Origens do EZLN: o Congresso Indígena de San Cristóbal de las Casas*

Ocosingo, Chiapas. 21 de diciembre de 2012. Miles de indigenas del Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional procedientes de La Selva Lacandona, esta mañana en la cabecera municipal de Ocosingo en el estado mexicano de Chiapas marchan y se concentran en la plaza central de manera pacfica y en total silencio. Foto: Moysés Zúñiga Santiago
Ocosingo, Chiapas. 21 de diciembre de 2012. Miles de indigenas del Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional procedientes de La Selva Lacandona , esta mañana en la cabecera municipal de Ocosingo en el estado mexicano de Chiapas marchan y se concentran en la plaza central de manera pacfica y en total silencio. Foto: Moysés Zúñiga Santiago

Resumo: O Congresso Indígena de San Cristóbal de las Casas (Chiapas/México), ocorrido em 1974, marcou uma ruptura que fez com que comunidades indígenas chiapanecas desenvolvessem uma resistência, unindo as etnias participantes, uma vez que estas últimas passaram a perceber interesses comuns e a necessidade de unirem-se para melhor resistir à exploração, marginalização e preconceito a que estavam sujeitas. Estas mesmas etnias foram as que entraram em contato com o grupo de origem urbana que foi habitar a Selva Lacandona em Chiapas e, juntos, deram ao EZLN as características com as quais ele mostrou-se ao mundo em 1994.

Por Igor Luis Andreo**, em Lutas & Resistências

Segundo o Subcomandante Marcos a origem do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) remonta à chegada em Chiapas de um grupo urbano, marcado por um ideário marxista-leninista (GENARI, 2002). Na primeira metade da década de 1980, esse grupo foi habitar a Selva Lacandona (Chiapas), visando esclarecer as comunidades indígenas.

No entanto, a chegada de um tradutor das próprias comunidades indígenas fez com que o grupo urbano se percebesse diante de um movimento indígena de resistência organizado que, entretanto, não visava os mesmos fins que os seus.

A partir daí, o grupo passou por um processo de adequação à realidade material e cultural indígena chiapaneca, tornando-se um exército a serviço das comunidades indígenas.

Em uma entrevista dada à revista italiana Limes, o Subcomandante Marcos(1) afirmou: “[…] A chegada do zapatismo criou a primeira ruptura […] levou a desenvolver uma resistência regional, antes unindo vários vilarejos, e, em seguida, etnias diferentes. Isto ocorreu nos 10 anos que antecederam o levante de 1º de janeiro de 94” (GENARI, 2002, p. 67).

Neste artigo, parte-se do pressuposto que esta primeira ruptura ocorreu em 1974, no Congresso Indígena de San Cristóbal de las Casas. A fonte primária que serve de base para este trabalho consiste em um documento produzido no final do congresso (CIEPAC, 1974).

Nela encontram-se: os Antecedentes e o Nacimiento de la idea: un congreso de indígenas y para indígenas, que tratam do surgimento da ideia do congresso e de como ele foi organizado; a Inauguración del congreso indígena, ou seja, o discurso de abertura do congresso em 13 de outubro de 1974; um Discurso sobre Fray Bartolomé de las Casas; as exposições de cada etnia sobre os temas do congresso, começando com Ponencia Tzotzil – La tierra, Ponencia Ts’eltal – La tierra , Ponencia Tojolab’al – La tierra, Ponecia Ch’ol – La tierra e Acuerdos sobre la tierra, seguindo a mesma estrutura com El comercio, Educación e Salud respectivamente e de modo que as “ponencias” são as exposições de cada etnia e os “acuerdos” são as demandas e propostas em conjunto de mais de uma das etnias; e o texto termina com o discurso de encerramento Continuadores de la lucha de Zapata en el congreso.

A versão deste documento utilizada neste trabalho é uma tradução para o espanhol, feita pelo “Centro de Investigaciones Económicas y Políticas de Acción Comunitária” (CIEPAC). Segundo o próprio CIEPAC, a tradução foi feita respeitando os textos originais, uma vez que neles as exposições encontram-se nas línguas em que foram faladas, ou seja, na língua de cada
etnia que participou do congresso.

