O MPF, a CASAI-SP e mais uma quase novela vergonhosa de uma morte indígena anunciada

Mário Karai e o filho Carlos Papá Mirim, no Pronto Socorro Agenor de Campos, em 27 de agosto de 2014. Foto constante do Parecer
Mário Karai e o filho Carlos Papá Mirim, no Pronto Socorro Agenor de Campos, em 27 de agosto de 2014. Foto constante do Parecer

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Durante dois anos, o idoso Guarani Mário Karai Tataendy foi mantido em regime fechado na Penitenciária de Paraguaçu Paulista, condenado a 12 anos sem que em qualquer momento do processo sua condição de indígena (assim como a das testemunhas envolvidas no caso) fosse respeitada, levada em consideração ou sequer mencionada. Durante dois anos, ele foi definhando, a 750 quilômetros de sua aldeia, sem a presença da Funai e sem que seus familiares tivessem condição de visitá-lo com a necessária frequência. Durante dois anos, seu estado foi evoluindo da negativa de comer alimentos que iam contra suas crenças à anemia, à diabetes, à falência renal, à septicemia, ao óbito.

Durante meses, sua família procurou alertar as autoridades – leia-se a Funai e a Procuradoria da República Especializada – buscando, primeiro, transferi-lo para perto da aldeia; depois, conseguir ajuda para sua saúde cada vez mais frágil. Durante duas semanas, o Ministério Público Federal em São Paulo, através do Procurador da República André Lopes Lasmar e, mais diretamente, da perita/analista antropóloga Deborah Stucchi, lutou contra a omissão e o desinteresse por parte de servidores lotados em órgãos públicos. Durante quatro dias, ouviram da direção da CASAI-SP, criada exatamente para cuidar da saúde indígena, desculpas e exigências descabidas,  procrastinando a remoção e o tratamento até a situação se tornar irreversível.

Ao final, perderam Mário Karai e todos que queriam garantir seu direito à vida. Até agora.

Ontem publicamos uma notícia a respeito: MPF vai apurar omissão de órgãos federais após morte de idoso Guarani em hospital de São Paulo. A história de como isso ocorreu é, entretanto, tão abjeta e revoltante, que merece ser denunciada. É o que faço a seguir, deixando de lado as circunstâncias do processo e centrando o relato mais nas duas últimas semanas de Mário Karai, da entrada em cena do MPF até a devolução de seu corpo aos Guarani, para ser enterrado no cemitério da Terra Indígena Rio Silveira, em Bertioga. Para isso serão utilizadas informações contidas em documento público: o Parecer escrito pela perita Deborah Stucchi (identificada neste texto com a Assessora) para o Ministério Público. 

Mais uma crônica de uma morte anunciada

O conhecimento dos problemas de Mário Karai pelo MPF se iniciam em abril de 2014, quando Cristine Takuá pede ajuda para o sogro, uma vez que a distância entre a aldeia em Bertioga e a penitenciária em Paraguaçu Paulista e o preço do transporte público dificultavam visitas dos familiares, enquanto sua saúde “definhava progressivamente”. Ela solicita a transferência do indígena para uma “instituição mais próxima da família e, a médio prazo, apoio da Procuradoria Federal Especializada Regional Itanhaém (PFE) para proposição de medidas judiciais atinentes à progressão da pena, de modo que o idoso retornasse ao convívio familiar e recebesse tratamento de saúde adequado”. Lamentavelmente, a falta de titular no 1º Ofício de Registro impede que o MPF leve a ação adiante na ocasião.

Vale dizer que no início de 2013, após um primeiro ano de detenção no qual o indígena não recebera qualquer tipo de atendimento por parte da Funai, sua nora já havia buscado ajuda junto à então presidente da entidade, Marta Azevedo, que incumbiu a Procuradoria Federal Especializada (PFE) Regional Itanhaém das medidas cabíveis. Nada aconteceu, entretanto. Mário Karai não recebeu qualquer atenção por parte da PFE ou da Coordenação Regional Litoral Sul da Funai. Seria graças à ação da Defensoria Pública de São Paulo que um ano depois, em 28 de maio de 2014, sairia sua transferência para o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Dr. Rubens Aleixo Sendin, em Mongaguá.

Na nova unidade o indígena é mantido na enfermaria, mas mesmo assim seu estado de saúde continua a piorar, determinando frequentes idas ao Pronto Socorro local para transfusões de sangue e outros tratamentos paliativos. É nesse cenário que, em 21 de agosto de 2014, o MPF é procurado de novo através da Analista e Perita Antropóloga Deborah Stucchi. A família quer ajuda para garantir que a FUNAI e a PFE ajam, pois a própria unidade prisional de Paraguaçu Paulista já se preocupa com “a complexidade dos … problemas de saúde e o definhamento” do detento. O caso é levado ao conhecimento do Procurador da República André Lopes Lasmar, e o MPF entra oficialmente em cena.

