As ruas pediram reforma política. O Congresso entrega uma taturana, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Muitos dos jovens que foram às ruas em junho de 2013, reivindicando participar ativamente da política, não estavam pedindo a mudança do sistema proporcional (como é hoje, com uma correspondência entre cadeiras obtidas e votos no partido/candidato) para o distrital puro (a cidade e o estado são divididos em distritos que elegem apenas um representante), misto (em que se vota para o representante do distrito e para um partido) e o “distritão” (em que a eleição de vereadores e deputados fica semelhante à de prefeitos e governadores – os mais votados vencem, independentemente do voto partidário).

Isso é uma resposta escolhida pelo próprio sistema que embalou uma serpente em um pacote reluzente e, sorridente, entrega de presente à população como se um modelo que pode levar a um desequilíbrio na representação política fosse a solução perfeita e final. Não estou demonizando o voto distrital misto de antemão, mas ele pode causar outras distorções e não ajudar no controle do representante pela população ou a baratear campanhas.

Mais efeito causaria uma mudança na forma de doação eleitoral por parte de empresas, que deveria ser revisto ou duramente limitado. Mas isso, a maioria dos nobres parlamentares não quer.

Os jovens queriam mais formas de interferir diretamente nos rumos da ação política de sua cidade, estado ou país. Mas não da mesma forma que as gerações de seus pais e avós.

Porque, naquela época, ninguém em sã consciência poderia supor que criaríamos uma camada digital de relacionamento social, que ignorasse distância e catalisasse processos. Pois, quando a pessoa está atuando através de uma rede social, não reporta simplesmente. Inventa, articula, mente, salva, agride, muda. Racional e irracionalmente. Enfim, vive.

Por isso, a molecada acha estranho quando alguém reclama com um “sai já da internet e vai jantar!”. Como assim?! – pensam. É como falar: “saiam já deste planeta”. Não dá, não é outra vida, é a mesma. Ele ou ela está lá e está aqui. Ao mesmo tempo. Os pais piram, mas é simples assim.

Então, para essa geração não é estranho que as plataformas digitais sejam usadas na discussão política, no debate de alternativas e, por que não, no processo de construção política e mesmo de eleição.

Estranho é não usar essas ferramentas. Por que eu preciso ir até uma reunião com meu representante, meu vereador, deputado, senador, se há maneiras mais fáceis, rápidas e interessantes que podem ser usadas na internet para isso? Por que fazer política tem que ser chato?

Não estou falando apenas das redes sociais convencionais. Mas há muita tecnologia  interessante sendo desenvolvida para esse fim que a maioria de nós desconhece (com exceção de quem está por dentro da cultura hacker, é claro) por falta de discussões sérias sobre o assunto.

Sei que não é possível adotar e universalizar processos digitais de participação direta imediatamente. Isso demanda algumas ações prévias. Por exemplo, reduzir o analfabetismo digital no Brasil, concentrado não na faixa de renda mais baixa, mas na faixa etária mais alta. Isso sem contar a ampliação da qualidade da educação formal e, mais importante que isso, da conscientização de que cada um é o protagonista de sua própria história.

E, é claro, aprofundar a reflexão sobre as próprias redes sociais e o seu uso para fazer política. A internet não é algo “bom” ou “ruim”. É uma plataforma. O que fazemos dela e como é que importa.

O problema é que enquanto muitos discutem como manter a política de forma analógica, outros tantos fazem isso de forma digital com extrema competência. E nem sempre tendo boas intenções.

A várzea das redes sociais com as pessoas acreditando em qualquer coisa com texto bem escrito, mas anônimo, está aí para não me deixar mentir.

Dividir o país em distritos eleitorais geograficamente delimitados faz sentido em um momento em que os relacionamentos sociais e a vida comunitária rompe fronteiras, gera empatias e conecta pessoas em coletividades que pouco têm a ver com o seu bairro?

Plebiscitos, referendos, projetos de iniciativas populares, conselhos com representantes por tema ou distrito são os primeiros passos, não os últimos. A política está sendo radicalmente transformada pela mudança tecnológica. Participar do rumo das coisas a cada quatro anos não será mais suficiente. Pois, em verdade, nunca foi. Iremos participar em tempo real.

Mas ao invés de encaminhar essa discussão, o Congresso Nacional vai no sentido oposto, tentando implementar fórmulas que beneficiam os parlamentares que já estão no poder ou os que contam com currais eleitorais. Modelos que dificultam a eleição de quem está mais à esquerda ou mais à direita no espectro político e poderiam – mais do que os centristas – a forçar por mudanças.

Aliás, levando a sério alguns discursos que estão circulando nos plenários da Câmara e do Senado, a solução para os problemas de representação política passa apenas pela mudança do voto proporcional para o distrital ou para adoção da lista fechada.

E quando há qualquer proposta para aumentar os instrumentos de participação popular, como conselhos ligados à defesa dos direitos humanos – bandeira importantes de muitos parlamentares ligados ao PSDB e ao PT durante a redemocratização – elas é taxada de golpe no sentido de tirar poder do Legislativo.

É óbvio que, para essas arenas de participação popular serem efetivas, precisam deter algum poder e não serem apenas locais de discussão e aconselhamento. E isso gera conflito entre novas instâncias de representação e as convencionais.

Afinal, senadores, deputados, vereadores, membros das esferas federal estadual e municipal e quem sistematicamente ganha com a proximidade a eles, enfim, o grupo de poder estabelecido, tendem a não gostar da ideia de ver outros atores ganharem influência, outros que não fazem parte do joguinho. Há gente que teme, com o monitoramento por parte do povo, ficar sem o instrumento clientelista de poder asfaltar uma determinada rua e não outra, empregar conhecidos e correligionários.

Durante décadas, brigamos para a implantação de instâncias de participação popular. E, agora, que elas começam a ser discutidos em determinados espaços, ainda que de forma tímida e por conta de intensa pressão social, as propostas são congeladas por medidas em tramitação no Congresso e ações diretas de inconstitucionalidade.

Por fim, aos líderes políticos, econômicos e sociais que gostam mais do cheiro da antiga naftalina do que de gente, vale um lembrete:

“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Constituição Federal, artigo 1o, parágrafo único.

Isso é tão claro. Mas a vida anda tão nonsense que um deputado federal está propondo a mudança para “todo poder emana de Deus”. O PSol pode até ter expulsado o cabo Daciolo, autor dessa sugestão tresloucada, de suas fileiras, mas o seu pensamento está mais vivo do que nunca.

O Congresso vai mudar muita coisa nos próximos anos. Para pior.

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