase fim da raça humana.
(José Carlos Limeira)[2]

No artigo publicado no Blog Combate Racismo Ambiental[3], apresentei uma reflexão sobre consenso a partir de Frantz Fanon e Milton Santos e como as concessões são nefastas a efetivação das políticas de desenvolvimento da população negra na sociedade brasileira na década dos afrodescendentes.

E neste dialogo tenho como objetivo em primeiro contribuir sobre os possíveis debates no controle social da política pública e em segundo ajudar no zoom sobre as estruturas e as formas da Administração Pública na escala do Estado e de quatro municípios baianos pelo acesso realizado aos recursos da União tendo em vista o desenvolvimento socioeducacional das famílias, comunidades e territórios quilombolas.

O decênio dos afrodescendentes acontece no mesmo espaço e tempo da aplicação da Lei 13.005 do Plano Nacional de Educação-PNE (2014-2024)[4]. O Art. 8º dessa Lei estabelece que “Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei. ”  No inciso II do Art. 8º é estabelecido que os entes federativos “considerem as necessidades específicas das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, asseguradas a equidade educacional e a diversidade cultural. ”

Quanto ao Estado da Bahia, estamos a menos de trinta dias do prazo colocado pela Lei 13.005/2014, e a Secretaria de Educação do Estado (SEC) disponibilizou no site para download a 2ª versão do Plano Estadual de Educação – PEE[5] em elaboração. Contudo, não tem qualquer informação se existe uma consulta pública ou algo similar, o fato é que não fica claro como saíram da primeira para a segunda versão e quais são os processos para a aprovação no Estado.

A versão disponibilizada do PEE não se difere dos princípios e metas estabelecidas no PNE, a questão a ser observada e analisada é como construir indicadores que eleve o Estado para ficar no mínimo entre os dez primeiros no IDEB[6] porque em 2014 ocupava 21ª colocação, sendo ao mesmo tempo a 6º economia do País. Além disso, como irá se efetivar as políticas afirmativas a partir da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todos os níveis educacionais, assim como, os programas e projetos diferenciados para a população negra quilombola.

Sobre o acesso da população negra quilombola às políticas educacionais, no monitoramento do Programa Brasil Quilombola pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR-PR), através do SMPPIR[7] com dados do Censo Escolar – 2013 do INEP/MEC, na Bahia, existem 474 escolas em comunidades ou na sede dos municípios que atendem a 67 mil estudantes quilombolas. Dessas, 188 dispõem de material didático com especificidade ao ensino diferenciado, 14,8% tem acesso à internet, 93,5% tem energia elétrica e 85,5% contam com o abastecimento de água.

A política educacional tem vínculo direto com a política de regularização fundiária, segundo os dados da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Instituto de Colonização e Reforma Agraria (INCRA) e da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA)[8], em 2015, são 614 comunidades com Certidão de Auto-Reconhecimento da FCP (podendo no final do ano alcançar 700 certificadas) e os territórios com título da terra são cerca dezoito.

E aí, começam as contradições ao se pensar no futuro sem avaliação da realidade da população quilombola no Estado que tem o maior número de comunidade com a Certidão de Auto-Reconhecimento, porém, o mais atrasado proporcionalmente na titulação da terra aos territórios quilombolas. Sem avanço na regularização fundiária, qualquer outra política sofrerá atraso na sua efetivação e contribuirá para as assimetrias ao invés de simetrias que depende do reconhecimento e o combate ao racismo institucionalizado nas estruturas e formas que burocratizam e limitam o avanço da agenda de políticas públicas especificas no Brasil.

Outra ponte no diálogo é a Resolução/CD/FNDE nº 32/2006, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para acesso aos recursos no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Pela mesma os Estados, Distrito Federal e Munícipios podem acessar recursos da União através das rubricas orçamentárias (Alimentação Escolar Quilombola e Mais Educação – Quilombolas)[9], em atenção à alimentação diferenciada aos estudantes quilombolas ampliando as estratégias da segurança alimentar no ambiente escolar.

Fonte: FNDE (2014); MDS (2014), FCP (2014).  *Programa Nacional de Alimentação Escolar                     Quilombola (Rubricas: Alimentação Escolar Quilombola e Mais Educação - Quilombolas).                    ** Cadastro de Projetos Sociais do Governo Federal *** Fundação Cultural Palmares
Fonte: FNDE (2014); MDS (2014), FCP (2014). *Programa Nacional de Alimentação Escolar
Quilombola (Rubricas: Alimentação Escolar Quilombola e Mais Educação – Quilombolas).
** Cadastro de Projetos Sociais do Governo Federal *** Fundação Cultural Palmares

O Gráfico “Política de desenvolvimento das famílias e Comunidades Quilombola, por munícipio, Bahia (2014) ”, apresenta os municípios analisados: Maragogipe (Território de Identidade do Recôncavo); Vitoria da Conquista (Território de Identidade de Vitoria da Conquista); Senhor do Bonfim (Território de Identidade do Piemonte do Norte do Itapicuru); e Salvador (Território de Identidade da Região Metropolitana de Salvador). Os espaços de localização são diferentes e estes acessam de forma assimétrica os recursos do PNAE.