Acionado formalmente pelo Ministério Público, o Procurador Federal Especializado envia mensagens eletrônicas a setores da Advocacia Geral da União (AGU), da FUNAI e ao próprio MPF, nas quais relata longamente os exaustivos estudos necessários para entrar com a ação de revisão do processo criminal do indígena perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na mensagem, Evaldo de Andrade Teixeira não faz qualquer referência a datas, omitindo assim o fato de ter transcorrido mais de um ano desde a provocação da Presidenta da Funai, “sem que a representação local promovesse uma visita sequer ao indígena [então] recolhido ao presídio de Paraguaçu Paulista”.

Na verdade, é inclusive através da interpelação do MPF que o Procurador Federal Especializado toma conhecimento de que Mário Karai havia sido transferido para o CPP Mongaguá em maio de 2014 e de que estava internado no Pronto Socorro (PS) Agenor de Campos. Isso não impede, entretanto, que ele “informe que o Coordenador Técnico Local da FUNAI havia comparecido, em 26 de agosto, no CPP-Mongaguá, a seu pedido, ‘a fim saber das condicoes de saude do reeducando e prestar-lhe a assistencia institucional que compete a FUNAI'”; que a Coordenação Técnica Local da FUNAI acompanharia o caso ‘nos proximos dias para obter informacoes seguras e adotar-se quaisquer providencias que sejam recomendaveis”; e, até, que Mário Karai “recebera acompanhamento da FUNAI em virtude dos seus problemas de saude”. A realidade é que só então, três meses após a remoção de Mário Katai para o CPP de Mongaguá, em maio, e já estando ele internado no Pronto Socorro, a Funai se fez fisicamente presente. E, aparentemente, não mais que isso.

Segundo os relatos de Carlos Papá Mirim e de Cristine Takuá, filho e nora do indígena, os médicos e enfermeiros do Pronto Socorro Agenor de Campos e a Diretora de Serviço Social do CPP de Mongaguá informavam que as condições de saúde de Mário Karai, que já eram preocupantes quando de sua chegada de Paraguaçu Paulista, haviam piorado acentuadamente nesses três meses. Isso não impediu, entretanto, que o Procurador Federal enviasse ao MPF mensagem eletrônica sobre a ausência de “confirmacao e elementos de prova sobre acometimento de doenca grave”, o que impedia o “pleito para cumprimento de pena em prisao domiciliar, a ser apreciado pelo juizo da execucao”. Aparentemente, não ocorreu ao PFE deslocar-se até o Pronto Socorro para buscar essa “confirmação”.

A ação do Ministério Público Federal em Mongaguá

Ao contrário do PFE, nos dias 27 e 28 de agosto, o Procurador da República e a Assessora estão em Mongaguá. A manhã do primeiro dia, 27, tem início com uma reunião com a direção do CPP, durante a qual fica óbvia a urgência de se providenciar atendimento médico apropriado para Mário Karai. Longe de imaginar o que depois acontecerá, o Procurador da República fala da existência da rede especial de atenção à saúde do índio, no âmbito do SUS, e “da relevância da Casa de Saúde Indígena de São Paulo, como unidade de apoio ao tratamento de saúde especializado, e do Ambulatório do Índio, como o serviço de triagem da clientela indígena dirigida ao atendimento do Hospital São Paulo”.

Fica então decidido que a direção do CPP Mongaguá encaminharia à Justiça um pedido de saída temporária do indígena para internação e tratamento médico especializado sem escolta. Ao MPF caberia: “a) explicitar, com assessoramento antropológico, à promotoria e ao próprio juízo, as especificidades do caso; b) e provocar os órgãos responsáveis (FUNAI, SESAI, CASAI, UNIFESP/Ambulatório do Índio, PS Agenor de Campos) para a adoção das providências necessárias à transferência; c) promover ou intermediar a apresentação das comprovações necessárias – relatórios médicos, garantia de vaga para a transferência etc.- ao CPP de Mongaguá”.

