Pyelito Kue sofre novo atentado, mesmo após TAC firmado entre comunidade e fazendeiro

Nós, índios Guarani e Kaiowa de Pyelito Kue estamos sofrendo novamente ataques de pistoleiros privados que cercam dia e noite nosso povo. Além disso jogaram veneno na fonte de nossa água, no riacho, nossas crianças estão vomitando e doentes, estão morrendo novamente. Voltamos a viver exatamente como antes, o mesmo pesadelo, mas agora é pior. Antes podíamos correr em nosso território, agora estamos aprisionados aqui neste quadrado, neste cercado como bichos, de novo, de novo, até quando?”.   

Cimi/MS

As linhas transcritas acima, advindas do desabafo emocionado de uma liderança jovem da terra indígena Guarani e Kaiowa de Pyelito Kue, localizada junto ao município de Japorã, Mato Grosso do Sul, são didáticas e autoexplicativas para que se entenda a dor e o sofrimento destes indígenas ao longo de mais de doze anos. Doze anos aprisionados a um cerco permanente realizado intencionalmente pelos mesmos senhores que cometeram ou se beneficiaram do esbulho da terra ancestral deste povo.

Desde 2003, quando por motivos de fome e miséria decidiram retomar o que é seu por direito, a sua terra tradicional, estes grupos familiares vem sofrendo ataques diretos de jagunços armados e uma sistemática negação de seus direitos mais básicos, ora pela mão dos fazendeiros e seus jagunços, ora pelas mãos do Estado e dos governos. O detalhe é que este território já é reconhecidamente uma terra indígena, assinalada pelos estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em seus 41, 5 mil hectares.

Nos últimos 11 anos foram várias as tentativas de retomadas pela terra e pela vida de seus filhos, todas elas sobre o mesmo território tradicional e todas elas com desfechos trágicos recheadas de cenas de uma violência desmedida, em especial pelos despejos diretos e truculentos realizados por jagunços. Mais de uma centena de pessoas chegaram a ter de viver por quase três anos, em um espaço diminuto de menos de um hectare de terra junto as margem do rio Hovy, cujo nome em Guarani já evidencia a ligação deste povo com o território em questão. Tiros, assassinatos, estupros, ataques, falta total de alimento, contaminação, desespero e vidas desencaminhadas de baixo de lonas pretas foram cotidianamente tatuados como cicatrizes no coração de cada um destes indígenas ao longo deste árduo tempo.

Em fevereiro do ano passado, em um grito de basta, cerca de 250 Guarani e Kaiowa retomaram parte de sua terra originária, alocando-se junto à sede de uma fazenda denominada de “Cambará”, uma das tantas que incide sobre o território de Pyelito Kue/Mbarakay. Na mesma tarde, em resposta, fazendeiros se aglomeraram mostrando grande poder de articulação. Era mais uma vez o sinal do reinicio de um quadro ininterrupto de violência. Desde então os indígenas passaram a conviver com o medo iminente da morte em meio a cercos pesados, ataques diretos e armados e o confinamento através da negação do direito de ir e vir. A articulação foi tamanha que até mesmo órgãos oficiais como a Funai e a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) foram impossibilitadas de entregar alimentos e(ou) prestar atendimento à saúde para as famílias de Pyelito.

Atrelado ao agronegócio, o Governo Federal demonstrou total inércia em relação à garantia da demarcação de Pyelito Kue, negando o direito deste povo à continuidade dos procedimentos demarcatórios. Este foi certamente o gatilho mais feroz contra o povo Guarani e Kaiowa e que mais dinamizou a violência. A partir desta conjuntura visivelmente favorável os fazendeiros sentiram-se a vontade para dar sinal verde a seus pistoleiros e jagunços para atirarem a vontade em uma temporada de “caça aos índios”.

Só a partir do ano passado, após a retomada foram registrados mais de 10 ataques intencionais. A negligência e a criminalização institucional por parte do Governo em relação à retomada de seu próprio território também foi duramente sentida pelos indígenas. Houve fome e as crianças foram as que mais sofreram, sendo que uma delas foi a óbito, com diagnóstico de desnutrição e ingestão de água contaminada.