Para refletir sobre as origens deste movimento é de fundamental importância conhecer as lutas dessas comunidades indígenas, que formam o EZLN.

Luis Villoro (2002) afirma que, a partir da independência mexicana, duas concepções de Estado Nacional passaram a se contrapor: o Estado homogêneo e o Estado plural. Seguindo as idéias vigentes no período, um grupo de letrados criollos(2) e mestiços, impôs a criação do Estado segundo os moldes liberais, ou seja, através de um contrato entre indivíduos iguais.

Sob este prisma, a unidade nacional deveria ser garantida por meio da correspondência entre o poder público do Estado e a nação, vista como algo homogêneo culturalmente e em interesses.

Diante dessa idéia de Estado homogêneo, Villoro aponta para a resistência da concepção de Estado plural – própria das comunidades ligadas à terra e das povoações marginais – que foi derrotada após a independência, no entanto não extinta. Esta concepção é mais sentida do que pensada, por ser advinda da experiência vivida e não de algo formulado.

As massas seguiram Hidalgo e Morelos(3), lutando pelo fim da opressão estatal e pelo usufruto da terra, ou seja, defendiam os interesses de sua realidade concreta. O Estado plural reconhece a multiplicidade de povos e culturas que formam o México, nega a uniformidade e busca, junto ao direito de igualdade que garanta a justiça, o respeito e o tratamento igual de todas as diferenças. A base deste projeto de nação é a cooperação e a solidariedade entre coletividades distintas culturalmente, sem, entretanto, a  eliminação da unidade nacional.

Após a Revolução Mexicana, o Estado homogêneo se reafirmou, uma vez que a corrente popular de Francisco “Pancho” Villa e Emiliano Zapata(4) foi derrotada. As reivindicações dos revolucionários não possuíam um conceito claro de Estado nacional, sua preocupação era a terra e, por esta razão, não conseguiram opor à corrente constitucionalista uma alternativa de governo nacional.

A partir da década de 1970, em um contexto de crise e polarização agrária, ressurgiram movimentos indígenas por todo o México. Em resposta, uma das medidas tomadas pelo governo do presidente Luis Echeverría Alvarez, segundo Sergio Silva (1985, p. 203-205), foi a de traçar uma nova estratégia para o Instituto Nacional Indigenista (INI).

Os objetivos principais do INI passaram a ser o de resolver problemas referentes às terras indígenas e organizar seus movimentos, assim evitando sua radicalização. Neste contexto é que foi proposto pelo governador de Chiapas, Doutor Manuel Velasco Suárez, a realização de um congresso indígena, como parte dos festejos para comemorar o quinto centenário do nascimento do Frei Bartolomé de las Casas. Para a efetivação desse congresso foi chamado o bispo Samuel Ruiz García.

Apostando que poderia permitir a participação de alguns setores progressistas e a livre expressão das comunidades indígenas, uma vez que assim obteria apoio para o seu governo e poderia controlar o congresso, o comitê organizador deu “carta branca” ao bispo.

Sergio Silva (1985, p. 205) afirma que, quando o primeiro tema foi escolhido, a questão da terra, as autoridades recuaram em seu apoio, entretanto, o congresso já se encontrava em um ponto irreversível.

Foi possível perceber através do documento produzido pelo congresso, que o cristianismo, através da teologia da libertação, teve grande influência na realização do mesmo. Segundo Aline Coutrot (2003), as escolhas políticas não são simplesmente decalques do sócio-econômico. Através da consideração do religioso é possível compreender comportamentos coletivos: “[…] Socializados por práticas coletivas […] os cristãos adquirem um sistema de valores muito profundamente interiorizado que subtende suas atitudes políticas” (COUTROT, 2003, p. 336).

