Morre, aos 90 anos, o jurista Paulo Brossard

O Brasil perdeu neste domingo um de seus maiores juristas. Morreu, aos 90 anos, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Paulo Brossard de Souza Pinto. Ele estava doente desde outubro do ano passado, situação que se agravou em fevereiro. O velório deve ocorrer no Palácio Piratini, em horário ainda não divulgado.

Zero Hora

– Ele faleceu pacificamente em sua residência, em Porto Alegre – resigna-se a filha Rita Brossard, sem informar detalhes sobre a morte.

Brossard fez história à frente de importantes cargos do Executivo. Foi professor, um conferencista, um agropecuarista, um articulista prolífico. Com a morte de Paulo Brossard, é como se vários personagens de destaque no cenário nacional houvessem desaparecido de uma só vez, reunidos na mesma pessoa. Em quase sete décadas de vida pública, o gaúcho de Bagé foi quase tudo e destacou-se em quase tudo, deixando uma marca indelével na evolução da sociedade brasileira.

No Legislativo, foi a voz mais altissonante da luta contra a ditadura. No Executivo, comandou o Ministério da Justiça no delicado período de transição democrática. No Judiciário, ajudou a moldar um novo Brasil como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do STF.

Passou os anos finais em um casarão no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, cercado por 30 mil livros e por relíquias de uma vida, como a caneta Parker comprada em 1941, quando chegou à Capital gaúcha na condição de estudante, e com a qual assinou importantes documentos e decisões. Debilitado, movia-se com dificuldade nos últimos tempos, mas ainda produzia artigos frequentes para Zero Hora, envolvia-se no debate das questões mais candentes e mantinha-se alinhado como sempre — são raras as fotos em que aparece sem terno, elegância que arrematava com os chapéus que eram uma espécie de marca registrada.

De todas as suas encarnações, talvez a mais impactante, aquela que conferiu a Brossard uma certa aura de reserva moral da nação, tenha a sido a de baluarte da oposição durante o regime militar. Curiosamente, ele próprio revelou, em entrevista a Zero Hora, que inicialmente nutriu simpatias pelo golpe de 1964.

— Para mim, aquele havia sido um gesto de legítima defesa de uma sociedade ameaçada por um governo que tinha perdido a noção de governar em uma série de desatinos — disse.

Brossard desiludiu-se com os militares que derrubaram João Goulart apenas em outubro de 1965, com o Ato Institucional número 2, que estabeleceu eleição indireta para a presidência, extinguiu o pluripartidarismo e facilitou a cassação de opositores. Um de seus grandes momentos veio em 1974, como candidato do MDB a uma vaga de senador pelo Rio Grande do Sul. Brossard enfrentou Nestor Jost, nome da ditadura. O confronto dos dois em um debate promovido pela TV Gaúcha (hoje RBS TV) marcou época. Atribuiu-se ao desempenho de Brossard no embate, Código Penal em punho, a vitória esmagadora que ele obteve nas urnas, uma humilhação para o regime — que, dois anos depois, para não mais correr o mesmo risco, restringiu a campanha eleitoral na TV à apresentação da legenda, do currículo, do número de registro e da foto 3×4 do candidato.

Vencido o pleito, correu o Brasil a foto de Brossard de bombachas, altivo, cavalgando pelas coxilhas de Bagé a comemorar. A imagem virou um símbolo de resistência e esperança.

Em Brasília, o senador novato começou já na posse a construir a legenda de tribuno indomável, em um discurso no qual desafiava o regime. Ele descreveu o episódio em entrevista concedida uma década atrás a ZH:

— Quando tomei posse, fiz um longo discurso analisando tudo o que tinha acontecido desde 1964 e terminei dizendo: “Fui eleito por oito anos, no entanto, meu mandato pode durar oito meses”. Parei, olhei para um lado, olhei para outro, para cima, para baixo e continuei: “Ou oito semanas”. E repeti o mesmo gesto, como quem diz: alguém objeta, alguém quer um aparte? E continuei: “Ou oito dias, ou oito horas. Mas enquanto estiver aqui, não pedirei licença a ninguém para dizer aquilo que entendo que deva dizer. Entenderam?”

Brossard cumpriu a promessa. Da tribuna, castigava os desmandos do regime, lançando petardos que ganhavam as páginas do jornais. Em 1977, quando o governo fechou o Congresso e criou os senadores biônicos, nomeados pelo Planalto, o gaúcho preparou um discurso feroz tão extenso que precisou ser desmembrado em quatro partes — proferidas uma a cada semana.

