Inegra e FCM entregam carta à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Ceará em protesto contra violação dos direitos de Mírian França

Denúncia de violação dos direitos de Mírian França e de outras mulheres presas pela Polícia Civil do Ceará

O Instituto Negra do Ceará e o Fórum Cearense de Mulheres, coletivos que agregam mulheres feministas e antirracistas, vêm acompanhando a investigação do assassinato da Italiana Gaia Molinari, encontrada morta no dia 25 de dezembro na Praia de Jericoacoara. O assassinato brutal e covarde de Gaia Molinari soma-se ao de mais 265 mulheres assassinadas no Ceará em 2014. Se comparado com os números de 2013, onde 214 mulheres foram assassinadas, a taxa de feminicídio cresceu cerca de 25%.

O feminicídio sempre martiriza, imola o corpo das mulheres para destruir expressões do feminino através da morte física, quase sempre decorrente da dominação masculina. Embora o Ceará indique dados alarmantes da violência contra a mulher e do feminicídio, e o corpo de Gaia Molinari apresentasse marcas de estrangulamento, aviltamento da dignidade, tortura e tratamento cruel, características comuns adotadas por assassinos de mulheres, nenhum homem foi preso até agora.  A Delegada da Polícia Civil Patrícia Bezerra, responsável pela investigação, decretou a prisão preventiva apenas de uma mulher, a Farmacêutica e estudante de Doutorado do Instituto de Microbiologia da UFRJ, Mírian França, no dia 29 de dezembro de 2014, 4 dias após a abertura do inquérito.

Anterior à prisão de Mirian França, a delegada interrogou homens que tiveram algum contato com a vítima durante a sua estadia em Jericoacoara ou tinham histórico de violência contra a mulher na região. Entretanto, os nomes desses homens não foram divulgados e sequer ocorreu impedimento de saída deles do estado.

À Mirian o tratamento dispensado foi outro. Presa na Delegacia de Capturas de Fortaleza, inicialmente em cela comum e transferida para cela especial após 4 dias e, somente, por intervenção de advogados de direitos humanos da Rede Nacional de Advogados/as Populares – RENAP – Ceará, Mírian foi acusada de mentirosa e o seu estilo de vida qualificado negativamente como estranho, inadequado e suspeito. Mirian é uma mulher negra em uma sociedade sexista e racista.  Às mulheres é questionado o direito de estarem sozinhas, o direito à autonomia econômica, sexual e estética. Até mesmo o direito à introspecção.

Quando questionada sobre a acusação contra Mirian, a Delegada declarou que Mírian forneceu informações no primeiro depoimento que diferiam das informações apresentadas durante a acareação com um homem italiano que manteve proximidade com a vítima, sendo ele um dos principais suspeitos do crime. Daí nasceu a justificativa à prisão de Mírian, de ordem moral e sem fundamentos objetivos para uma avaliação isenta. É importante destacar que o primeiro depoimento e a acareação orquestrada pela polícia expuseram Mirian a uma sequência de situações constrangedoras e acusatórias, sem a garantia de defesa para ela.

A polícia não entendeu que a realização de acareação entre uma mulher e um homem, em um cenário marcado pela violência e a crueldade contra a mulher, nenhuma informação é mantida sob o peso do medo e impunidade que nós mulheres carregamos devido aos tantos crimes de feminicídio sem justiça. Assim como não houve entendimento das nuances do feminicídio e das dores que ele causa a nós mulheres, não ocorreu à polícia questionar os depoimentos concedidos pelos homens. A prisão de Mirian denotou arbitrariedade, violação de seus direitos e desrespeito aos princípios constitucionais, como presunção de inocência e direito à ampla defesa. Consideramos que o racismo e o sexismo foram preponderantes para que Mírian fosse presa e, consequentemente, fosse submetida às condições fora da legalidade.

