Sônia Guajajara: O reconhecimento e respeito pelos povos indígenas vão além da garantia por cidadania

Juliana Pinto, IPAM

Os povos indígenas do Brasil são muitos. Eles compõem 305 etnias, falam 274 línguas e totalizam aproximadamente 897 mil indivíduos, segundo o IBGE (2010). Infelizmente em pleno século 21 eles ainda sofrem desrespeitos e violações muitas vezes relacionados com a imagem Brasil-colônia. Sônia Guajajara, coordenadora executiva da APIB e liderança indígena nacional, lembra que os tempos mudaram e consequentemente a importância do papel dos povos indígenas nos espaços de debate e tomada de decisão. Aceitar e respeitar estas 305 etnias como cidadãos brasileiros é fundamental, pois, além de assegurar seus direitos, que igualmente implica na demarcação dos territórios indígenas, resulta também na garantia da preservação e proteção do meio ambiente.

Clima e Floresta: Qual é o papel do indígena na sociedade brasileira?

Sônia Guajajara: Acredito que primeiro é contribuir para o Brasil permanecer rico em biodiversidade, em culturas e tradições. Hoje temos no país 305 populações indígenas diferentes e essa informação é desconhecida pela sociedade brasileira. O brasileiro trata os povos indígenas como um povo único: os índios. Mas não somos um povo só. Cada população indígena é diferente, assim como os nossos idiomas, costumes e tradições. A outra coisa é o próprio papel que nós indígenas exercemos na preservação do ambiente.

CF: Existem diferenças na maneira da preservação do meio ambiente entre as comunidades indígenas?

SG: A preservação entre as populações indígenas é muito semelhante, porque possuímos um conhecimento e uma relação milenar com o meio ambiente. Temos um jeito natural de preservar. É uma coisa própria do modo de vida dos povos indígenas. Independente da etnia, quando comparamos as terras indígenas com as demais terras públicas, percebe-se claramente que as terras indígenas são mais preservadas. A questão cultural, linguística e as tradições mudam, mas a questão da preservação é sempre a mesma em todos os povos, que é cuidar, preservar e ter o ambiente saudável para a sua continuidade física e cultural.

CF: O que é preciso ser feito para que o indígena ganhe espaço e respeito na sociedade brasileira, além do dia Nacional do Índio, o 19 de abril?

SG: O Brasil, apesar de ser esse país rico e alegre, é ainda um país muito preconceituoso. Nos últimos anos isso parece estar se mostrando cada vez mais forte não só contra os indígenas, mas também contra os negros e nas orientações sexuais. Todo esse preconceito dificulta muito para a sociedade abrir os olhos e perceber a presença indígena no cotidiano brasileiro. A maioria vê o índio como aquele do passado, na aldeia, nu, sempre pintado, com penas na cabeça. Apesar de estes detalhes serem importantes para a nossa identidade se manter viva, as mudanças aconteceram com o tempo e com a globalização. Não tem como nos mantermos isolados das informações. Precisamos estar inseridos na sociedade, participando de tudo e principalmente nos espaços de decisão. Já conseguimos avançar muito, estamos nos mostrando, participando, discutindo e trazendo a nossa voz. Acredito que um passo positivo para o nosso reconhecimento é na educação. As escolas deveriam desmistificar a figura indígena com as crianças e os jovens. Mostrar para eles que não somos mais aquelas populações da época da colonização em 1500, que permanecia na mata, apenas caçando e pescando. Atualmente continuamos lutando pelo nosso direito territorial, pela nossa sobrevivência física e cultural, como uma forma de manter a nossa identidade e nosso modo de vida. Estamos cada vez mais inseridos em todos os espaços, mas ainda falta muito. É nosso direito e dever usufruir como cidadão do que está disponível, como ensinos superiores, ferramentas tecnológicas, políticas públicas, etc. Porém, nunca esquecendo quem somos e de onde viemos, e para isso temos que partir da garantia dos nossos territórios.

CF: Por que os territórios indígenas são importantes para todos?