De acordo com Víctor Gabriel Muro (1994, p. 166-167), em 19675 foi criado a primeira Comunidade Eclesial de Base (CEB), no estado mexicano de Morelos. As CEB’S consistiam em pequenos grupos em que, através da leitura da Bíblia, refletia-se a respeito dos problemas específicos da comunidade e tentava-se solucioná-los.

Estas organizações foram duramente atacadas pelo Episcopado Mexicano, que permitiu sua sobrevivência somente em áreas indígenas isoladas da vida eclesiástica, com histórico antigo de problemas agrários e resistência ao domínio ladino(6).

Foi sob estas condições que a diocese do bispo Samuel Ruiz García começou seu trabalho, uma vez que percebeu que somente através do que viria ser denominado como teologia da libertação, poderia conseguir uma evangelização eficaz nestas regiões. A teologia da libertação foi criada em resposta ao grande número de pessoas empobrecidas e marginalizadas presentes na América Latina.

Segundo Zilda Márcia Grícoli Iokoi (1999), foi nas Comunidades Eclesiais de Base que se deu seu eixo de atuação, uma vez que foi preciso construir uma forma organizativa agregadora que se mostrasse sensível às diferenças étnicas, culturais, de valores simbólicos e míticos.

Nas comunidades agrárias foi onde a influência agregadora das comunidades de base mostrou-se mais eficiente, graças “[…] à forma intrínseca de ser da comunidade camponesa, onde o vivido está em sintonia com a cultura e não como exterioridade, como nas comunidades urbanas” (IOKOI, 1999, p. 240).

A importância da teologia da libertação para o congresso de 1974 foi a de despertar uma consciência étnica, que permitiu às comunidades indígenas lutarem por seus costumes, normas, valores e tradições, e também, iniciou um processo de união e auxílio mútuo entre elas e entre as quatro etnias participantes.

É possível perceber tal questão a partir dos discursos contidos no documento que serve de base para este artigo. Carlo Ginzburg (1990) e Antoine Prost (2003) apontam algumas possibilidades para a análise desta tipicidade de fonte.

Em Sinais – raízes de paradigma indiciário, Carlo Ginzburg (1990) revive o surgimento de um paradigma epistemológico referente às ciências humanas. Este é o método indiciário, que permite ao historiador decifrar a realidade através de sinais, indícios, pistas, uma vez que estes elementos mínimos podem ser reveladores de fenômenos mais gerais.

A análise de Prost (2003, p. 311-312) assemelha-se à de Carlo Ginzburg ao afirmar que os discursos deixam rastros involuntários de uma atividade que ultrapassa o texto explicitado, cabendo à abordagem linguística desvendar os sentidos implícitos mascarados no texto.

O uso que um historiador deve fazer da linguística é o de perguntar para [a] fonte “como ela fala” e não apenas “o que ela fala”, uma vez que as maneiras de falar revelam formas de perceber e de organizar a realidade, denominando-a.

A parte do documento denominada Antecedentes, após apontar como surgiu a ideia e como foi realizado o congresso, aponta:

Estamos ahora ante el paso más importante del proceso, aunque no el final. La confrontación directa no ya de las diversas comunidades de un mismo grupo, sino la confrontación de los problemas de los diversos grupos lingüísticos. De aquí saldrán los siguientes pasos que daban dar las comunidades Indígenas en orden a lograr su liberación humana(7).


Nesta passagem é possível perceber que a união de diferentes comunidades e, principalmente, entre diferentes etnias, já havia sido pensada e encarada como algo de extrema importância para o congresso. No entanto, o termo que mais chama a atenção é “liberación humana”, que parece remeter diretamente ao ideário da teologia da libertação. O que a passagem está propondo é que o congresso 1974 deveria dar os primeiros passos de um processo que levará as comunidades indígenas participantes, através de sua união, a alcançarem sua libertação humana, seguindo os moldes do pensamento da teologia da libertação.

O sub-item La tierra es de quien la trabaja dos Acuerdos sobre la tierra começa assim: “todos queremos solucionar los problemas de la tierra pero estamos divididos, cada uno por su lado, por eso sentimos que no tenemos fuerza”.