Depois da reunião, o Procurador e a Assessora visitam a enfermaria, onde recolhem cópias do prontuário do paciente; conversam com outros doentes, que corroboram as informações de que Mário Karai recusava o alimento, não se comunicava, “passava a maior parte do tempo deitado, sem conversar, sem comer, e … nos últimos dias havia perdido o controle dos esfíncteres”. Em seguida, numa visita ao Pronto Socorro, encontram o indígena acompanhado do filho, “respirando sem auxílio de aparelhos, bastante abatido, magro e debilitado, falando em tom de quase inaudível”, mas lúcido. Vale citar o Parecer, considerando o papel a ser desempenhado pela CASAI nesta história:

“O paciente é informado pela autoridade ministerial e pela assessoria antropológica sobre as providências em andamento e sobre a intenção de transferência para São Paulo, onde receberia tratamento com o apoio da CASAI. Mário Karai demonstra satisfação e concordância ao ser informado que teria a CASAI como referência de apoio ao tratamento, relatando que já havia se hospedado na Casa de Saúde Indígena ao se recuperar de uma cirurgia. Reforça-se também que ele não seria esquecido, ao que Mário Karai assente e agradece, assim como seu filho Carlos Papá, que se separa da equipe após o almoço e retorna às suas atividades”.

Na conversa com os médicos do PS Agenor de Campos fica acertado que, enquanto são aguardados resultados de exames que confirmarão a necessidade de hemodiálise, serão tomadas providências para a remoção do paciente, e a equipe do PS permanecerá em alerta a partir de então, inclusive para ajudar no processo.

Da maior importância, como veremos, é outra decisão então tomada:  a de que a Assessora permanecerá no município, cuidando diretamente das primeiras medidas a serem tomadas. Assim, já no início da tarde de 27 de agosto, enquanto o Procurador da República mantém compromissos em Registro, a Assessora inicia os contatos telefônicos com a CASAI e o Ambulatório do Índio para a transferência de Mário Karai:

“A Drª Thaís Santos, coordenadora do Ambulatório do Índio/UNIFESP, solicita apresentação de relatório médico atualizado para melhor avaliação da condição de saúde e a adoção das medidas necessárias para obtenção de uma vaga no Hospital São Paulo ou Hospital do Rim e também na CASAI. O relatório médico solicitado, providenciado pela assessoria antropológica no PS Agenor de Campos …, é escaneado e enviado por correio eletrônico no mesmo dia 27 de agosto, às 15h:23m para a médica do Ambulatório do Índio e para a CASAI.

De plano, a médica afirma que a alternativa mais eficaz para assegurar o atendimento do paciente seria sua entrada pelo Pronto Socorro do Hospital São Paulo e, a partir desse acolhimento, todas as especialidades médicas necessárias do Hospital São Paulo ficariam disponíveis. Com a solução explicitada pela médica e, conforme a lógica permitiria concluir, faltaria apenas a CASAI emitir a declaração de aceite do paciente, que seria apresentada ao CPP de Mongaguá para instruir o pedido de liberdade provisória de Mário Karai”.

Para acelerar ainda mais os procedimentos, a Assessora sugere ainda um contato telefônico entre a médica Thaís Campos e o PS Agenor de Campos. A ideia é acatada, e a coordenadora conversa com a médica plantonista do Pronto Socorro sobre o estado de saúde de Mário Karai e os termos do relatório médico necessário.

Ainda no final da tarde do dia 27, o Procurador e a Assessora se dirigem ao Fórum de Itanhaém, onde expõem a situação à promotoria e ao juízo da execução penal, concordando todos quanto à “adequação das medidas propostas e o compromisso com a urgência da manifestação das autoridades locais”. Fica acertado com o cartório da execução penal que a Assessora encaminharia por correio eletrônico o comprovante da vaga disponível, para a concretização da burocracia judicial.

Um novo contato telefônico é feito então com a CASAI, para que o Procurador da República em pessoa explicitasse a Débora Furloni, chefe da unidade, “a necessidade de atuação célere no caso, a inviabilidade do retorno do idoso indígena ao sistema penitenciário, a urgência de intervenção médica especializada e acolhimento adequado ao paciente pela CASAI”.

Na conversa com o Procurador, a chefe da CASAI é solícita: informa que já tem reunião agendada para a manhã seguinte com a coordenadora do Ambulatório do Índio, a médica Thaís Santos, e com o Responsável Técnico pela CASAI, enfermeiro Carlos Antônio de Souza, “de modo a estabelecerem as medidas necessárias para recebimento do idoso Guarani”.

Na manhã do dia seguinte, 28 de agosto, enquanto teoricamente tudo está sendo acertado na CASAI, a Assessora vai à FUNAI de Itanhaém, em cujo prédio funciona também a PFE Regional, para “providenciar as cópias do processo e conversar com o coordenador técnico a fim de conhecer qual teria sido a atuação do órgão indigenista em apoio ao idoso preso e à sua família. Informada pela recepção sobre a ausência de todos os servidores da FUNAI que pudessem oferecer os esclarecimentos solicitados, … aguarda a chegada do Procurador Federal. Com a chegada do Procurador Federal Evaldo de Andrade Teixeira, obteve-se autorização para providenciar a cópia integral das cópias dos autos, no total de quase mil páginas”.

