O direito à memória no combate ao racismo

QuadroQuilombolas

Por Silvana Bahia, no Observatório de Favelas

Se a memória é processo em constante construção, um imenso repertório de narrativas que acumulamos, acionamos e atualizamos a todo tempo, ela nos ajuda a construir histórias. As narrativas produzidas para contar a “história oficial” do Brasil demonstra a barbárie dos 388 anos “oficiais” da escravidão e a tentativa de apagamento da memória dos negros no país. O estudo da História da África, da luta e cultura dos negros no Brasil é um importante passo na reconstrução destas narrativas. Embora seu ensino seja obrigatório desde 2003 pela lei nº 10.639, sua aplicabilidade ainda encontra muitas dificuldades, o que acaba não favorecendo o direito à memória dos negros brasileiros.

O interesse pela história e memória de seus ancestrais fez com que o professor de biologia Luiz Henrique Rosa se empenhasse há mais de 15 anos numa abrangente pesquisa sobre a Cultura Negra. A história de Manoel Congo, líder da Revolta de Vassouras, foi fundamental para o desenvolvimento do trabalho que o professor Luiz iniciou em 2009, na Escola Municipal Herbert Moses, no Jardim América, Zona Norte do Rio de Janeiro, para discutir e combater o racismo com seus alunos do ensino fundamental.

Novembro é um mês relevante na história do povo negro e na luta contra o preconceito no Brasil. Comemoramos no dia 20 o Dia Nacional da Consciência Negra, em referência a morte de Zumbi de Palmares. A histórias conta que também no mês de novembro de 1838, estourou uma das maiores rebeliões de pessoas escravizadas na região de Paty de Alferes, no Rio de Janeiro. A Revolta de Vassouras, liderada por Manoel Congo e Mariana Crioula, repercutiu em todo Rio de Janeiro da época, mobilizando mais de trezentas pessoas da região que fugiram das senzalas na luta por dignidade.

Em 2008, na visita à capela construída em homenagem ao negros punidos na revolta, Rosa teve acesso aos documentos do fazendeiro Manuel Francisco Xavier. Na entrada da capela consta os nomes dos escravos capturados e julgados por se revoltarem. “No inventário do escravizador tinha o registro de mais de trezentos nomes de pessoas que constavam como se fosse dele. Lá também descobri que Manuel Congo teve uma filha com Balbina Congo, a Concórdia, e a batizou em 1833. Embora os documentos ‘oficiais’ narrem que Manuel Congo fosse companheiro de Mariana Crioula, sua filha com Balbina não teve a oportunidade de ser criada pelo pai e de saber sua história”, assim contou o professor.

No mesmo período, o professor de biologia, que atua no município há 18 anos, depois de perceber os apelidos que seus alunos usavam para se agredirem verbalmente, resolveu fazer uma pesquisa. À época, Luiz tinha 13 turmas com 40 alunos cada e pediu para que cada um escrevesse os apelidos que conheciam para agredir o outro. Quando sistematizou as mais de 800 termologias pejorativas, observou que cerca de 360 eram de conteúdo racista. “Macaco” era o apelido mais usado. “Esse apelido ofende diretamente na questão da intelectualidade”, analisa Luiz Henrique. A partir daí o professor teve a certeza que os alunos, a maioria afrodescendentes, desconheciam e/ou só sabiam apenas uma versão da história dos negros no Brasil – a versão que não reconhece a importância do negro para formação da sociedade brasileira, o que fortalece o racismo.

“Uma coisa é você ouvir, mas quando vi no papel… É realmente assustador! Agora, vou fazer um apanhado de piadas. Quero fazer um banco de dados só com conteúdos de programas e piadas racistas. Qual a resposta que nós damos? Estamos montando um vídeo que a primeira parte é de pensamentos racistas. Precisamos desconstruir esse imaginário social que sustentou por séculos a teoria de que o negro é inferior”, afirmou o professor. Assim nasceu o projeto “Qual é a graça?”, com o objetivo de reconstruir outras narrativas sobre a memória do negro no Brasil e na África. O projeto reúne ações que mistura disciplinas como Biologia, História, Geografia, Literatura, de forma lúdica trabalhando as noções de repeito, cidadania e enfrentamento ao racismo.