No Gráfico se observa a contradição na gestão dos recursos do FNDE e o acesso pelas Prefeituras Municipais de Salvador e Maragogipe. Em 2014, constam no cadastro da FCP apenas quatro comunidades com Certidão de Auto-Reconhecimento e 222 famílias no CadÚNICO, em Salvador, e o município captou no FNDE o montante de R$ 105.600,00. Já o município de Maragogipe tem onze comunidades certificadas e 668 famílias no CadÚNICO representando três vezes mais famílias que Salvador, mas só captou R$ 75.942,00 no FNDE.

O valor captado por Maragogipe representa 80% do valor de Salvador. Existe algo neste processo que não se explica se o debate for pela simples autonomia dos municípios no processo, fica um vazio em saber para que serve os dados do CadÚNICO e a obrigatoriedade das crianças e adolescentes em sala de aula para manutenção dos benefícios como o Bolsa Família que realiza constante recadastramento.

Na escala estadual, o governo por meio da SEC tem acessado os recursos do FNDE, em 2014, captou R$ 2.600.138,00 (dois milhões e seiscentos mil e cento e trinta e oito reais). Pelo Relatório de Informações (RI)[10] do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), no Cadastro de Projetos Sociais do Governo Federal (CadÚNICO) constam 35.080 famílias quilombolas cadastradas, sendo que apenas 27.151 recebem o benefício do Bolsa Família.

A questão central vem da falta de transparência na gestão dos recursos pelos municípios e pelo estado ao ser observada a Resolução/CD/FNDE nº 32/2006 – a gestão dos recursos do PNEA deveria ser realizada com a Conselho de Alimentação Escolar (CAE), o Art. 16 explica que é obrigatório a presença de um represente quilombola no CAE. Tratando do realizado até aqui, nem o governo estadual e nem os municípios têm relatórios disponível da existência do CAE e dados que que comprovem a aplicação dos recursos em escolas com estudantes quilombolas.

Portanto, não dar para olhar a política e achar que ela irá chegar às pessoas que dela dependem simplesmente por bons gestos, que não deixam de ser importante. Porém, tudo isso tem acontecido no âmbito das concessões que tem produzido novas violações na vida daquelas pessoas que mais precisam da política, os sujeitos dela. Na Bahia, gestores responsáveis pela efetividade das políticas afirmativas desde a SEC aos municípios desconhecem ou não tem apropriação sobre as rubricas do PNEA, que entram e saem na conta do Tesouro Estadual e Municipal e ao serem cobrados pedem sempre aos sujeitos que lutem para que a política seja eficaz.

Nesse momento, o PEE avança pela obrigatoriedade e necessidade do Estado para ter acesso aos recursos do Pacto Federativo e cairá pela legalidade sobre a vida da totalidade da população baiana, porém, a população negra não é o princípio, meio e o fim para as políticas, programas e projetos que do plano se pensa, nesse aspecto o discurso conservador é o mesmo a política é universal (não importa a Lei 13.182/2014 que institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate a Intolerância Religiosa) e os mais de 90% da população que se declaram negras.

Por fim, o PNE e a decênio dos afrodescendentes são compromissos que impactam diretamente na vida da população negra no Brasil e na Bahia, e agindo pelas concessões não será enfrentado, tampouco, combatido o racismo estruturado na Administração Pública Brasileira. E se for estratégia da gestão pública e o controle social a efetivação de direitos pelas concessões sua base de pensar e agir, em 2025, teremos indicadores do continuísmo que violentam a população negra, entre séculos e décadas. Só na disputa pelo consenso que essa década proverá real desenvolvimento a população negra no que se refere a cidadania plena.

Notas:

[1] Geógrafo, professor, mestre em Geografia – pesquisador do Grupo de Pesquisa Historicidade do Estado e do Direito (GHED) | Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]

[2] Fragmento do poema Bângala – publicado no livro Ogum’s Toques Negros: Coletânea Poética / Organização de Guellwaar Adún, Mel Adún, Alex Ratts. – Salvador: Editora Ogum’s Toques Negros, 2014. p. 121.

[3] http://racismoambiental.net.br/2015/05/04/decada-dos-afrodescendentes-pelos-consensos-e-nao-as-concessoes/

[4] Sancionado pela presidenta Dilma Roussett em 25 de junho de 2014.

[5] Disponível em http://institucional.educacao.ba.gov.br/ Acesso em 29.05.2015.

[6] Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.

[7] Sistema de Monitoramento de Políticas de Promoção da Igualdade – disponível http://monitoramento.seppir.gov.br/paineis/pbq/index.vm?eixo=4 Acesso em 29.05.2015.

[8] Órgão estadual de terras vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural (SDR).

[9] Conforme o sistema de monitoramento do FNDE, são apresentados os recursos que foram captados e liquidados.

[10] O RI pode ser acessado no site www.mds.gov.br/sagi – dados de referencia 12/2014.

Imagem: Educação quilombola (Fonte: www.ilheus24h.com.br)

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