Sérgio Botton Barcellos*
No atual contexto e cultura política que vivemos no Brasil, e também no mundo, vem ganhando solo fértil, em meio a uma cultura de consumismo e individualismo exacerbado por vezes, diversas formas de manifestação de ódio e preconceito, que estão se (re) configurando, em um século XXI, em meio as diversas possibilidades e velocidade de transmissão de informações pelas redes sociais que prometia uma maior “aproximação” entre os (as) distantes. Entretanto, é nesse espaço virtual que milhares de pessoas (algumas por meio de codinomes) ou grupos postam diariamente inúmeros comentários de inspiração racista, xenofóbica, homofóbica ou semelhante, em uma espécie de combate às formas de diferença. Uma espécie de “todo mundo posta, poucos leem e dialogam ou interpretam”.
O estímulo a esse tipo de pensamento preconceituoso e intolerante pode ser entendido como um dos instrumentos de legitimação de um projeto de poder político e econômico, não só aqui, como na Europa e outros lugares do mundo, que também é forjado por interesses concretos de vários grupos financeiros transnacionais (indústria armamentista, de medicamentos, extração de minerais, insumos agrícolas e alimentos etc.) em articulação com governos de roupagem de “esquerda” e direita.
Falso moralismo, frieza na concepção materialista da vida, consumismo e comunicação instantânea, em que se verbalizam inúmeras coisas, mas poucos se assumem e querem se responsabilizar. Exemplo disso é que muitos (as) ao cometerem um ato preconceituoso relativo a etnia, fisionomia, sexualidade, condição social e região do país em que se mora, logo em seguida afirmam “não sou preconceituoso”, ou “não quis dizer isso” ou ainda “não foi a intenção”. Também não é menos comum a pessoa assumir o “ato preconceituoso”, mas justificado ao fato de ter sido uma “brincadeira” ou com algum tipo “tradição natural”, como o exemplo de algumas torcidas de times de futebol ou após a reeleição da presidenta Dilma. Em suma, estamos vivendo intensamente um momento em que se reivindica o “negar por negar as coisas” e o “politicamente incorreto” tendo automatizado o comportamento paradoxal de comumente dissociar o que somos e os nossos atos da autoimagem social que tenta-se criar de sujeitos “ilibados” e bons (as) moços(as).
E ao mesmo tempo que é negado, pode ser todo dia visualizado nas redes sociais seja em forna escrita ou em vídeo. As informações estão circulando. Mas de que forma? Estimulando o quê? Com que tratamento político?
Ao super expor o que certo Deputado Federal falou sobre “tudo de ruim aqui no Rio Grande, como gays, índios, negros etc.”, o mesmo teve a maior votação no estado. Os casos de defesa da homofobia e redução da maioridade penal cometido por um deputado federal do Rio de Janeiro e o caso do pastor da “cura gay” foram amplamente denunciados e os mesmos obtiveram respectivamente a primeira e a terceira maior votação para deputado federal em seus estados. Teria outros diversos exemplos para citar, mas por hora cito esses casos mais recentes.
Denunciar casos e figuras públicas com esse comportamento é mais do que necessário, até para expor valores entranhados em nossa sociedade e que são um dos alicerces da desigualdade e da injustiça social. Contudo, há de se repensar de que forma está se politizando o debate nesse momento atual ao apenas super expor pessoas que cometem atos preconceituosos e conservadores, como símbolos de valores que estão aí incrustados e com capilaridade na nossa sociedade, via redes sociais, inclusive em alguns canais que se denominam alternativos, mas que estão mais interessados no número de “visualizações e likes” que isso pode gerar. Isto é, uma contestação ou denúncia social ao ser apenas exposta, sem problematização política, tende a ser convertida em “onda’ ou “meme de redes sociais” e acaba sendo algo naturalizado ou banalizado como “mais um caso” a ser assistido pelas redes sociais.
O fato é que estamos muitas vezes sem perceber ou refletir reproduzindo ou compondo o grupo que estimula a banalização e naturalização de toda uma cultura que milenarmente oprimiu e subjugou diferentes grupos sociais ao longo da história, como forma de autoafirmação. Parece que temos um paradoxo político a ser pensado e em conjunto.
Esse paradoxo não pode ser delegado apenas a essa ou aquela pessoa, pois é uma questão nossa e vamos ter que refletir se também não colaboramos para isso, quando na melhor das intenções cremos estar denunciando/compartilhando as mazelas que se assentam sobre um sistema social e econômico capitalista que para existir depende da reafirmação constante de determinados valores em um período da história.
Em relação a isso, Boltanski e Chiapello, em o “Novo espírito do Capitalismo”, problematizam a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo, descrevendo que:
O capitalismo é provavelmente, a única, ou pelo menos a principal forma histórica ordenadora de práticas coletivas perfeitamente desvinculadas da esfera moral, no sentido de encontrar sua finalidade em si mesma (a acumulação do capital como fim em si), e não por referência não só ao bem comum, mas também aos interesses de um ser coletivo, tal como povo, Estado, classe social. A justificação do capitalismo, portanto, supõe referência a constructos de outra ordem, da qual derivam exigências complementares diferentes daquelas impostas pelo lucro. Para manter seu poder de mobilização, o capitalismo, portanto deve obter recursos fora de si mesmo, nas crenças que em determinado momento, têm importante poder de persuasão, nas ideologias marcantes, inseridas no contexto cultural que ele evolui (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009, p. 53).