Um jardim pra recontar histórias

Imaginar o sofrimento de Concórdia, filha de Manoel Congo, motivou o professor Luiz e alguns alunos, que decidiram criar um jardim para contar a história do pai dela pra ela, enquanto um herói que lutou pelo direito do seu povo. “A gente não sabe o que aconteceu, mas sabemos que ela sofreu bastante de um jeito ou de outro. Esse motivo nos levou a construir um jardim para Concórdia, sempre pensando no que poderia agradar uma menina de 5 anos. A gente parte do seguinte pressuposto: e se ela não gostar? A meninada começou a incorporar isso. ‘Vamos colocar uva? Mas e se ela não gostar? Então vamos colocar laranja’. E foi assim com as flores, ‘vamos colocar uma amarela? E se ela não gostar? Vamos colocar uma rosa’”.

Para o projeto dar certo era preciso envolver todo o colégio: professores, alunos e direção. Quando comentou com a antiga diretora sobre sua ideia, ela disse “professor, o senhor tem toda a liberdade, mas o senhor tem treze turmas, como vai fazer?” Menos tempo de almoço e todo o tempo vago era dedicado ao jardim para Concórdia. Os alunos viam o professor Luiz no terreno atrás da arquibancada da quadra e se interessaram em ajudá-lo. E assim foi. Aos poucos, as crianças, inclusive aquelas que não tinham aula com o professor, começaram a se envolver com o projeto.

Ao entrar no jardim, a primeira surpresa para Concórdia são as pedrinhas de brilhante grudadas no chão de concreto que desenha o caminho. Ainda na entrada dois canteiros, um cercado com garrafas pets nas cores do Brasil e outro com as cores da União Africana. No jardim também tem uma parte destinada aos desertos para explicar a geografia da África, como o do Saara, da Namíbia e do Kalahari. Com a ajuda dos alunos o professor criou um grande painel, a Parede dos Homenageados, com mais de 200 nomes encontrados no inventário do fazendeiro Manuel Francisco Xavier.Eles compraram pequenos pedaços de mármore e escreveram o nome das pessoas escravizadas. Cada aluno “apadrinhou” um homenageado.

Para contar a história de Manuel Congo a Concórdia, era necessário falar da África, do Congo onde ele nasceu e também a história do Brasil. Para isso, foram plantadas sementes de pau-brasil, canela, cacau, açaí, limão, manga, entre outras. A Biologia, Geografia, História e até a Literatura e a Língua Portuguesa podem ser estudados a partir do jardim para Concórdia. “Plantamos laranja lima, porque o professor de Literatura pode usar pra contar a história do livro “meu pé de laranja lima”. Jenipapo foi para fortalecer o Português, já que é fácil confundir a letra J com o som do G. Assim a criança não esquece”, refletiu Rosa. O jardim também tem a fogueira dos anciões, onde todos se reúnem para contar histórias sobre a cultura negra. Jonathan não é aluno do professor Luiz, mas acompanhava o professor durante a caminhada no jardim e participa do projeto desde o início. “Eu gosto de tudo, mas o que mais me deixa feliz é conhecer novas histórias”, contou o jovem de 13 anos.

Para o professor, discutir uma questão tão séria quanto o racismo na escola é fundamental para mudar uma cultura pautada no preconceito. “Que resposta nós vamos dar, inclusive para nós? Já somos muito bons no esporte, agora acho que temos que ser os melhores do mundo na educação. Quando a gente chega ao ponto de ter que obrigar a escola, a instituição a falar de racismo isso demonstra o poder do preconceito e da discriminação em nossa sociedade. Não dá para esquecer e muito menos fechar os olhos”.

Iniciativas como o projeto “Qual é a graça?” fortalecem e reforçam a importância de discutir a questão racial no Brasil. Falar que o racismo não existe é uma forma de não lidar com a questão e só favorece o preconceito. As políticas de ações afirmativas devem ser ampliadas na busca de um sociedade mais justa e democrática. Assumir que a discriminação racial é uma ferida aberta e, que embora haja avanços, é preciso atualizar e ampliar os acessos, abre caminho para um debate que se faz urgente em direção à superação do racismo.

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