Perfil de Mídia Comunitária: O Jornal “O Cidadão” da Maré

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Cerianne Robertson – Rio On Watch

Neste final de mês, a equipe do Jornal O Cidadão distribuiu cópias do jornal pelas 16 favelas que compõe o Complexo da Maré na Zona Norte do Rio.

Eles entregaram pessoalmente algumas cópias para pessoas que encontravam nas ruas e em lojas, enquanto punham outras por debaixo das portas de quem não estava em casa.

“Distribuindo o jornal de casa em casa… nós temos um retorno imediato quanto ao conteúdo”, explicou Gizele Martins, editora do jornal e moradora da Maré. “Nós ficamos sabendo se os moradores gostaram dos artigos, se não gostaram, se têm críticas ou não… se têm perguntas, se têm reclamações”.

Os membros da equipe do O Cidadão leem os artigos diretamente para aqueles membros da comunidade que não sabem ler. As escolas da comunidade também recebem cópias, de modo a permitir ao professor incorpora-los à aula. O jornal, que tem edições a cada três ou quatro meses, é sempre distribuído de graça.

O modo interativo de distribuição do O Cidadão se difere significativamente do modo de distribuição da maioria dos outros jornais, mas de todo modo o jornal da comunidade tem funcionalidades completamente diferentes de outras plataformas midiáticas. Ele intencionalmente busca preencher as lacunas entre a cobertura de fontes externas e a interação com a comunidade. Os jornais da mídia dominantes trazem “estereótipos e preconceitos” que ainda prevalecem na sociedade do Rio, argumenta Martins, antes de continuar: “Eu acredito que o papel da mídia da comunidade é acabar com isso”. Além disso, ela sugere, a mídia da comunidade é simplesmente melhor em cobrir casos relacionados às favelas. As pessoas que moram na Maré estão em melhor posição para contar as histórias da Maré.

Questões fundamentais de identidade local

Quando fundado em 2000, como projeto da ONG local Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), o principal foco do O Cidadão era explorar e criar uma identidade local entre as 16 favelas da Maré. Ele buscava respostas para questões como “O que é uma favela?” “O que é uma favela na Maré” e “Qual é a identidade da Maré?” O jornal inventou o termo Mareense para descrever alguém ou alguma coisa com origem na Maré como um esforço para criar um senso comum de pertencimento à comunidade. Para responder à essas questões fundamentais, o jornal focou na cultura local do dia à dia, contando a história de uma padaria ou de um pescador local.

O projeto não é de fácil manutenção. Os jornalistas são todos voluntários. Alguns são responsáveis não só por reportar e escrever, mas também por editar, realizar tarefas administrativas e pelo curso de jornalismo comunitário oferecido pelo O Cidadão. Alguns dos dez funcionários atuais mantém outros empregos simultaneamente. Apesar da maioria dos funcionários ser residente da Maré, alguns contribuintes vêm de outras favelas do Rio e as vezes da Região Metropolitana. Os custos de locomoção aumentam até mesmo para os membros residentes, já que eles precisam pagar por viagens de ônibus para cobrir acontecimentos por todo o território da Maré, enquanto que suprimentos básicos como papel ofício e canetas aperta as finanças do jornal. O grupo tem sorte de manter uma boa relação com o CEASM, que provê um escritório na Maré e cobre gastos com luz, Internet e telefone.

Treinando novos jornalistas da comunidade

Desde 2012, um de seus mais empolgantes projetos–o curso comunitário de jornalismo–tem servido para a renovação da equipe do O Cidadão com pessoas treinadas e com paixão por aquilo que fazem. O curso de 2014 começou em setembro e dura por volta de três meses. Os cursos cobrem uma gama de áreas da mídia, de reportagens escritas até vídeo e rádio, que são ministrados por funcionários do O Cidadão e estudantes de anos anteriores, de modo a criar um ciclo sustentável de estudantes e professores de ano em ano.

A importância de treinar pessoas para uma grande variedade de mídias vem claramente da grande variedade de plataformas que O Cidadão emprega. Já que muitos Mareenses não têm computador ou telefone com acesso a Internet, o jornal impresso continua sendo o principal formato utilizado para atingir os moradores locais. Todavia, o blog O Cidadão, suas páginas no Facebook e no Twitter crescem em audiência para além das barreiras físicas da favela. O site publica histórias muito mais regularmente que o jornal impresso, reportando os eventos enquanto acontecem. Martins acredita que a maioria dos leitores do site do O Cidadão são jovens de fora da Maré, enquanto que jovens de dentro do Complexo focam nos jornais impressos distribuídos na escola ou na página do Facebook.

Foco nos Direitos Humanos

Por volta de 2010 o jornal começou a mudar seu foco para questões de direitos humanos. Graças a umsucessivo número de tiroteios fatais, na Maré, a equipe “sentiu a importância de mudar os tópicos”, explica Martins. “As mortes e a violência foram um resultado do fato de que o governo não enxergava o espaço físico ou os moradores da comunidade como parte legítima da cidade. Eles só nos viam como marginais da cidade”.

A equipe do O Cidadão percebeu que outros jornais sugeriam que as vítimas jovens dos tiroteios estavam envolvidas com o tráfico de drogas, em casos onde os membros da comunidade sabiam ser falsos.

Enquanto os jornais dominantes da época se preocupavam em reportar as mortes, eles falharam em levantar as questões que eram tão urgentes para os moradores da Maré: “Por que há tanta guerra na Maré? Por que merecemos essa vida?” Da perspectiva da equipe do O Cidadão, os moradores são pintados como violentos, quando na verdade eles são governados pela violência; eles são pintados como criminosos, quando eles mesmo estão sendo vítimas de um crime. A discrepância entre a perspectiva da mídia dominante e a local era tão gritante que Martins descreve a mudança de foco do O Cidadão como uma “necessidade”.

Agora, no rastro da Copa do Mundo e enquanto o Rio se prepara para sediar as Olimpíadas de 2016, O Cidadão se mantém determinado em perguntar as questões que outras mídias negligenciam. Martins aponta que muitos jornalistas brasileiros e internacionais reportaram as remoções e ocupações policiais geradas pelos megaeventos, mas falham em perguntar as questões mais profundas que os moradores estão desesperados para compreender: “Um jornal reporta que uma favela será ocupada em razão da Copa do Mundo. Mas ninguém fala sobre o porquê da favela ser ocupada em razão da Copa do Mundo… ninguém está questionando porque o povo da Maré merece tanta guerra”.

A estratégia mantida para a preparação para as Olimpíadas, portanto, é continuar espalhando essas questões para o maior número de espaços possíveis. A equipe do O Cidadão pretende não só usar seu próprio jornal impresso, site e plataformas sociais, mas levar artigos às mídias dominantes e se engajar em debates, entrevistas e protestos, usando todos os meios disponíveis. Desse modo, sua mídia comunitária serve como uma fonte confiável de informações de dentro da favela, enquanto também engaja pessoas de fora da favela.

Para mais informações visite o site ou blog do O Cidadão ou os siga no Facebook e Twitter.

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