Em se tratando das condições de encarceramento de Mírian, há relatos de mulheres que receberam apenas 2 refeições diárias; privação do acesso à água potável e dos vínculos familiares e sociais que as apoiariam. No caso de Mírian, ela enfrentou situações que colocaram sua saúde em risco, até que uma rede de solidariedade se formasse para ajudá-la nesse aspecto.

Mirian França saiu da Delegacia de Capturas no dia 13 de janeiro de 2015 e permaneceu em Fortaleza por mais 30 dias por determinação do juiz responsável, apesar dela demonstrar disposição a cooperar com a investigação desde o início do inquérito. Uma liberdade assistida e monitorada pela polícia, com o acompanhamento da defensoria pública. Apesar de todos os esforços da defesa, a polícia logrou de seu poder e submeteu a estudante a 7 horas de interrogatório ininterrupto e impediu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de Fortaleza de acompanhar. Tais interrogatórios pareciam partir de uma moralidade machista tal qual a antiga qualificação penal da “mulher honesta”: o fato de viajar sozinha; de não ter namorado, marido ou filho(s); a sua religião e sua orientação sexual foram questões esmiuçadas pela delegada Patrícia Bezerra.

No dia 13 de fevereiro Mírian retornou ao Rio de Janeiro e às suas atividades, mas as tentativas de culpabilizá-la continuam, como pudemos ver nas declarações da delegada Patrícia Bezerra obtidas pelo jornal Diário do Nordeste e publicadas no dia 25 de fevereiro de 2015. As declarações da responsável pelo inquérito investem furiosamente contra Mirian em uma tentativa de desqualificá-la pelo seu modo de vida e comportamento, não apresentando nenhuma informação relevante sobre a sua participação no crime que vitimou Gaia Molinari.

Sobre tal situação, o advogado e professor Nilo Batista, em entrevista para a RENAP-CE, denunciou como se tornou trivial o perverso modelo de prender e exibir, qual troféu humano, o/a indiciado/a, para depois aprofundar a investigação. Sabemos que o sistema penal funciona seletivamente, com um filtro que leva em consideração o lugar social dos sujeitos envolvidos (ou não) com atos ilícitos. Os danos para a vida de Mirian já são enormes, estigmatizada por uma apuração na qual foi – desde o início – tratada com a presunção da culpa e não da inocência. Mais uma vez o sistema penal, que não tem sido capaz de oferecer proteção às mulheres, duplica a violência de gênero através da violência institucional ao fazer Mirian vivenciar, em seu âmbito, uma cultura de discriminação, humilhação e estereotipia.

Saindo em defesa do seu trabalho no inquérito, e por ser acusada de negligente, a delegada  investiu novamente contra a estudante Mirian França causando prejuízos incomensuráveis em vária dimensões da sua vida.

Diante dos fatos apresentados aqui, solicitamos que a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará acompanhe mais de perto  caso e solicite:

  • A indicação de uma delegada e/ou profissional qualificado em acompanhamento dos casos de feminicídio no estado ou país no inquérito do assassinato da italiana Gaia Molinari. A solicitação justifica-se pela falta de preparo dos profissionais responsáveis pela investigação, em relação à violência contra as mulheres;
  • Resguardo e proteção a todas as informações relacionadas ao inquérito, sobretudo aquelas obtidas nos interrogatórios, já que o repasse dessas informações, fora do contexto no qual foram obtidas, tem gerado prejuízos sociais e econômicos aos envolvidos;
  • Monitoramento das ações da polícia com mulheres de forma a garantia ampla defesa e impedir que sejam submetidas a longos e extenuantes interrogatórios;
  • Monitoramento para assegurar que as mulheres presas tenham acesso à Defensoria Pública desde o momento que for anunciada a prisão.
  • Fiscalização das dependências da delegacia de captura com vista a modificar as condições sub-humanas a que são submetidas as mulheres.

Instituto Negra do Ceará e Fórum Cearense de Mulheres

Enviada para Combate Racismo Ambiental por João Alfredo Telles Melo.

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