— Quando fiz o quarto discurso, o deputado Magalhães Pinto (governista de Minas Gerais), que estava na sessão do Senado, me olhou e disse: “Está contente, não está?”. Eu respondi: “Estou”. Porque depois poderia vir a cassação, que não faria mal algum. Se tivesse havido alguma coisa até o terceiro discurso, eu sairia aborrecido, inconformado por não ter dito tudo. Depois do último discuro, pensei: agora já disse tudo, podem me cassar.

Mas o regime não ousou pôr as garras em Brossard. Ele havia se tornado um símbolo poderoso demais. Não brilhava só nas tribunas, mas também nos palanques. Percorria o país para defender a redemocratização. O jornalista Geneton Moraes Neto lembrou, em texto para ZH, o efeito de uma incursão por Pernambuco, em 1976, quando o senador gaúcho atacou em praça pública o arbítrio, as eleições indiretas, as cassassões e o Ato Institucional número 5, que endurecera ainda mais o regime: “A gente sabia que, logo depois de desembarcar, o senador tiraria o chapéu, se acomodaria numa poltrona e pronunciaria um punhado de frases ferinas — com aquelas pausas brossardianamente dramáticas e aqueles gestos brossardianamente teatrais.” Três anos atrás, quando Geneton pediu que resumisse sua vida em uma palavra, Brossard recusou-se. Sabia que, tendo vivido tudo o que viveu, era impossível.

— Em uma não dá. Em duas ou três: não tenho queixas. Acho que recebi demais — afirmou.

Brossard teve papel na consolidação da democracia

Em março de 1988, o presidente José Sarney chamou seu ministro da Justiça, Paulo Brossard, e anunciou que iria renunciar. Brossard era única pessoa a quem confiara a decisão. O gaúcho assustou-se. Tinha vivo na memória o caos que se seguira à renuncia de Jânio Quadros, em 1961, culminando com a ditadura, três anos depois.

— Isso é uma inclinação, uma hipótese ou uma resolução? — questionou.

— É uma resolução — respondeu Sarney.

O presidente pretendia deixar o cargo por causa das articulações na Assembleia Constituinte para que seu mandato, originalmente de seis anos, mas já reduzido a cinco, ficasse em apenas quatro. Concluíra não ter mais condições de governar se isso se concretizasse. Com o país recém dando os primeiros passos no rumo da democracia, Brossard temeu que a renúncia colocasse tudo a perder. Resolveu agir.

Convocou para a manhã seguinte uma reunião secreta no Ministério da Justiça. Chamou os líderes dos quatros principais partidos — Ulysses Guimarães (PMDB), Jarbas Passarinho (PDS), Marco Maciel (PFL) e Paiva Muniz (PTB) — e revelou as intenções de Sarney. Depois da reunião, a campanha pelos quatro anos de mandato desapareceu — e Sarney permaneceu no posto. Ao jornalista Geneton Moraes Neto, Brossard contou que a possibilidade de renúncia causou tal alarma que os líderes dos partidos trataram de conter seus correligionários mais exaltados.

Anos depois, o ex-ministro da Justiça relatou a ocasião em que ajudou a mudar o rumo da história em um documento e pediu que Sarney e os dois líderes ainda vivos — Maciel e Passarinho — o assinassem, certificando a veracidade dos fatos. Com isso, pretendia corrigir a versão segundo a qual a aprovação dos cinco anos de mandato pelo Congresso fôra obtida mediante concessões de rádio e TV a parlamentares.

— Era preciso fazer isso e acho que prestei um serviço — contou ao jornalista Luiz Valls, em conversas que deram origem ao livro Brossard, 80 anos na História Política do Brasil.

O episódio ilustra como, depois de ajudar a derrotar a ditadura, o jurista gaúcho teve também um papel central na consolidação da democracia, muitas vezes operando nos bastidores. Também deixa evidente sua preocupação com a memória e com a produção de documentos que permanecem como legado para as gerações futuras — algo em que se esmerou a partir de 1989, como ministro do Supremo Tribunal Federal.

— Para a formação da jurisprudência da corte, ele deixou significativa e valiosa contribuição em votos que integram seus repositórios e servirão sempre de fonte importante no exame dos temas versados com cuidado científico — registrou o colega de STF José Néri da Silveira.