No final da manhã, as coisas começam a se complicar. Ao final da reunião entre a CASAI e o Ambulatório do Índio, em lugar de uma solução o que se tem é mais um problema: o Responsável Técnico da CASAI, enfermeiro Carlos Antônio de Souza, exige um novo relatório médico, no qual conste o pedido de hemodiálise, e um documento que comprove a falta de vaga no sistema regional de referência.

Apesar de totalmente questionável, a exigência do enfermeiro é providenciada pela Assessora junto ao PS Agenor de Campos: “a plantonista Drª Natália C. Droguetti reafirma a necessidade da hemodiálise, reitera que o retorno do paciente à unidade prisional significaria o óbito e oferece o relatório médico exigido”. Ainda na tentativa de cumprir as exigências da CASAI a tempo de o juízo apreciar o pedido no mesmo dia e, assim, acelerar-se a transferência do paciente antes de sexta-feira, 29, a Assessora sugere que a enfermeira responsável pelo contato com a central de vagas solicite uma resposta via telefone. A negativa da central de vagas é emitida formalmente às 15h:29m, e tanto ela quanto o relatório médico são escaneados e enviados “por correio eletrônico às 16h:17m, à CASAI e ao Ambulatório do Índio, reiterando pedido para a emissão da declaração de aceite necessária à apresentação ao CPP de Mongaguá e ao juízo da execução”.

Embora o recebimento da mensagem seja confirmado de imediato por telefone, somente às 18:04h a resposta da chefe da CASAI, Débora Furloni, chega. Agora, ela exige também o “agendamento do horario da consulta no Ambulatorio do Indio garantia do retorno do paciente para Mongagua” para “apenas apos ocorrer o deslocamento dele e sua entrada na CASAI” (grifos no original). E tenta justificar as novas exigências de forma totalmente absurda:

a) “em funcao da grande demanda nao e possivel manter um indigena na casa para esperar consulta ou por tempo indeterminado, sob pena de prejudicar a vaga de outros pacientes” e

b) “a casa nao e estabelecimento de saude e consequentemente nao pode realizar atendimentos medicos, tampouco atendimento de urgencia/emergencia e, considerando a gravidade do caso, se ocorrer o agravamento do quadro enquanto ele aguarda consulta, nao teremos meio de atende-lo”.

Como comenta a Assessora em seu Parecer, “bem conhecida a gravidade do quadro, evidenciava-se como providência adequada o acolhimento do paciente pelo Pronto Socorro do Hospital São Paulo, para proceder à internação, conforme já anunciado pela médica Drª. Thaís dos Santos. Contrariando as atribuições da CASAI, a chefia não se mobiliza para oferecer o apoio necessário. Embora, não tenha recusado diretamente o atendimento, utiliza-se da estratégia de criar dificuldades cada vez maiores e impor novas condições a cada fase do processo”.

As pessoas comprometidas com a vida de Mario Karai não desistem, entretanto. Às 20:25h, a Assessora confirma o recebimento das novas exigências da CASAI. Às 23:17h a médica Thaís Santos envia mensagem afirmando que o Ambulatório do Índio se dispõe a acompanhar o caso. Não há resposta.

Às 10:10h do dia 29 de agosto, sexta-feira, a Assessora indaga se a resposta enviada pela coordenadora do Ambulatório “preenchia a exigência da CASAI”. Às 11:15h, a chefia da CASAI responde agora que o Ambulatório do Índio deve também “enviar para a CASAI o dia e horario da consulta e a CASAI faz a convocacao do paciente, como se trata apenas de consulta, o paciente deve ter retorno garantido para Mongagua”. E continua: “Entretanto, acredito que nao seja esse o caso do Sr. Mario, pois ele se encontra internado em Mongagua e precisaria continuar internado em Sao Paulo, dessa forma, eu preciso de uma confirmacao de vaga para internacao do Ambulatorio do Indio para poder dar entrada do paciente na CASAI”.

A falta de pudor parece já não ter limites. A Assessora não consegue novo contato imediato com a médica Thaís Santos, que está fora, e encaminha à CASAI essa informação, afirmando continuar na “expectativa quanto ao atendimento exigido para dar sequência ao comprometido”. Já estamos na metade da tarde de sexta, e a Assessora começa a considerar remotas as chances de uma transferência antes do fim da semana, como diz em seu Parecer. Já de noite, às 19:49h, a médica Thaís Santos envia mensagem à CASAI garantindo ” o atendimento do Ambulatório do Índio, nos casos urgentes, em regime de livre demanda, além de acolhimento nos fins de semana”.