O que se ganhou em poder de consumo e acesso a informação, parece que está se perdendo em humanidade, com o ódio e a banalização estimulados em meio ao atual sistema capitalista e ao projeto de ascensão ao governo de determinados grupos políticos. E uma das estratégias de consolidar essa situação é nos manter distraídos, seja pela barbárie, seja fazendo a super exposição de ofensas racistas, xenofóbicas, homofóbicas de condição social e regional, ou mesmo achando que estamos combatendo o “inimigo e o opressor de fato”.
Vivenciamos os efeitos de mais uma crise e a expansão do sistema capitalista com seus desdobramentos no Brasil. Percebe-se que para a consolidação desse tipo de projeto está se apostando em remontar como pensamento hegemônico um conservadorismo calcado em um estímulo ainda maior a práticas de dominação entre grupos sociais pelo exercício da violência física e simbólica.
No espectro eleitoral, por exemplo, além dos pedidos de “intervenção militar” por um determinado grupo de extrema direita, um dos exemplos mais recentes disso foi a crescimento da votação em bancadas parlamentares que propagandeiam ou tem uma atuação de ode à violência, com discursos de ódio e à negação a diversidade social, como, por exemplo, a “bancada da bala” no estado de São Paulo. Junto a isso, soma-se o fato de que a composição recém eleita do Congresso Nacional foi apontada pelo DIAP como a mais conservadora desde 1964 (ano do golpe militar).
Mais uma evidência do momento histórico e do imaginário social que está se configurando foi a forma quase naturalizada com que uma grande parcela da sociedade aderiu a propostas de um dos candidatos à presidência de reduzir a idade penal e a reforma da legislação penal, com o aumento de penas e a redução das garantias processuais. Parece que se avizinham tempos difíceis para quem acredita em uma sociedade mais justa e igualitária.
Da mesma forma, em meio à disputa político-partidária vigente no Brasil entre os dois maiores partidos (PT e PSDB) alerta-se para o fato do acionamento de um discurso equivocado, com o uso de termos como “fascismo”, “nazismo”, “comunismo” e outros “ismos”, como recurso de retórica e de xingamento, não de politização do debate. A preocupação de alguns grupos de “esquerda”, ao querer “desmascarar” a ideologia de determinados grupos da direita no Brasil, da forma como está sendo feita, parece mais um bate boca com o uso de ideologias como xingamentos, com o objetivo de legitimar a disputa entre grupos de poder por governos, do que atuar na construção de um debate político profundo sobre o momento histórico que vivemos e construímos. Em suma, são elaboradas muitas armadilhas para que nos confundamos ou para fazermos parte de algo que quando percebemos já estamos reproduzindo, às vezes sem ter refletido a respeito.
Também como catalizador desse discurso conservador historicamente temos os grandes grupos de comunicação no Brasil que só em ouvirem falar em regulamentação têm “calafrios”. Esses grupos de comunicação no Brasil com o estilo de notícia e programação que realizam, sem
regulamentação ou responsabilização por algum conteúdo inverídico, são indutores de uma visão de mundo distorcida e criadora de falsas polêmicas.
E o governo Dilma que foi eleito nesse contexto? Se formos considerar algumas ações do governo reeleito nos últimos tempos, em relação ao plano econômico, à concepção de “ordem e progresso” e à realização das reformas de base, junto com o quadro de governadores e o congresso nacional eleitos, a perspectiva é que vamos ter, em relação aos três governos anteriores, um mandato com uma governabilidade mais complexa ainda. E a questão da Reforma Política? O governo eleito ficará embaraçado em mais um equívoco se promover uma reforma política decidida a priori no interior dos partidos e do Congresso Nacional, legitimada apenas por um plebiscito ou referendo, e não atender as reivindicações históricas por direitos sociais e democracia participativa das organizações e movimentos sociais da cidade e do campo.
Mesmo com a direita e grupos de pensamentos extremamente conservadores se rearticulando e com a repressão policial e judicial, a perspectiva é que muitas manifestações ocorrerão pelas ruas do Brasil e terão como pautas a reivindicação por mais educação, saúde, habitação, transporte público digno e de qualidade, bem como uma segurança pública que proteja o povo e que não militarize as comunidades, violente manifestantes, mate crianças e jovens pelas ruas e favelas (vejam o recente caso do “acerto de contas” da ROTAM em Belém do Pará).
Para dar o sentido e o rumo político desejado aos protestos sociais com um viés de questionamento e reivindicação por direitos sociais básicos, e não criar palco para preconceitos e grupos de ode a “intervenção militar”, talvez tenhamos que despender muito mais tempo do que imaginamos fazendo política e estimulando canais de debate com participação social nas mais diferentes frentes, além das redes sociais, e se preparar para mais um momento de resistência e disputa dos rumos do conjunto de mobilizações sociais que estão por vir aí.
A primeira parte desse texto pode ser visualizada aqui.
*Sérgio Botton Barcellos é pesquisador.