Ainda nos Acuerdos sobre la tierra, os Tzotziles afirmam que é necessária “Una organización de todos los grupos para tener fuerza”; os Ts’eltales pedem “Que haya organización de todos los grupos para tener fuerzas”, “Que haya representantes de cada grupo” e “Que siga la organización después del Congreso”; e os Ch’oles propõem “Que se unan con los otros grupos para tener fuerza”.

O que se pode concluir com estas passagens, e ao longo da leitura de todo o documento, é que já havia ocorrido o início de um processo de união entre comunidades de mesma etnia graças à influência da teologia da libertação. O que ocorreu no Congresso Indígena foi que esta união foi incentivada, fortalecida e aumentada para uma união maior, de enfrentamento de problemas comuns e auxílio mútuo entre as quatro diferentes etnias. Portanto, a ruptura que o Subcomandante Marcos remete a 1984, deu-se em 1974.

Além da teologia da libertação ter impulsionado o início de um processo de união, percebe-se também, que ela impulsionou uma revalorização étnica entre os indígenas de Chiapas.

Principalmente nas passagens referentes à educação e à saúde, pode-se perceber que os indígenas chegaram ao congresso imbuídos de uma visão valorizadora de sua cultura e exigiram que ela fosse, não somente respeitada, mas ensinada como parte das atribuições escolares.

Na Ponencia Tzotzil – educación, os expoentes desta etnia denunciam:

[…] Los niños que salen de 6º años siguen el ejemplo del maestro. La escuela los ladiníza, deprecian a sus mayores y se avergüenzan de sus costumbres. Ya no quieren trabajar en el campo y comienzan a buscar trabajo en la ciudad en donde se convierten en mozos ladinos […].

Propõem como solução:

Un sistema educativo que afiance los valores de nuestro pueblo Tzotzil, que prepara para la defensa y servicio de la Comunidad, que ayuden a tener mejores conocimientos para el cultivo de nuestras tierras.

Que los maestros sean indígenas que respeten la costumbre, enseñen bien y estén unidos a la comunidad. Que reciban buena preparación.

Nas exposições das outras etnias ocorrem reivindicações muito semelhantes. Em Acuerdos – educación, todas as etnias concordam:

[…] Queremos que se preparen nuestros indígenas que enseñen nuestra lengua y costumbre y también enseñen español. No queremos maestros que no saben nuestro idioma y costumbres.

Queremos maestros que respeten a las comunidades y sus costumbres.

Nas exposições a respeito da saúde, as etnias encontraram-se frente a uma encruzilhada, por um lado, sua “medicina tradicional de yerbas” e, por outro lado, a “medicina de los doctores”.

Nos Acuerdos salud – la salud es vida, as quatro etnias concluem: “Queremos que la medicina antigua no se pierda. Es necesario conocer las plantas medicinales para usarlas en bien de todos” e que “[…] se atiendan las comunidades menores con enfermeros Indígenas que conozcan las dos medicinas, la de pastillas y la de plantas […]”.

Nas passagens referentes à saúde, pode-se perceber que a revalorização da cultura indígena já havia alcançado um patamar muito
elevado, permitindo aos congressistas demandarem que sua “medicina tradicional de yerbas”, sem relegar a medicina moderna, fosse mantida e estudada, para que pudesse atender de melhor forma as necessidades das comunidades, sem que estas esquecessem suas raízes.

A teologia da libertação também influenciou, através do incentivo à auto-salvação, a busca pelos direitos reservados aos cidadãos. Os indígenas de Chiapas já não procuravam que o Estado suprisse suas necessidades mínimas de sobrevivência, e sim seu direito de viver segundo sua cultura, campesina e indígena que, portanto, pouco contribui materialmente para os cofres do Estado. Passaram a exigir seus direitos de possuir boas terras e em quantidade suficiente; condições justas de comércio; além de educação e saúde de qualidade e de acordo com suas realidades materiais e culturais. Isto ocorreu porque as comunidades indígenas participantes do congresso passaram a enxergar suas demandas como dever do Estado para com eles, enquanto cidadãos mexicanos.