Cinco horas depois, já no dia 30 de agosto, às 00:49h, chega a resposta da chefe da CASAI, insistindo na “garantia de retorno” do paciente a Mongaguá, por tratar-se “apenas de consulta”, e informando que o enfermeiro Carlos estava incumbido de entrar em contato com a Assessora no dia seguinte, sábado, “para garantirmos a chegada do paciente”.

Embora desde o início tenha sido deixada clara, pelo próprio Procurador da República, a necessidade da apresentação em juízo do “aceite” do paciente pela CASAI para que ele seja liberado e a urgência de que isso ocorresse, o documento é prometido apenas para a tarde de sábado, 30. Às 15:30h, a Assessora está pronta para recebê-lo, mas a CASAI só o disponibiliza às 18h30m13s.

Assim, os documentos são todos enviados para o cartório de execução penal somente no domingo, e a Assessora recebe a decisão do Juiz Jamil Chaim Alves autorizando “a saída temporária e sem escolta de Mario Karai enquanto durar o tratamento” às 14:34h de 1º de setembro, segunda-feira. O documento é imediatamente encaminhado ao Pronto Socorro de Mongagua, para que a remoção seja efetivada.

A piora de Mário Karai

Paralelamente à luta para conseguir que a CASAI cumprisse com suas obrigações, a Assessora acompanhava o agravamento do estado de Mário Karai. Até 30 de agosto, sábado, ele estava consciente, e a previsão era de que uma sessão de hemodiálise bastaria para recompor a função renal e iniciar a recuperação de seu estado geral. Sem o tratamento, a falência renal se instala e começam os edemas pulmonares e a infecção.

Na noite de domingo, 31 de agosto, o PS Agenor de Campos informa a diminuição da consciência, edemas ocasionados pela falência renal e a necessidade de remoção urgente para Unidade de Terapia Intensiva – UTI. Uma ambulância com suporte de vida e médico estava pronta para o transporte naquele horário, caso se confirmasse a vaga em UTI no Hospital São Paulo ou em qualquer outro hospital. Mais: dada a gravidade do estado do paciente, o pedido de vaga já havia inclusive sido encaminhado para o sistema de regulação regional e, conforme a Assessora foi informada, “surgindo a vaga em UTI, o PS removeria o paciente a qualquer momento-e independentemente de autorizacao judicial, tendo em vista o risco de morte iminente”.

A informação é imediatamente repassada para a médica Thaís Santos, que entrará em contato com o Hospital São Paulo na manhã seguinte, mas sugere à Assessora seja tentada de imediato uma vaga no Hospital do Rim. O contato é feito, e o Hospital solicita o envio de relatório médico detalhado para subsidiar a decisão da diretoria. Às 2 horas da madrugada de segunda-feira, o relatório elaborado pelo PS Agenor de Campos chega ao Hospital do Rim. Na manhã de segunda, a diretoria nega a vaga considerando o “perfil do paciente – infectado e idoso, com baixo prognostico de sobrevida com qualidade de vida – incompatível com o perfil de atendimento do Hospital do Rim, especializado em transplante renal”.

Orientada por Thaís Santos, a Assessora entra em contato direto com a médica Vera, da central de regulação de vagas do Hospital São Paulo, que entretanto exige a apresentação da “prova da liberdade” de Mário Karai para, então, deliberar sobre a vaga. Cito o Parecer: “Mesmo apontado pela assessoria antropológica o descabimento dessa exigência no presente caso, Drª Vera insiste no ponto independentemente de justificativa”.

O problema é informado a Thais Santos, e a coordenadora do Ambulatório do Índio decide emitir relatório médico com autorização de vaga e “entrada do paciente via Pronto Socorro do Hospital Sao Paulo, atendimento clinico e interconsulta com a disciplina de nefrologia”. O Relatório chega à Assessora Antropológica às 11:53h e dois minutos depois segue para o Pronto Socorro Agenor de Campos, para satisfazer as exigências para a remoção.

A remoção e as últimas horas de Mário Karai

Assim que é informada de que a ambulância está a caminho (e temos a participação da CASAI também nesta questão, uma vez que (1) a procrastinação levou à perda da ambulância equipada e com médico necessária à remoção; e (2) solicitada a fornecer uma ambulância sua, a direção informou não ter nenhuma equipada) a Assessora solicita a presença da chefe da CASAI no Hospital São Paulo por volta de 18:30h, quando o indígena deverá estar chegando. Ao mesmo tempo, dá ciência do fato à médica Thaís Santos, que de imediato confirma a presença. Já a chefia da CASAI informa às 17:05h, por mensagem no celular, que “faria o possivel para enviar técnico de enfermagem ao Hospital São Paulo porque naquela data comecaram as ferias de tres funcionarios. Ela não estaria presente em razão do ‘rodizio municipal de veiculos’”.

