A força ritual dos povos originários, por Egon Heck e Laila Menezes

Cimi

Vou começar 2015 com o final de 2014. Por uma razão muito singela e justa. Os povos indígenas do Brasil terminaram o ano com uma vitória quase impossível. Infringiram aos todos poderosos senhores do agronegócio, do latifúndio e da agroindústria uma derrota que eles não admitiam de jeito nenhum. Terminar o ano sem aprovar o relatório da Comissão Especial da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 era um cenário descartado. A realidade com que tiveram que se confrontar teve um amargo gosto de derrota de uma vitória certa.

Como seria possível que algumas dúzias de indígenas com apoio de alguns aliados pudessem impedir a aprovação desse projeto de emenda constitucional, genocida? Ainda mais considerando que trata-se de uma comissão e um Congresso em que os interesses antiindígenas têm ampla maioria.

Nailton Pataxó Hã-Hã-Hae, aguerrida liderança na luta pelos direitos de seu povo na recuperação do território e na conquista dos direitos indígenas na Constituição de 1988, declarou: “Em nossas vidas devemos ter a firmeza dos rituais e a eles dedicar 50 por cento de nosso tempo. Os outros 50 por cento, dividir com as outras atividades”. Com essa fala animou seus parentes que permaneceram firmes nos rituais diante da portaria da Câmara compactamente tomada por policiais militares e seguranças. Entusiasmou os guerreiros que foram barrados, vergonhosamente, em cenas piores do que no período da ditadura militar/civil.

Eu poderia dizer como algo jamais visto que quanto mais as forças policiais se multiplicavam em número mais os rituais cresciam em força, em ânimo, entusiasmo e em respostas que para muitos parecem casualidades, mas que para os povos são providências dos encantados. Como, por exemplo, na primeira noite em que prenderam algumas lideranças indígenas a chuva foi tão forte que o Congresso, não por acaso, foi invadido por lama e alguns parlamentares ficaram, por horas, ilhados naquele mar de lama.

No segundo dia, enquanto a comissão estava reunida, as luzes foram apagadas por falta de energia no Congresso, impedindo a continuidade dos trabalhos. Segundo os indígenas, os policiais lá fora barravam apenas a entrada dos corpos e não dos espíritos. Ninawá Huni Kui, do Acre, reforçou essa convicção, dizendo que só com os rituais os povos indígenas poderiam conquistar essa vitória. “Essa é a arma mais importante e forte que temos. Enquanto nós continuamos unidos em ritual, os espíritos dos nossos antepassados estarão no lado de dentro do Congresso, onde nós estamos impedidos de estar. Os encantados e os deuses estão agindo em nosso favor, em favor dos nossos direitos”, afirmou.

Fortes chuvas, raios e trovões estrondaram nos céus de Brasília, enquanto os indígenas continuaram em ritual, durante 12 horas seguidas. Cinco lideranças da mobilização indígena foram presos, acusados de tentativa de assassinato de policiais. O juiz rechaçou o motivo da prisão e afirmou que todos têm direito a se manifestarem na defesa de seus direitos. Poucos dias depois foram libertados.

Não existem dúvidas de que só povos com tamanha sabedoria e espiritualidade podem fazer frente e vencer forças tão poderosas. Um possível cenário aponta para a continuidade dessa luta, com a constituição de uma nova comissão especial, produção e votação de um novo relatório sobre esta PEC e de outras que primam pela retirada de direitos constitucionais dos povos originários do Brasil.

ritual indígena em bsb

Kátia Agronegócio Breu

A ministra do agronegócio, Kátia Abreu, assumiu. Logo vieram novas pérolas envoltas em cinismo, prepotência e ignorância sobre os povos indígenas, sua longa história de resistência, seus territórios e seus direitos.

Ao afirmar que não mais existem latifúndios no Brasil, a ministra da Agricultura só faltou repetir um velho jargão da ditadura “os índios são latifundiários”. E afirmar que eles estão deixando seus territórios sagrados para irem ocupar os espaços da produção não é apenas um caso de má fé ou ignorância, mas é a explicitação da intenção do agronegócio em restringir ou até acabar com os direitos indígenas a seus territórios coletivos com o beneplácito do governo.

As manifestações dos povos indígenas em Brasília certamente ganharam novos endereços: Ministério da Agricultura e Ministério das Minas e Energia, dente outros.

Ano de solidariedade com os povos indígenas e a Mãe Terra

Se a espiritualidade, os rituais e a mobilização foram os esteios das lutas e vitórias do movimento indígena em 2014, foi também muito importante a solidariedade e o apoio de seus aliados em nível nacional e mundial. A ampliação e consolidação dessa solidariedade será, sem dúvida, fundamental para os duros embates que estão pintados com os interesses do Estado brasileiro, um governo com posturas antiindígenas e um Congresso preponderantemente conservador e alinhado com as forças contrárias aos direitos indígenas, especialmente os direitos dos territórios e os recursos naturais neles existentes.

Quem acompanha os difíceis e duros embates dos povos indígenas, desde as aldeias até Brasília, não tem dúvidas de que “o atual movimento indígena brasileiro está cada dia mais forte. Tem lideranças jovens, aguerridas e persistentes… Elas saberão responder à altura toda ignorância que insiste em se disseminar em declarações como a vinda da boca de uma ministra de estado. Os índios não estão descendo para áreas de produção. Estão subindo as rampas dos palácios, entrando nas terras que lhes pertencem, exigindo seus direitos” (Elaine Tavares, janeiro 2015).

Na manifesta solidariedade aos povos indígenas do Brasil, vale destacar as palavras de Boaventura de Souza Santos em carta às autoridades brasileiras: “podemos estar perante um verdadeiro atentado contra a humanidade. Explico-me. Autoridades brasileiras estão diante de uma decisão que pode abalar definitivamente a garantia dos direitos dos povos indígenas no país… A PEC 215/2000 é um golpe frontal e impiedoso às vidas dos povos indígenas…”.

Os povos indígenas no Brasil certamente terão, juntamente com outros setores e os povos tradicionais, duros embates com os interesses manifestos do governo e do Congresso. Será um ano de permanentes rituais e mobilizações.

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