Nos Acuerdos educación – renovar la educación de nuestros hijos, as quatro etnias demandam: “[…] que nos enseñen nuestros derechos de ciudadanos. Queremos que enseñen a la comunidad sus derechos”.

Quando tratando da questão da terra, os expoentes reclamam da sua falta de conhecimento das leis agrárias e florestais mexicanas e da falta de terras, em quantidade e qualidade.

No sub-item Tierras que se poseen comunitariamente y que están en proceso de legalización, da Ponencia Ts’eltal – la tierra, os expoentes dizem que “Otro capítulo que viene a complicar el asunto es la ignorancia de la legislación vigente. No conocemos nuestros deberes ni nuestros derechos […]”.

Além disto, pode-se perceber nas falas dos congressistas, o início de um processo de conscientização política que ultrapassou a influência da teologia da libertação(8), fazendo com que as etnias participantes começassem a perceber a necessidade de lutar para garantir que seus direitos fossem concretizados.

No sub-item Tierras comunales perdidas totalmente para la comunidad, da Ponencia Ts’eltal – la tierra, encontra-se a seguinte passagem: “[…] Nuestra angustia es que todo tiene un límite y buscamos ardientemente la solución justa, legal y pacífica”. (CIEPAC, 1974)

Por todo documento podem ser encontradas várias denúncias, advindas das quatro etnias, quanto à corrupção e incompetência das autoridades para resolver os problemas que afetavam as comunidades indígenas, quando estas procuravam os poucos direitos legais que conheciam. Este trecho do discurso Ts’eltal, nos parece conter um forte indício do início de uma percepção da necessidade de lutar para fazer valer seus direitos, quando as formas pacíficas e legais já não conseguem cumprir seu papel.

O que os congressistas Ts’eltales estão dizendo neste trecho é que, caso as autoridades estabelecidas continuassem a ignorar e até mesmo contribuir para manutenção da exploração, o “limite” seria atingido e as próprias comunidades buscariam, através de outros meios, a garantia da concretização de seus direitos.

Também se pode perceber o incentivo à luta, através da maneira como aparece no documento a figura do Frei Bartolomé de las Casas, apresentado nos discursos contidos nos sub-congressos que antecederam e serviram de preparação para o congresso indígena.

De acordo com a parte Antecedentes do documento, depois que o bispo Samuel Ruiz García reuniu sua equipe, convocou grupos indígenas e, com o bom acolhimento por parte destes últimos à ideia do congresso indígena, formou uma equipe coordenadora; foi programada uma série de sub-congressos regionais, que visavam alcançar as bases indígenas e garantir que o congresso fosse delas.

A dinâmica destes sub-congressos foi a seguinte:

[…] Se presentaba la figura de Fray Bartolomé, su pensamiento y su lucha; después se hacían breves reflexiones sobre la realidad actual del indígena con miras a provocar la reflexión de los grupos. Enseguida pasaban a formar los grupos de reflexión, para volver de nuevo a la plenaria, a fin de exponer sus puntos de vistas (CIEPAC, 1974).

No documento, existe um discurso sobre Frei Bartolomé de las Casas que se enquadra na descrição do discurso que foi apresentado às comunidades indígenas nos sub-congressos:

Primero vino a esta tierra un señor llamado Cristóbal Colón […] En ese tiempo los viejitos tenían buenas organizaciones. Tenían doctores, ingenieros, abogados, constructores. Tenían autoridades como nosotros las queríamos. […] empezaron a molestar los viejitos, a quitarles sus tierras, y hacerlos trabajar sin sueldo y trabajando duro todo el día. Nos quitaron toda nuestra organización que teníamos. Entonces todos los ladinos nos trataron como animales.

