IHU Unisinos – “Talvez a atual eleição tenha ao menos um saldo positivo: colocar na nossa frente o retrato de um país clivado. Retrato que esperemos não ter mais volta. Pois pior é não deixar tal clivagem desdobrar sua força produtora, impedir que ela opere reordenamentos devido ao medo de enunciá-la claramente”, escreve Vladimir Safatle, professor de Filosofia, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 14-10-2014. Segundo ele, “tal divisão, e isto é regra já há algum tempo, costuma ser esquecida depois das eleições. Depois delas, os interesses esquecidos e sofrimentos sem vozes perdem muito de sua visibilidade, até porque os atores hegemônicos que lembraram das clivagens nas eleições não sabem o que significa governar sendo fiel à consciência dos antagonismos”. Eis o artigo.
A política sempre foi a força da divisão. Ela nomeia os interesses esquecidos, nos faz ver o sofrimento de quem até então não tinha voz claramente identificável, mostra o que muitos gostariam de esconder. Por isto, a política divide. Sua matéria-prima é a consciência dos antagonismos, é a coragem de enunciar conflitos e de dizer, claramente: “não, não temos os mesmos interesses”.
Faz parte do discurso oficial brasileiro, meio político meio cultural, afirmar que nossa “natureza” é a conciliação mansa dos contrários no ritmo do batuque. Na verdade, eis um discurso que convém para os que não querem deixar as contradições à mostra. Ele é o discurso antipolítico por excelência. Desde a República Velha, ouvimos a cantinela de que os interesses do povo brasileiro convergem para uma redentora união da diversidade. Chico Mendes e o Banco Itaú, o dono de imóveis que especula e o sem-teto que ocupa casas vazias, você que acorda cedo, trabalha duro, ganha pouco e os rentistas que aproveitam sua condição de bem-nascidos.
Nesta eleição, tivemos candidatos que tentaram vender essa concepção “baby Johnson” de política. Não durou duas semanas, sólida como uma bolha de sabão. Uma “nova política” sempre nas bocas dos que querem quebrar a força de transformação da consciência dos antagonismos. Não impressiona que seus arautos terminem nos braços de quem sempre governa e nunca tem conquistas sociais concretas para colocar na balança.
Agora, o Brasil se vê claramente dividido, como no fundo sempre esteve. Não seria diferente com sua concentração de renda brutal, suas disparidades regionais, seus preconceitos nunca claramente combatidos. Não foi a polaridade PT-PSDB que a produziu. Essa polaridade apenas permitiu que a divisão se expressasse, mesmo que com atores políticos que não estão mais a altura de seus papéis.
Neste sentido, talvez a atual eleição tenha ao menos um saldo positivo: colocar na nossa frente o retrato de um país clivado. Retrato que esperemos não ter mais volta. Pois pior é não deixar tal clivagem desdobrar sua força produtora, impedir que ela opere reordenamentos devido ao medo de enunciá-la claramente.
Mas tal divisão, e isto é regra já há algum tempo, costuma ser esquecida depois das eleições. Depois delas, os interesses esquecidos e sofrimentos sem vozes perdem muito de sua visibilidade, até porque os atores hegemônicos que lembraram das clivagens nas eleições não sabem o que significa governar sendo fiel à consciência dos antagonismos.
Este seria um bom momento para começar a aprender.