Mário Karai chega por volta das 18 horas. É recebido por uma equipe de médicos, internado na Unidade de Emergências Médicas, entubado e aspirado. Veio em ambulância comum, acompanhado por uma técnica de enfermagem do Pronto Socorro, Adriana Bispo, que disse à Assessora, ainda assustada: “rezei muito no caminho para que o indio nao parasse”. Seus pertences pessoais foram trazidos, mas os exames laboratoriais não vieram.

A médica Thaís Santos chega ao Hospital alguns minutos depois e pergunta pela CASAI, informando que na noite anterior havia ela mesma entrado em contato com um servidor do órgão, solicitando a presença de um/a funcionário/a para o registro da internação do indígena e outras providências necessárias. Cerca das 20 horas, chega ao Hospital uma técnica de enfermagem da CASAI, acompanhando um casal indígena com seu bebê. Será ela que se dividirá entre a assistência a eles e os procedimentos de internação de Mário Karai. Finalmente, às 21 horas o dia é dado por encerrado, com a promessa de Thaís Santos de que  “brigaria pessoalmente pela vaga na UTI” e repassaria qualquer novidade à Assessora.

Cedo na manhã seguinte, 2 de setembro, preocupada com a falta dos exames laboratoriais realizados no PS Agenor de Campos, a Assessora alerta a CASAI sobre a necessidade de solicitá-los e repassá-los para o Hospital São Paulo.

Às 13:29h, a dra. Thaís informa: “quadro dele ainda grave, melhora importante apos dialise e conseguimos vaga na UTI. Agora a tarde ele sobe. Mando mais noticias amanha”. Às 15h39m16, a Assessora envia nova mensagem à CASAI, continuando sem resposta. Finalmente, ante a falta de informações, vai para o Hospital São Paulo, sendo informada de que Mario Karai ainda não foi removido para a UTI.

As “últimas horas de vida”

Na Unidade de Emergências Médicas, a Assessora é atendida pela médica Tamires Teixeira Piraciaba, que dá um quadro geral sobre a situação de Mário Karai desde sua chegada ao Hospital. Segundo ela, ele dera entrada em estado muito grave, transportado em ambulância básica, apesar da necessidade de suporte respiratória. Havia sido entubado e, na ocasião, fora “retirada enorme quantidade de pus”, por aspiração. Fora submetido à hemodiálise numa situação tão crítica, que a equipe havia se preparado para a hipótese de uma parada cardíaca durante o transporte até a unidade de nefrologia.

Havia edemas pulmonares e infecção generalizada, tratada com os “mais modernos antibióticos”, mas o paciente não reagia, dado o grau de comprometimento dos órgãos, que já se mostrava “incompatível com a vida”. Assim, “não havia indicação para outra seção de hemodiálise. Segundo as palavras da equipe médica, o paciente estava ‘tecnicamente, nas últimas horas de vida’, prevendo-se o óbito ainda naquela noite. O relato conclui-se com a afirmação: ‘chegou muito tarde, pouco pode ser feito’”. Cito o Parecer:

Na manhã seguinte, 3 de setembro, chega a notícia do óbito de Mário Karaí, ocorrido às 9h:43m, em decorrência de “choque septico// sepse grave// infeccao trato urinario// hipertensao// diabetes”, conforme consta da Declaração de Óbito nº 52873 (Anexo XIX). Em contato com Cristine Takuá, informa-se o óbito e, em resposta:

estavamos esperando essa noticia, rezamos a noite toda na Opy e Tupa nos avisou com os ventos fortes, relampagos e trovoes que o Mario estava indo embora. Somos muito gratos pelo que voces fizeram por ele nesse fim de vida em que pelo menos, ele nao esteve abandonado”.

Nas suas “Considerações Finais”, a Assessora comenta a “falta de atenção recebida pelo idoso Guarani por parte dos órgãos federais com atribuição específica, no caso, a Funai, a Procuradoria Federal Especializada e a CASAI/SESAI”, ressaltando em especial o papel decisivo desempenhado pela chefia e pelo responsável técnico desta última. E afirma:

“Nos dias 27, 28, 29 e 30 de agosto, avaliação médica estimava que hemodiálise e hidratação estabilizariam o estado de saúde do paciente, que seria admitido na Unidade de Emergências Médicas do Hospital São Paulo, como anunciado pela coordenação do Ambulatório do Índio e, na sequência, pela CASAI/SP. A piora significativa e generalizada do estado de saúde do idoso, decorrente da falência renal não tratada por falta de recurso local e anunciada pelo PS Agenor de Campos, ocorre em 31 de agosto.