Contudo, em seu território retomado, os indígenas sentiam a possibilidade de resistir e esperar com um pouco mais esperança a finalização dos procedimentos demarcatórios (pelo menos mais do que já havia sentido até então). Tinham minimamente acesso ao mato e ao rio, fontes de alimento e saúde. Começavam orgulhosos seus plantios e projetos de sustentabilidade. Porém, o Poder Judiciário se apresentou decido a tomar parte nesta batalha inglória. Apesar da Terra Indígena de Pyelito de ter sido identificada como área tradicional dos Guarani e Kaiowa, a falácia do direito à propriedade bradou mais forte. Consequência: os indígenas sofreram os tão conhecidos procedimentos de reintegração de posse. A Saga de Pyelito se redesenhou e mais uma vez veio a iminência do despejo, se não pela bala, desta vez pelo papel.

Frente à possibilidade de despejo, houve no dia 13 de novembro do ano passado, uma audiência de tentativa de conciliação entre indígenas e fazendeiros na 1º Vara da Justiça Federal, Sexta Subseção Judiciária do Mato Grosso do Sul.  Na contramão de garantir o direito do povo Guarani e Kaiowa em permanecer sobre seu território já identificado, foi proposto às famílias de Pyelito um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC.

Nos termos do TAC, os indígenas deveriam abandonar a área retomada, correspondente à sede da fazenda Cambará, sendo reservado a eles, dentro do seu próprio território, uma pequena área de 100 hectares, local em que deveriam permanecer até a finalização dos procedimentos de demarcação.

Oficialmente, ao “proprietário” da Fazenda Cambará, coube no acordo a construção de duas cercas que dessem segurança de divisa da área ocupada pelos indígenas, a não oposição a construções e benfeitorias necessárias ao seu bem estar e ao desenvolvimento de suas práticas culturais como escolas, casa de reza, coleta de materiais e outros que objetivem o suprimento de necessidades básicas como luz e água. No conteúdo do TAC, mesmo que nas entrelinhas, fica evidenciada que a Justiça sabia dos episódios de violências praticadas contra a comunidade indígena, em especial referente ao episódio onde fazendeiros e seus jagunços impediram a Funai e a Sesai de executarem suas atividades de atendimento às famílias de Pyelito.

PYELITO 3Atormentados pela violência e sem segurança alguma de poder contar com a justiça, a comunidade acabou por aceitar a proposta estabelecida no TAC, onde também estava prevista a garantia de algumas reivindicações como a manutenção de seu cemitério tradicional junto à área delimitada. As famílias desmontaram acampamento e foram se acomodar em seu novo pequeno cercado, sob a promessa de uma suposta segurança.

“Falamos de muito mais coisas do que ficou escrito, coisas que a justiça não podia admitir e por isso não botou no papel” afirma uma liderança da comunidade que por motivos de segurança não deseja se identificar. “Eu estive na audiência, lá a juíza disse ao fazendeiro que ele não poderia contratar segurança privada, teria que demitir os seus capangas, não poderia ameaçar o índio, teria que respeitar nossa caminhada, nosso ir e vir, e que nossa segurança era o objetivo daquele acordo”, depõe firmemente a liderança.

Porém nenhum dos termos do acordo foi cumprido por parte do fazendeiro em especial a parte informal e mais perigosa do acordo judicial, a que diz respeito a contratação de segurança privada e a política de terror praticada contra os indígenas. Nas palavras de “Avá Tupã”, líder da comunidade, o claro recado:

“É como eu já disse, esta acontecendo tudo igual, na verdade é pior porque agora estamos cercados, é tudo que eles (proprietários) queriam. Eles (pistoleiros) vêm quando querem. A hora que querem, nos rondam e nos ameaçam, nos vigiam como os patrões deles vigiam o gado, ameaçaram meu tio a poucos dias, quando ele voltava do trabalho, no mesmo lugar que furaram a perna de um de nossos jovens com balas de borracha, quando bateram nele. O fazendeiro, o mesmo que fez acordo esta envenenando nosso rio, nem sequer as cercas foram feitas, as estradas que dão no tekoha estão tão destruídas que não podemos ter atendimento a saúde. O que adianta poder plantar aqui um tanto de mandioca se o que mais colhemos é medo, é para isto que serve o acordo com a justiça? Estamos pior, muito pior. 