CRONOLOGIA

23 de outubro de 1924 — Paulo Brossard de Souza Pinto nasce em Bagé

1941 — Muda-se para Porto Alegre com o objetivo de frequentar o curso pré-jurídico

1945 — Filia-se ao Partido Libertador

1947 — Conclui o curso de Direito da atual UFRGS

1954 — Antes de completar 30 anos, é eleito deputado estadual pelo Partido Libertador, posto para o qual reelegeu-se mais duas vezes. Notabiliza-se como defensor do parlamentarismo.

1964 — Assume a Secretaria do Interior e da Justiça, no governo Ildo Menegheti

1966 — Elege-se deputado federal pelo MDB (partido ao qual uniu-se depois da reconfiguração partidária feita depois do golpe de 1964)

1965 — Publica o livro O Impeachment, obra clássica sobre o tema

1970 — Candidato ao senado, é derrotado por Daniel Krieger, retomando o magistério e a advocacia

1974 — É eleito senador

1978 — É candidato a vice-presidente da República na chapa encabeçada por Euler Bentes Monteiro. É derrotado no colégio eleitoral, por 355 votos contra 266, pela chapa João Figueiredo-Aureliano Chaves

1982 — Não consegue a reeleição ao Senado. O vitorioso é Carlos Chiarelli. Decide encerrar a carreira política.

1985 — É convidado pelo presidente José Sarney para o cargo de consultor-geral da República. Integra a comissão que elabora o anteprojeto constitucional que servirá de subsídio à Assembleia Constituinte

1986 — Vira ministro da Justiça, cargo que exerceu por três anos

1989 — É indicado como ministro do Supremo Tribunal Federal

1992 — Torna-se presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dirigindo, no ano seguinte, o plebiscito em que os brasileiros decidiram o sistema e a forma de governo do país

1994 — Aposenta-se e volta a residir em Porto Alegre

FRASES

“Democracia neste país é relativa, mas corrupção é absoluta.”

Quando senador, em 1978

“Daqui, diremos ao Brasil: a nossa vitória está longe ainda de ser alcançada. Mas, dia a mais, dia a menos, ela virá, pela voz dos homens que, no fundo das trevas, não perdem a esperança.”

Discurso de 1979, no Senado

“Às vezes, eu chegava a parar, pegava a palavra como se usasse uma pinça, olhava de um lado, olhava de outro. Não queria cometer um deslize na linguagem parlamentar. Mas também não queria ficar um milímetro abaixo daquilo que pudesse dizer”

Entrevista a ZH, sobre seus discursos incendiários durante a ditadura

“Esse período é maior do que o tempo da Regência e do Primeiro Reinado. Isso representa um longo período com uma ditatura autoritária. No entanto, não se pode chamá-lo apenas de ditatura militar, porque se ela se manteve durante todo esse tempo por conta da complacência da sociedade, então ela é um ditadura militar até certo ponto.”

Entrevista à Folha do Sul, sobre o regime militar (1964-1985)

“A Justiça, de uma maneira geral, ela não é ágil, ela não é rápida, e por vezes ela é excessivamente morosa.”

Entrevista ao programa Roda Viva, na condição de ministro da Justiça

“Talvez o período autoritário tenha deixado sequelas que nós não nos damos conta. De todos os males do autoritarismo, nenhum é superior à destruição do conceito de legalidade. Cumprir a lei se tornou quase uma coisa inimaginável e isso não se apaga de uma hora para outra. Uma coisa que também foi desaparecendo -em todas as entidades, em todas as Casas, em todos os Poderes — foram as referências não escritas.No mundo parlamentar, no mundo partidário, por exemplo, as Casas Legislativas tinham cardeais. Tinham a mesma investidura dos demais, mas a palavra deles era melhor acolhida, todo mundo sabia que não iriam dizer uma coisa que não fosse o bem da instituição. Essas referências não existem mais. Isso é visível em todos os setores. Faltam líderes.”

Entrevista à Folha de S. Paulo

“Não dispenso indumentária a caráter, nem no calor. Sou do tempo em que uma pessoa de classe média não saía de casa sem esses adereço”

Entrevista a ZH, em pleno verão porto-alegrense, sobre o uso do terno, da bengala e do chapéu panamá

Destaque: Foto de Genaro Joner / Agencia RBS

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