Comerciante acusado de pedofilia contra meninas indígenas é solto e ameaça jornalistas no Amazonas

Por Kátia Brasil e Elaíze Farias, em Amazônia Real

Em decisão monocrática durante um plantão no dia 17 de março, a desembargadora Encarnação das Graças Sampaio Salgado, do Tribunal de Justiça do Amazonas, concedeu a liberdade “por excesso de prazo de prisão” ao comerciante M.C.P, um dos principais acusados do processo criminal que investigou a exploração sexual e pedofilia de meninas indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Estado com a Colômbia.

A notícia da liberdade de M.C.P foi divulgada no domingo (29) pelo site Fato Amazônico.  Nesta quarta-feira (01), o diretor do veículo e jornalista Elcimar Freitas disse à reportagem da agência Amazônia Real que, após a veiculação da notícia, ele e um repórter, que tem parentes morando em São Gabriel da Cachoeira, começaram a receber recados de ameaças de morte. Os parentes do repórter também foram procurados e ameaçados.

O comerciante mandou avisar que seremos achados e mortos onde estivermos”, disse Freitas, que comunicou o caso ao Ministério Público do Estado do Amazonas (MPE).

M.C.P foi preso junto com mais dez pessoas pela Operação Cunhantã da Polícia Federal, em 22 de maio de 2013. Ele cumpria prisão preventiva no Centro de Detenção Provisória, na zona rural de Manaus. Entre os acusados, seis estão soltos, um cumpre prisão domiciliar e dois, que são irmãos de M.C.P, continuam presos na capital amazonense. Eles negam as acusações.

Os nomes dos réus não são divulgados devido ao segredo de justiça do processo e proteção de ao menos 12 vítimas. Algumas delas estão no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados e Morte (PPCAAM) da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos.

Na decisão, a desembargadora Encanação Salgado justificou que o comerciante M.C.P estava preso “por excesso de prazo” e “constrangimento ilegal” praticado pela Comarca de São Gabriel da Cachoeira, uma vez que, até o momento, não foram realizadas a audiência de instrução e o julgamento dos dez réus.

“Desta forma, verificando-se o excesso lapso temporal decorrido entre a prisão do paciente até o presente momento, não havendo previsão para o encerramento da instrução criminal, patente está o constrangimento ilegal”, disse a desembargadora Encarnação Salgado na sentença do habeas corpus, emitido no dia 15 de março. O Alvará de Soltura, que pôs o réu em liberdade, foi concedido dois dias depois.

Em 2014, M.C.P. teve negado um pedido de liberdade pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por acusação de ameaças às vítimas e clima de insegurança na cidade. Na decisão, a Corte decidiu transferir o processo criminal da Justiça Federal do Amazonas para a Comarca de São Gabriel da Cachoeira, que fica a 853 quilômetros de distância de Manaus. O Ministério Público Federal do Amazonas tentou reverter o declínio de competência, mas não obteve sucesso.

Para o MPF, a exploração sexual das meninas causou reflexos negativos sobre toda a população indígena de São Gabriel da Cachoeira, provocando violação dos direitos fundamentais que podem ser presumidos em razão da vulnerabilidade social a que as comunidades estão expostas.

Virgindade de meninas foi trocada até por bombons

Com base nas investigações da Operação Cunhatã (que significa menina na língua tupi) da Polícia Federal, M.C.P e os outros oito réus foram denunciados por crimes de estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.

Entre os dez réus, há duas mulheres, um ex-vereador, servidores públicos e um motorista. Os oito homens são acusados de manter relações sexuais com meninas indígenas virgens, com idades entre 9 anos e 14 anos, em troca de dinheiro, presentes, alimentos e bombons. As mulheres de aliciamento das garotas para o esquema de exploração sexual.

Segundo a investigação, os homens acusados são pessoas com poder econômico que se aproveitaram da situação de pobreza das meninas. Dois réus são acusados por crimes previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente: “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.

As meninas vítimas dos crimes de exploração sexual e abusos são das etnias tariano, wanano, tukano e baré, que vivem na periferia de São Gabriel da Cachoeira, cuja população é 90% indígena.

Em maio do ano passado, o MPF ingressou com uma ação pedindo uma indenização de R$ 500 mil dos réus por dano moral coletivo contra as meninas e as comunidades indígenas do Alto Rio Negro. A ação continua tramitando na Justiça Federal. Saiba mais aqui.

Acusado de participação nos crimes contra as meninas foi preso pela PF. Foto: Alberto César Araújo
Acusado de participação nos crimes contra as meninas foi preso pela PF. Foto: Alberto César Araújo

Soltura de comerciante provoca temor em São Gabriel

A liberdade de M.C.P. provocou reações de lideranças indígenas de São Gabriel da Cachoeira. O comerciante ainda permanece em Manaus.

O professor Estévão Barreto, 50, afirmou que, em São Gabriel da Cachoeira, há uma grande preocupação com a liberdade de M.C.P. “Mesmo estando presos, eles faziam ameaças contra quem os denunciou em São Gabriel da Cachoeira e contra os pais das meninas indígenas. Não está sendo feita a justiça. Temo uma nova onda de violência contra as meninas”, afirmou.

O antropólogo João Paulo Barreto, 42, disse que se surpreendeu com a soltura de M.C.P. Para ele, a soltura é mais uma demonstração de impunidade.

Consequência disso é ameaça direta às crianças indígenas e seus familiares já que este comerciante goza de poder aquisitivo e pode muito bem utilizar desta condição para ameaçar e promover violência sobre suas vítimas. Ele será sempre uma ameaça às crianças e adolescentes de Gabriel da Cachoeira”, disse Barreto.

João Paulo Barreto disse que, ao decidir pela liberdade do comerciante, a Justiça do Amazonas deixou todos estarrecidos e preocupados. Estévão Barreto e João Paulo Barreto são indígenas da etnia tukano, nascidos em aldeias de São Gabriel da Cachoeira.

“Pedofilia é mazela que assola a nossa sociedade de norte a sul, mas quem sempre leva a pior é vítima, isto é, a criança e o adolescente que ficam comprometidos no seu desenvolvimento psíquico, moral, social e intelectual.  Enquanto o agressor sobressai sempre como galã, muitas vezes graças ao seu poder pecuniário goza dos aparatos jurídicos. É o que parece demonstrar o fato deste cidadão estar solto”, afirmou Barreto.

Procurada, a assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual afirmou que iria apurar para saber se o órgão vai recorrer da decisão. Segundo a assessoria, o promotor de Justiça Paulo Alexandre dos Santos Beriba, da Comarca de São Gabriel da Cachoeira, já denunciou os acusados para a Justiça Estadual.

A agência Amazônia Real não conseguiu localizar o advogado Rodrigo de Alencar Maia, autor do pedido de liberdade de M.C.P., para falar sobre as acusações de ameaças contra jornalistas. Os advogados Aniello Miranda Aufiero e Mário Vitor Magalhães Aufiero, que prestam assistência ao acusado no processo criminal, não atenderam as ligações telefônicas da reportagem.

Destaque: Dez acusados pelos crimes foram presos em 2013 pela PF. Foto: Alberto César Araújo

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