A totalidade das famílias pertencentes à Terra Indígena de Pyelito Kue denuncia que os problemas recomeçaram quando o proprietário da fazenda Cambará passou a pulverizar- lançar veneno – na margem oposta do rio que faz divisa entre a área indígena e as fazendas. Os indígenas denunciam que o veneno atinge diretamente o rio. Com a chuva, o veneno chega a nascente, fonte de água das famílias Guarani e Kaiowa. O efeito é bem conhecido pelos grupos familiares de Pyelito. Voltaram a ocorrer inúmeros casos graves de diarreia e vômito, em especial entre as crianças e os mais velhos.

Logo após, segundo os indígenas, recomeçaram os casos de violência pela coerção e ataques diretos a comunidade por seguranças privados. Genivaldo, Pajé (Nhanderu) da comunidade lamenta inconformado: “Nem o cemitério eles tem respeitado, pisam por ali, onde estão nossos Nanderu (rezadores tradicionais) enterrados, entram e ficam na espreita, ali no dia ou no escuro da noite, isso eu não quero aceitar, é muita dor para nós.”

Para “Ava Tupã”, frente a este cenário o acordo esta desfeito:

“Não existe acordo, para mim pelo próprio TAC está desfeito, foi tudo descumprido. Agora, neste momento, nossa vida está em maior risco do que antes. Nós respeitamos a Justiça, mas não há justiça! A justiça na prática nos deixou a mercê dos pistoleiros, qual a garantia ela nos dá para segurança de nosso povo? A palavra de alguém que roubou nossa terra? A garantia que estão apresentando? Na verdade todos sabem o que eles fazem com a gente, mas por que os fazendeiros têm dinheiro preferem criar outras soluções em troca de nosso direito. Estamos conversando com todos em Pyelito, nos perguntando para quem afinal serve este tal TAC. Estamos quase decididos, para mim já estamos decididos. Se o acordo está desfeito, e pelo fazendeiro está desfeito, não há mais razão para ficar aqui, iremos retornar e lutaremos ainda mais forte que antes, se a justiça não garantir na prática nossas vidas partiremos definitivamente para nossa retomada, nem que isso signifique a morte.”

A pergunta que ecoa pelas rodas de conversa de Pyelito Kue é a mesma que continua sendo feita por muitos grupos familiares em diversas terras indígenas Guarani e Kaiowa espalhadas pelo Estado do MS. Para quem serve os TAC’s a respeito da ocupação das terras indígena? Para a segurança dos indígenas ou para o controle dos fazendeiros? Em casos similares, como nas terras indígenas de Kurusu Amba e Ypoi, os TAC’s que previram espaços para que os indígenas pudessem viver em paz tampouco conseguiram frear a violência dos fazendeiros. O sentimento dos indígenas é expresso pelas palavras de Ava Jeguaka Rendy Ju, de Kurusu Ambá: “os anos que vivemos com o TAC foram igualmente anos de sofrimento para nós. Enquanto vivemos espremidos, sem poder viver a cultura e o modo de ser do Kaiowa os fazendeiros usufruíram de nossas terras em nossa frente e nos atacaram quando quiseram, é isso que entendo destes TACs que nos dão migalhas de nossos territórios”.

PYELITO 6Tomando como base os relatos dos Guarani e Kaiowa, parece que o ajuste de conduta necessário em relação às ações de violência e a intolerância contra os povos indígenas têm sido confundidas, pelos órgãos de Justiça, com a conciliação entre a manutenção do esbulho em troca de uma relativa paz dos explorados. O problema é que em nenhum dos casos onde estes acordos foram firmados conseguiu-se impedir a violência dos fazendeiros. Todos sabem que a única ação que pode colocar um ponto final na violência física e cultural sofrida cotidianamente pelos povos indígenas é a demarcação de seus territórios originários. Os órgãos de justiça, portanto, ao demonstrarem sua preocupação  com a segurança e os direitos dos povos indígenas poderiam ser menos inventivos e simplesmente honrar com suas atribuições garantindo o cumprimento da lei magna à qual estão submetidos, a constituição federal de 1988.

Fotos: Reprodução do Cimi

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