Os quatro dias – noventa e seis horas – decorridos entre a intervenção do MPF e a expedição do aceite teriam sido suficientes para que a transferência do paciente ocorresse com segurança e se garantisse mínima possibilidade de sucesso no tratamento com o acesso ao recurso terapêutico adequado, no caso a hemodiálise. Não se trata aqui de propor formulações leigas, do ponto de vista médico, sobre prognósticos clínicos, chances reais de cura, tempo de sobrevida e qualidade de vida; tampouco de arriscar palpites sobre o real sucesso da terapêutica prescrita.

Trata-se, ao contrário, de admitir que a janela de oportunidade aberta pela interlocução entre os agentes institucionais liderada pelo Ministério Público Federal, com o Ministério Público Estadual, a Justiça Estadual e o sistema penitenciário, movidos pela intenção de promover o tratamento de saúde adequado ao paciente indígena, fora flagrantemente desperdiçada em quatro dias de atitudes procrastinadoras.

Oportunidade que, talvez, garantisse a um ser humano as últimas chances de vida e restituísse a toda a sua coletividade de pertencimento a sensação de respeito à dignidade humana.

Não foram negligenciados pela conduta da CASAI/SP somente o empenho da autoridade ministerial, os esforços da assessoria antropológica, o engajamento ativo da diretoria do CPP de Mongaguá, dos agentes penitenciários; a celeridade da promotoria, do juízo de execução penal e do cartório do 2º ofício judicial da comarca de Itanhaém; também o cuidado dos plantonistas médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem do PS Agenor de Campos e do Hospital São Paulo.

A conduta da CASAI/SP contribuiu para agravar o sofrimento físico do idoso indígena já debilitado por dois anos de reclusão no sistema penitenciário, sob os efeitos morais e espirituais devastadores da privação da liberdade e do ostracismo. Com isso, afetou também a credibilidade das instituições perante os familiares e demais membros da comunidade Guarani, gerou angústia, expectativas frustradas e aumentou a sensação de desamparo e desrespeito aos Guarani por parte das instituições brasileiras.

O atraso injustificado da CASAI/SP para emitir a declaração de aceite necessária à instrução do pedido de liberdade provisória perante o Juízo resultou que a admissão no serviço médico especializado que disponibilizou o recurso adequado e necessário ao tratamento do idoso Guarani ocorresse seis dias depois de solicitado pelo MPF.

Não se tratava, pois, de transportar paciente indígena embrenhado em rincões nas florestas e rios amazônicos, distâncias percorridas por cinco dias de navegação ou alcançadas somente por via aérea. Diferentemente, a distância entre o PS Agenor de Campos e o Hospital São Paulo soma apenas 97 quilômetros, separados por uma das mais modernas rodovias do país, a Rodovia dos Imigrantes

Reafirma-se, ainda, o atraso como injustificado em razão de que esta assessoria antropológica, permanentemente orientada pela autoridade ministerial, ao mesmo tempo em que atuou para garantir a solução do problema e para eliminar os eventuais obstáculos, intermediando os contatos e prestando os esclarecimentos necessários, também observou as esquivas, a procrastinação, as exigências crescentes e desnecessárias e os argumentos infundados – tudo a demonstrar o descompromisso com que o assunto foi tratado na CASAI pela chefia e pelo responsável técnico.

Em razão das atitudes protelatórias, obteve-se o aceite formal da CASAI somente sábado, dia 30 de agosto, momento em que a doença já havia avançado em direção ao patamar irreversível e em que a necessidade passaria a ser a UTI. Afirma-se, sem receio de errar, que a imposição crescente de exigências descabidas atendia ao propósito claro de inviabilizar a transferência.

Entretanto, o atendimento de todas as exigências impostas – relatórios médicos, certidão negativa de vaga para hemodiálise na referência regional, garantia de acolhimento pelo Hospital São Paulo, garantia agendamento de consulta pelo Ambulatório do Índio, garantia de retorno a Mongaguá – não deixou outra alternativa à CASAI, além de expedir o aceite.

Mesmo o argumento sobre a indisponibilidade de leitos na CASAI revelou-se indevido com a presença da assessoria antropológica na unidade, em 30 de agosto, momento em que se apurou a existência de leitos disponíveis, conforme informado pelo servidor Gláucio.

Expressa visível descomprometimento com o assunto – como se o atendimento e a acolhida desse paciente indígena não fossem atribuições da CASAI/SESAI – a admissão do paciente na Unidade de Emergências Médicas do Hospital São Paulo às 18:00 horas de 1º de setembro, ocorrida sem que nenhum representante daquela casa de apoio à saúde indígena se fizesse presente.

