Globo News: Nem fede nem cheira, por José Ribamar Bessa Freire

Fed shirtEm Taqui Pra Ti

O que a Globo News têm a ver com o Beco da Bosta, no Bairro de Aparecida, em Manaus? Qual o papel dos comentaristas William Waack e Merval Pereira nessa história? A chave do enigma está na frase:

– Vem, Pet, vem!

Esta frase, que estava submersa em algum desvão secreto da memória, me persegue há dias. Ela emergiu da infância longínqua, de uma época em que qualquer casa do beco tinha um quaradouro feito de ripa localizado em espaço ensolarado no fundo do quintal. Sobre um deles, nossa vizinha Leonor estendia diariamente o lençol e a rede mijada do Joreca, seu filho, já ensaboada, esfregada e enxaguada. Mas antes cumpria um ritual enunciando uma frase ouvida por toda a vizinhança e que agora, sessenta anos depois, ainda martela meu juízo:

– Vem, Pet, vem!

Era assim, com voz lânguida, quase gemendo, que ela chamava seu cunhado Manuel Camilo, o Petel. Ele ia. Atendia a cunhadinha. Ajudava a estender o lençol para quarar. Ela segurava uma ponta, ele a outra, trocavam olhares ardentes e apaixonados, embora nada tenha rolado entre os dois, não por falta de vontade dele – nem dela, jurava dona Alvina, a tacacazeira – mas porque Leonor, virtuosa, não trairia o marido, embora fosse a única pessoa com intimidade para chamar o Petel de Pet. Nem dona Geraldina, a mãe do dito cujo, ousava tanto.

Enquanto deixamos o lençol no quaradouro para clarear, vamos em frente. Eis o que eu queria dizer: na mídia, tem muito comentarista que trata certas instituições distantes com a mesma intimidade dispensada por Leonor ao Petel. Foi ouvindo dois deles na Globo News – William Waack e Merval Pereira – que a frase da Leonor sepultada no fundo do poço da memória começou a me perseguir. O que disseram eles?

No news

– O Fed avalia que a economia dos EUA, ao contrário da brasileira, está em franca recuperação –
clamou William Waack, arreganhando os dentes com sorrisinho vitorioso e agradecendo a Nossa Senhora Aparecida – perdão a Our Lady of Perpetual Help, com quem ele trata essas coisas – por não se chamar Guilherme.

– Então, foi por isso que o Fed anunciou o fim de seu programa de ativos, o chamado quantitative easing
– complementou Merval Pereira, com uma expressão que fingia inteligência e acuidade e com inveja por não se chamar Merval Pear Tree.

Daí pra frente foi um festival de Fed. Só deu Fed na Globo News. Era Fed pra lá, Fed pra cá, Fed mais, Fed menos. O Beco da Bosta, onde Fed é outra coisa – et pour cause – ficou perplexo. Ninguém entendeu bulhufas do que disseram os dois comentaristas que vestiram a camisa do Fed. Se o Beco da Bosta nada captou, asseguro-vos que nem a torcida do Flamengo, nem o Brasil profundo compreenderam. Aqui pra nós, suspeito que nem os dois comentaristas sabem explicar direito o que falaram. Contribuem para que se pense a Economia como um campo esotérico. De qualquer forma, se Merval Pear Tree e Waack, o Bill, elogiaram o Fed é porque boa coisa não deve ser.

Da mesma forma que Pet é de uso íntimo para designar Petel – apelido do Manoel Camilo – assim também Fed é o apelido do Federal Reserve System, o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos responsável pela política monetária daquele país. O leitor tergiversador pode objetar que Fed já é um apelido consagrado, “universal”, não se trata de um código cifrado e eu lhe pergunto: consagrado por quem? Para quem falam os dois comentaristas? Nem Rubem Rola, criptógrafo do Beco, consegue decodificá-los.

– O Fed, em 2010, registrou um lucro de 82 bilhões de dólares e transferiu 79 bilhões para o Tesouro americano – disse não me lembro mais se o Merval ou o Waack, mas de qualquer forma foi um deles que falou isso lambendo os beiços, triunfante. Nenhum dos dois informou que o tal Fed é de fato uma instituição privada, dominada pelos bancos, e não uma instituição pública. Esse tipo de informação é que seria esclarecedor.

Good news

No entanto, quem está aqui na berlinda não é o Fed, mas a representação de certa mídia e a intimidade com que trata a economia dos EUA. Waack, experiente jornalista, foi correspondente internacional durante anos em vários países. Merval é membro do Board of Visitors of the John S. Knight Fellowships da Universidade Stanford, seja lá o que isso signifique. Mas isto não lhes autoriza a falar do Fed com tal familiaridade. Nunca rolou nada entre eles como os dois insinuam, embora dona Alvina, a tacacazeira, jure que tanto Mer quando Wil gostariam de ter um caso com o Fed. Wil daria tudo para isso, e o Mer dá.

A preocupação maior dos comentaristas é afetar chamego com o Poder internacional, como se tivessem compartilhado o breakfast com o Obama – digo, com o Oba – que lhes teria feito confidências. Esquecem de informar à audiência brasileira, a quem se dirigem, sobre o significado do Fed para nossa vida. Quando estabelecem tal relação, pontificam com ar doutoral, para nos dizer que a economia brasileira está em crise, ao contrário da norte-americana. Fazem críticas que não fedem, não cheiram, nem sensibilizam o Petel e a Leonor.

P.S. – Pensei até em “traduzir” aqui para linguagem jornalística o texto que apresentei nesta sexta-feira, em Foz do Iguaçu (PR) sobre o cronista índio peruano do séc. XVI, Felipe Poma de Ayala no Colóquio organizado pela UNILA – Universidade Federal de Integração Latinoamericana, na mesa redonda da qual fizeram parte os professores bilíngues guarani Joana Mongelo e Teodoro Alves, o xokleng Marcondes Nambla e os professores da UNILA Giane Lessa, Clóvis Brighenti e Mário Ramão Villaba. Mas a frase da Leonor não me deixou: vem, Pet, vem! Acabei indo. Poma de Ayala – o Pom – fica para outra oportunidade. Antes, eu tinha de me livrar do Pet e do Fed.

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