SG: Os territórios indígenas é um tema que ganhou muita visibilidade nos últimos cinco anos. Aumentou muito o interesse pelas nossas terras para a questão do desenvolvimento econômico e para o crescimento do país. O Brasil já não dispõe mais de tantas terras públicas e áreas livres. Ultimamente toda terra está se transformando em propriedade privada. Os espaços que os grandes produtores e os donos do agronegócio estão interessados são as terras indígenas. Temos uma legislação que protege e garante o direito territorial aos povos e comunidades tradicionais, porém estão tentando exatamente flexibilizar essa legislação para facilitar a entrada nas nossas terras. Veja por exemplo a PEC 215. Entretanto, além de não terem nos consultado para esta alteração na legislação, eles se esqueceram de toda a importância social, económica e ambiental que as terras indígenas exercem no país. Para nós é muito natural dizer, que as terras indígenas são importantes não só para os índios, mas para todo mundo. Nossos territórios são importantes para o equilíbrio climático, na contenção do aquecimento global, na garantia de ambiente saudável, na provisão das chuvas para o sudeste e outras regiões brasileiras.

CF: Dentro dos territórios indígenas já é possível sentir os impactos das mudanças climáticas?

SG: Temos uma relação e percepção direta no que ainda está preservado e já foi destruído pelas mudanças climáticas. As partes que ainda possuem florestas exercem diversas funções, que vão desde garantir nosso sustento ao protegerem o solo, como também levam vento e chuva para as outras regiões. Uma das causas mais graves que provocam as mudanças no clima é o desmatamento. Essa destruição do meio ambiente diminui a água e consequentemente as chuvas. São poucos os que conseguem perceber a relação da natureza com a falta d’água e do meio ambiente com as catástrofes ambientais. Somos mais vulneráveis aos efeitos climáticos. Muita coisa já acontece dentro das terras indígenas. Como a incerteza dos ciclos da chuva e as estações desreguladas. Isso atrapalha as plantações e em consequência a nossa sobrevivência, pois vivemos da terra. Altera também os nossos costumes tradicionais. Algumas atividades culturais eram realizadas em determinado período por conta de um alimento ou dentro da água. Isso hoje já não ocorre com a mesma periodicidade, às vezes porque a plantação não vingou ou porque o rio secou. As mudanças climáticas não é um problema somente para as populações indígenas, é uma preocupação mundial. Os benefícios do meio ambiente quando chegam para um, chegam para todos, não só para os indígenas. Se for beneficiar ou prejudicar, beneficiará e prejudicará todos. Então eu acredito que precisamos ainda trabalhar muito na sensibilização da sociedade como um todo para que apoiem o processo de demarcação das terras indígenas, porque quando temos uma terra demarcada e protegida, estamos preservando um bem que é para todo mundo.

CF: O que as ONGs tem feito para ajudar na inserção dos povos indígenas nestes debates?

SG: Temos muitos parceiros cooperando na defesa dos direitos, na preservação do modo de vida e da cultura. Muitas ONGs ajudam e incentivam os indígenas a participarem em várias esferas. Porém, também existem as organizações que ainda preferem que os indígenas permaneçam na floresta, sem modificar a forma que vivem, sem conhecer, sem participar muito “aqui fora”. Eu acredito que precisamos ter a oportunidade de vir, participar, conhecer, e o mais importante voltar às nossas comunidades para repassar o conteúdo e as informações adquiridas aos nossos parentes. Temos conseguido nos envolver muito com a ajuda dos nossos parceiros nas esferas nacionais e internacionais, repassando a nossa mensagem.

CF: Como é essa relação com o IPAM?

SG: Eu me relaciono com o IPAM há mais ou menos cinco anos. Atualmente minha articulação é com a APIB e antigamente era pela COIAB. O IPAM já tem um longo histórico de trabalhos com a COIAB e agora com a APIB. Para as causas indígenas esta organização é extremamente importante. Conseguimos o seu apoio tanto para nos capacitarmos nas questões sobre as mudanças climáticas nos territórios indígenas e para posteriormente levarmos a nossa voz nos eventos internacionais como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP). Esse incentivo de debater nos eventos internacionais e dar visibilidade aos povos indígenas é fundamental para conseguirmos alcançar e manter os nossos direitos. Hoje mesmo uma pessoa me disse “Ah, você estava em Paris no ano passado”, como se isso fosse algo impossível um indígena sair do Brasil para participar de algo em outro país, enquanto pra gente é uma coisa natural, espontânea. Eu acho que é isso que as ONGs contribuem, como é a relação com o IPAM, ajudar na nossa luta, viabilizar a nossa presença nos espaços de debate e de tomada de decisão e o mais importante, nos ajudar a passar a imagem do indígena como um cidadão brasileiro digno de direitos e respeito.

Imagem: Mobilização indígena 2015 (Reprodução do vídeo da APIB)

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