Ainda que alertada com a antecedência devida sobre o horário da chegada de Mário Karai ao Hospital São Paulo, a chefia da CASAI não garantia a presença de servidor no local em razão de três funcionários terem iniciado férias. Ao que tudo indica, a presença da técnica Elaine, com duas horas de atraso, ocorreu por iniciativa da coordenadora do Ambulatório do Índio, que assim o exigira em contato telefônico com o servidor Gláucio.

Interpretar as ocorrências relatadas seria reiterativo, haja vista que os registros e documentos trazidos a este parecer, além das mensagens de texto gravadas no telefone móvel, revelam exaustivamente o distanciamento da chefia e do então responsável técnico da CASAI/SP em relação ao assunto.

Como conclusão sobre o episódio, afirma-se que a conduta desses agentes públicos, em desacordo com os mais básicos princípios éticos, revelada ao longo do assessoramento antropológico prestado ao Exmo. Senhor Dr. André Lopes Lasmar, afrontou e violou a percepção sobre o respeito à dignidade humana expressa e compartilhada por parcialidade significativa da comunidade Guarani da Aldeia Rio Silveira, representada especialmente por seu filho Carlos Papá Mirim e sua nora Cristine Takuá.

Esses familiares buscaram insistentemente o apoio e a assistência dos órgãos federais durante o curso do processo criminal, mas sobretudo depois da sentença condenatória e do ingresso no sistema carcerário, por identificarem na situação prisional as condições objetivas que degradaram as condições de saúde física, emocional e espiritual do idoso. Por não terem obtido a resposta devida dos órgãos federais de assistência recorreram ao Ministério Público Federal nutrindo a esperança de ver restituída a dignidade de seu ente, ao menos, no tocante à proteção da sua saúde, que rapidamente definhava.

A atuação ministerial liderada por Dr. André Lopes Lasmar recebeu explícitos gestos de reconhecimento e gratidão por parte de Carlos Papá Mirim e de Cristine Takuá. Reconheceram os familiares de Mário Karai que não fosse a precisa intervenção do MPF, os momentos finais do idoso teriam sido de completo abandono e falta de acesso a recursos médicos. O sofrimento físico prolongado por dois anos de encarceramento recebeu a acolhida esperada às vésperas de sua morte graças à atuação do órgão ministerial”.

O caso está entregue ao  Procurador da República Thiago Lacerda Nobre, cuja ação e sentido de Justiça aguardamos com ansiedade.

Comments (4)

  1. È uma grande vergonha ter que conviver com isso, pessoas perdem vida por falta de apoio, de possibilidades de se curar. fico imensamente triste de ver, o demasiado absurdo com o qual tratam os povos indígenas no Brasil. Esse não é o primeiro e nem será último caso de desrespeito e falta de consci~encia para com os direitos humanos em nosso país. Meu sogro era um grande lider espiritual, um home sábio, e sensível, e que injustamente, caiu nas ciladas desse mundo cruel e contraditório. Que justiça seja feita!!!

    Faça Amor não faça Guerra!

    Estamos em Guerra!
    Guerra disfarçada, ocultada em olhares sombrios
    palavras caladas.
    Poucos a percebem…
    Estamos em Guerra!
    Sem desmedida nos atacam
    olhares maldosos,
    inveja, calúnia
    Direitos desrespeitados
    Estamos em Guerra
    Atitudes inconstitucionais
    Maldades, Fome, Injustiça…
    Sentimos no ar,
    nos espinhos lançados ao vento
    nas lágrimas caídas, nos soluços
    nas noites mal dormidas
    Já basta!
    Chega de Guerra!
    A Mãe Natureza clama por Amor
    Mas, Seres dito racionais,
    atacam verozmente uns aos outros
    na ânsia de imperar
    De dominar a si mesmos…
    Faça Amor não faça a Guerra
    Os seres sem Voz humana
    estão fartos de tanta contradição…
    È hora de acordar!!
    A Guerra hoje, não é mais a da pólvora,
    mas a da palavra,
    das atitudes!
    Faça Amor não faça a Guerra!
    Antes que seja tarde!
    Antes que a tarde finde
    e o sol já não mais se levante….
    <<>>

  2. Meu Deus… Fico perplexo, paralisado, chocado, arrasado em ler tudo isso e perceber, mais uma vez, como nossos parentes são tratados no Brasil. O ser humano está perdendo a noção da própria humanidade. Estou horrorizado, mal consigo escrever essas poucas linhas. Triste, muito triste. Justiça seja feita.

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