Formação do País ganha um retrato de horror em ‘A Conquista do Brasil’

Por Marco Rodrigo Almeida, na Folha

“A Conquista do Brasil” retrata o primeiro século do país em tom de história de horror, com sangue escorrendo e corpos decepados a cada página. O livro do escritor e jornalista Thales Guaracy não economiza nos detalhes mórbidos ao narrar o processo de dominação imposto por Portugal. O Brasil, diz o autor de 51 anos, não foi descoberto ou ocupado, mas sim conquistado em um século de luta, que culminou no extermínio de índios no litoral do país.

“Meu interesse inicial era entender a origem de nossos problemas, os motivos de o Brasil ser o que é hoje. Como na psicanálise, às vezes precisamos voltar às origens. Quis fazer isso, narrando de uma perspectiva realista”, diz.

Ex-repórter e editor de revistas como “Veja”, “Exame” e “Playboy” e ex-diretor editorial do selo literário Benvirá, da Saraiva, Guaracy se dedica hoje aos livros que escreve -é autor de 20 títulos, entre ficção e não ficção.

O lançamento integra um filão de sucesso nos últimos 15 anos, o dos livros de divulgação histórica, que não necessariamente apresentam interpretações e fatos novos, mas narram temas centrais do país de forma acessível.

Maior sucesso desse gênero, o jornalista Laurentino Gomes, autor de “1808”, assina o prefácio de “A Conquista do Brasil”. Dele, Guaracy tomou emprestado o formato de subtítulo bem-humorado que resume os fatos do livro.

No caso em questão: “Como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina”.

O caçador é o degredado João Ramalho; o padre gago, o jesuíta Manoel da Nóbrega; e o Exército exterminador foi formado pelo governador-geral Mem de Sá para uma guerra acirrada contra os índios.

Ramalho (1493-1580) foi um dos primeiros portugueses a habitar o Brasil -acredita-se que tenha chegado aqui por volta de 1510. Casou-se com a filha de um cacique tupiniquim e formou um exército para caçar outros índios, como os tupinambás, e vendê-los como mão de obra escrava.

Era “o homem mais poderoso da região, mais que o próprio soberano: havia guerreado e pacificado a província, reunindo 5.000 índios, enquanto o rei de Portugal só reuniria 2.000”, escreveu o aventureiro alemão Ulrich Scmidel.

ANTROPOFAGIA

A perseguição imposta por Ramalho foi o estopim da Confederação dos Tamoios (1554 – 1567), quando os tupinambás lutaram contra portugueses.

Os colonizadores temiam especialmente o cacique Cunhambebe, principal líder dos tamoios (como eram conhecidos os tupinambás que habitavam o litoral norte de São Paulo e o litoral sul do Rio de Janeiro). Há relatos de que ele teria devorado, literalmente, mais de 60 portugueses.

“Seu palácio”, descreveu o frade francês André Thévet, “tem o exterior decorado com cabeças de portugueses”.

O aventureiro alemão Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás por um período, contou ter visto certa vez Cunhambebe ao lado de um cesto repleto de carne humana, comendo uma perna.

Em 1549, um grupo de jesuítas chefiados por Manoel da Nóbrega (1517-1570) chegou ao Brasil, incumbido de converter e pacificar os nativos para consolidar a colônia.

Em cartas, Nóbrega queixou-se dos portugueses que moravam por aqui (“Os homens que aqui vem não acham outro modo de viver senão do trabalho dos escravos […] tanto os domina a preguiça e são dados a cousas sensuais e vícios diversos”), dos próprios sacerdotes (“Os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos”) e de Ramalho (“Ele e seus filhos andam com irmãs [de suas mulheres] e têm filhos delas, tanto o pai quanto os filhos”).

GUERRA

Mas o auge do conflito viria nos anos seguintes. Os índios, com apoio de franceses que invadiram o Brasil, atacavam vilas e embarcações portuguesas -em 1556, por exemplo, os caetés comeram o primeiro bispo do Brasil, dom Pedro Fernandes Sardinha.

As tropas portuguesas incendiavam aldeias e dizimavam adultos e crianças.

Para pacificar a colônia, Portugal nomeou Mem de Sá (1500-1572) como governador-geral do Brasil em 1558.

Num dos mais duros confrontos, a Batalha do Cricaré, no Espírito Santo, em 1557, o filho do governador, Fernão de Sá, foi morto a flechadas.

A batalha final deu-se em janeiro de 1567, na região da baía de Guanabara (RJ). Os portugueses, com a maior formação de guerra já vista na América até então, tiveram vitória avassaladora. Cem mil tamoios foram exterminados. Dos franceses invasores sobraram só uns nove ou dez.

Como os próprios índios faziam, os soldados portugueses cortaram as cabeças dos inimigos e as penduraram em estacas. Mem de Sá teve outra perda pessoal -o sobrinho, Estácio, recebeu uma flechada no olho e morreu pouco depois.

“Criou-se essa imagem de o brasileiro ser cordial, mas a história nega isso”, diz Guaracy. “A ocupação forçada deixou marcas que ainda persistem, como corrupção, violência e exclusão das minorias.”

Destaque: Desembarque de Pedro Álvares Cabral em 1500; imagem do livro “A Conquista do Brasil”, de Thales Guaracy

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