Fray Bartolomé de las Casas vio que era muy mal lo estaban haciendo sus otros compañeros, entonces empezó a defender a los indígenas […] Como eran bastantes los ladinos hasta lo querían matar a Fray Bartolomé, porque nos estaba defendiendo. Luchó bastante y les pidió a las autoridades del otro lado del mar que dejaran de molestar a los caxlanes, que hubiera una ley para que seamos todos iguales […] viajo 14 veces hasta obtener la ley de que seamos todos iguales (CIEPAC, 1974).

Na seqüência, o discurso passa a tratar da realidade da década de 1970.

Nosotros, los indígenas, ahora es tiempo de que empecemos a pensar y a ver si de veras tenemos la libertad que dejó Fray Bartolomé de las Casas.

[…] Hemos venido sufriendo la injusticia durante 500 años y siguiendo igual. Siguen las injusticias sobre nosotros. Siempre nos quieren manejar como criaturas, porque nosotros somos Indígenas. O piensan que nosotros no tenemos derecho.

Bueno compañeros, ahora Fray Bartolomé ya no vive. Solo en su nombre hacemos este congreso. El ya murió y ya no esperamos otro.

¿Quién nos va a defender sobre las injusticias y para que tengamos libertad? […] Nosotros tenemos que ser todos el  Bartolomé. Entonces nosotros mismos nos vamos a defender por la organización de todos […] (CIEPAC, 1974).

Héctor Hernán Bruit (1991) afirma que Frei Bartolomé de las Casas, em seus discursos, sublinhava a violência e a destruição causada pelos conquistadores e, também, a imagem dos indígenas como inocentes, bondosos, humildes, pacíficos, servis e conformados, militar e culturalmente, com a derrota, ou seja, perfeitos para serem cristianizados.

Frei Bartolomé não enxergou o indígena como outro, como sujeito ativo de sua própria história, que quando não foi mais capaz de resistir militarmente, o fez de outras maneiras, conseguindo assim manter viva a sua cultura. Ele o enxergou como um “eu” idealizado, perfeito para a fé cristã (BRUIT, 1991).

No entanto, a imagem do Frei Bartolomé de las Casas e dos próprios indígenas que o documento passa é, também, idealizada e nela pode-se perceber a influência do ideário cristão.

O Frei Bartolomé de las Casas do documento é um arquétipo religioso, aproximado da figura de Jesus Cristo, uma vez que ele é aquele que se sacrificou para salvar os indígenas indefesos.

Parece-nos que a figura do Frei Bartolomé de las Casas foi elevada à condição de mito e serviu como combustível para a luta das comunidades indígenas do presente, isto é, em meados da década de 1970.

Esta reflexão nos leva a pensar no conceito de cultura política. JeanFrançois Sirinelli (1988) propõe uma história política enriquecida pelos êxitos recentes da história cultural. Para Sirinelli, cultura política:

[…] é um conjunto de representações que une um grupo humano no plano político, isto é, uma visão de mundo partilhada, uma leitura comum do passado, uma projeção no futuro vivida em conjunto. É o que conduz, no combate político cotidiano, à aspiração desta ou daquela forma de regime político e de organização sócio-econômica, ao mesmo tempo as normas, crenças e valores partilhados (SIRINELLI, 1988, p. 414).

Serge Berstein (1988, p. 355) afirma que uma cultura política nasce quando um determinado grupo social fornece respostas frente “[…] aos grandes problemas e às grandes crises de sua história, respostas com fundamento bastante para que se inscrevam na duração e atravessem gerações”. Entretanto, por surgirem ousadas e/ ou inovadoras, as novas soluções propostas podem levar um prazo muito longo para estruturarem-se e formarem uma política normativa.

Por outro lado, a cultura política não é algo petrificado, ela é um corpo vivo que sempre está transformando-se, alimentando-se e
enriquecendo com múltiplas contribuições das outras culturas políticas e das novas conjunturas. (BERSTEIN, 1988, p. 357)

A elevação da figura do Frei Bartolomé de las Casas à condição de mito nos parece ser o indício de uma visão de passado partilhada, que levou à luta pela construção de um futuro melhor, ou seja, indício da existência e do início da estruturação de uma cultura política, comum às comunidades indígenas chiapanecas.

A segunda parte do discurso acerca do Frei Bartolomé trata exatamente disto. Nela rememora-se a visão mítica de um passado familiar aos indígenas, através da figura de um salvador, para incentivar a luta por um futuro melhor, almejado pelas comunidades, uma luta pela auto-salvação no presente, característica marcante do ideário da teologia da libertação.

Outro ponto que pode ser ligado à cultura política indígena é a análise feita por Luis Villoro, já citada neste artigo. O autor entende o EZLN como (mais) um movimento de retorno do Estado plural à cena. Além de entender que as demandas dos congressistas marcam uma primeira ruptura, pode-se também pensá-las como resultantes de uma cultura política comum. Cultura
política que teria nascido juntamente com a independência mexicana e, a partir do congresso de 1974, começou a estruturar-se e passou a determinar o projeto de futuro almejado por estas comunidades.

Desta forma, quando o grupo de origem urbana foi apresentar sua proposta aos indígenas de Chiapas, ela não interessou a eles, pois não dava conta da realidade local e não estava de acordo com sua cultura política.

Entretanto, algum tempo após os primeiros contatos, o Subcomandante Marcos e seus companheiros passaram por um processo  de compreensão da realidade material e simbólica indígena chiapaneca, o que fez com que sua proposta de luta fosse modificada e aceita.

O congresso de San Cristóbal de las Casas havia iniciado um processo e a cultura política indígena encontrava-se em fase de estruturação. O que o grupo urbano fez foi apresentar novas respostas, que enriqueceram a cultura política indígena.

Apontar a importância do congresso indígena de 1974 significa se posicionar ao lado daqueles teóricos que acreditam que os homens comuns constroem sua própria História, ou seja, é propor que foram as próprias comunidades indígenas que, não só assumiram o comando do EZLN (GENNARI, 2002, p. 51), como criaram as condições para que o movimento pudesse surgir, com as características com as quais ele se levantou contra o Estado mexicano.


Referências

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BRUIT, H. H. Derrota e Simulação. Os índios e conquista da América. Resgate: Revista de Cultura. Campinas, n. 2, 1991.
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COUTROT, A. Religião e política. In: RÉMOND, R. (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
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Notas

* Artigo produzido sob orientação da professora Edméia Aparecida Ribeiro.
** Especialista em História Social pela Universidade Estadual de Londrina.
*** Lutas & Resistências, Londrina, n.2, p. 45-57, 1º sem. 2007.

1 Detentor do comando militar e porta-voz do EZLN, submetido ao comando das comunidades indígenas.

2 Filhos de pai e mãe espanhóis, nascidos no México.

3 O padre Miguel Hidalgo y Costilla e o sacerdote José María Morelos y Pavón foram representantes do baixo clero que lideraram as massas camponesas e indígenas na luta pela independência mexicana.

4 Líderes da Revolução Mexicana (1910-1917). Villa foi o chefe militar do exército camponês da divisão Norte, enquanto Zapata foi o chefe militar do Exército Insurrecional do Sul e acabou sendo assassinado em uma emboscada em 10 de abril de 1919.

5 Portanto, anteriormente à sistematização da teologia da libertação que, segundo Zilda Márcia Grícoli Iokoi (1999), ocorreu em 1969, com o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez. Segundo Michael Löwy: “[…] a teologia da libertação é, ao mesmo tempo, o reflexo de uma práxis anterior e uma reflexão sobre ela. Mais precisamente, é a expressão/legitimação de um vasto movimento  social, que surgiu no início dos anos 1960” (1991, p. 25).

6 Denominação dada aos mestiços em Chiapas.

7 Todas as citações não indicadas são referentes à CIEPAC (1974).

8 Segundo Michael Löwy (2003, p. 62), o trabalho da diocese do bispo Samuel Ruiz García recusava toda ação violenta.

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