O culto de índios e negros que chegou a Portugal

Jose incorpora Maria Navalha, a mestra do terreiro. Foto: Nuno Ferreira Santos
Jose incorpora Maria Navalha, a mestra do terreiro. Foto: Nuno Ferreira Santos

Caboclos, Pretos Velhos e Pombas Giras. Maria Navalha e Zé da Risada. Santos e orixás. Noites de transe. As religiões afro-brasileiras ganham cada vez mais adeptos entre os portugueses. Fomos conhecer o mais recente destes cultos a chegar a Portugal: a Jurema, herança de índios e negros.

Por Alexandra Prado Coelho (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotos), em Público

São quase sete e meia da tarde quando chegamos à vivenda perto de Azeitão, a uns 40 quilómetros de Lisboa. Abre-se o portão, e percorremos o pequeno terreno por onde estão espalhadas várias estátuas. Há uma casa semi-construída no meio, um cabrito preso com uma corda, material de obras e de jardinagem, uma outra pequena casa de tijolos à nossa esquerda, e, ao fundo, a vivenda. Estamos no terreiro Jurema Maria de Acais.

Convidam-nos a descalçarmos os sapatos antes de entrar. À nossa espera estão já algumas mulheres vestidas de trajes brancos, saias longas e rodadas, panos coloridos por cima, turbantes amarrados à cabeça, compridos colares de contas ao pescoço. Helena, que nos acompanhou na viagem de carro desde Lisboa, desaparece para também ela mudar de roupa, e reaparece vestida de branco e azul brilhante.

Daí a pouco chega Josenildo (a quem chamam Jose), o Mestre Juremeiro que vai dirigir a cerimónia. Cabeça rapada, blusa preta com caracteres orientais debruados a dourado, sorriso simpático, começa imediatamente a explicar-nos a imensa complexidade dos altares que encontramos neste terreiro de Jurema, religião afro-brasileira que já chegou a Portugal.

“A mestra da casa é a Maria Navalha, que foi prostituta no Recife, uma mulher da vida, que não levava desaforo para casa”, conta, perante uma Mesa de Jurema, um altar completamente cheio de estatuetas, garrafas de bebidas alcoólicas, e copos de água (que são chamados “cidades de Jurema”), e outras oferendas, presidido pela imagem de uma mulher. Damos uma volta pelas duas salas que compõem este terreiro de Jurema, com Jose, rápido, a descrever-nos cada figura que vemos nas paredes e nos altares.

Malandros e mulheres da vida misturam-se no culto da Jurema com orixás do Candomblé e santos da Igreja Católica. Há uma mesa com estátuas de Pretos Velhos e de Caboclos (índios), figuras centrais do Candomblé e da Umbanda. Há uma imagem de Iemanjá, rainha do mar, com um Santo António por cima; noutra mesa um São Cosme e um São Damião, e Manuel Cadete, “um médico como o Dr. Sousa Martins”.

Mais à frente, uma Santa Bárbara com a espada na mão, ali está a mestra Ritinha, a Maria do Bagaço, a mestra Maria Luziara, “uma das mais antigas que tem”, e o mestre Galo Preto, “que gostava muito de beber e botava galo para brigar”, explica Jose, apontando para o boneco de um galo num dos cantos da sala. “Ali é onde se faz um trabalho mais pesado, convocam-se as energias positivas, mas também as mais negativas, que às vezes é preciso para conseguir ajudar as pessoas.”

Estes são cultos com rituais muito complexos e todo um elaborado panteão de entidades que convivem com os humanos, utilizando alguns deles — os que afirmam ter capacidades mediúnicas e conseguem entrar em transe — para incorporar e virem assim dar consulta a quem precisa, dar conselhos ou, simplesmente, como vai acontecer hoje um pouco mais tarde, para dançar, cantar e beber.

No caso específico da Jurema, “as entidades são pessoas que viveram na terra, mas que hoje são espíritos mais elevados, e cada um tem o seu ritual e a sua forma de trabalhar”, continua Jose. Mas também, cada terreiro tem os seus mestres da casa, e aqui eles são o Zé da Risada — Joaquim José de Santana, de seu nome, sublinha Jose —, que “é o anfitrião”, e a Maria Navalha, “que é quem toma conta”.

“A gente não escolhe a espiritualidade”, explica o mestre juremeiro. “São os espíritos que escolhem a gente”. E ele, que desde pequeno, no Brasil, cresceu no meio deste universo mágico, foi escolhido por estes dois mestres, e veio com eles primeiro para Espanha, e depois para Portugal, onde trabalha num supermercado, ocupando muitas das horas livres neste terreiro que fundou há quatro anos. Já tem vários filhos e filhas-de-santo (os iniciados pelo mestre), e com isso vai aumentando a responsabilidade.

No centro da Jurema está a árvore com o mesmo nome, da qual se faz um licor que é ingerido durante a cerimónia (antigamente teria efeitos alucinogénios, hoje, pelo menos aqui, é um simples licor). E os iniciados têm nos pulsos sementes de Jurema — Jose mostra-nos as marcas feitas nos pulsos com uma queimadura que abre uma ferida no interior da qual é colocada a semente.

“Deixo muito claro para os meus filhos que a espiritualidade não é um meio de vida. Todos temos os nossos trabalhos”, frisa. “Há uns quatro anos, Seu Zé [da Risada] não me deixava receber dinheiro de ninguém”. Mas manter uma casa como esta tem um custo, e hoje o mestre aceita os donativos que quem vier consultar-se com as entidades aqui quiser deixar. E diz que entre os seus planos para o futuro está o de começar a dar cestas básicas para ajudar quem precisa.

Está a fazer-se tarde, os médiuns e outros assistentes convidados para esta noite estão à nossa espera, a sala está preparada e é tempo de começar a cerimónia. Um frasco de água de cheiro é passado por toda a gente — “é perfume, para fechar os corpos” — e Jose prepara um grande cachimbo com várias saídas de fumo, que vai usar para lançar fumaça pela sala — um ritual fundamental no culto da Jurema, porque é através do fumo que se processa a comunicação com as entidades.

“Vamos invocar Malunguinho, que é rei em qualquer Jurema, se não for invocado a Jurema não se abre [ou seja, a cerimónia não começa], é ele que guarda a porta”, explica. E todos começam a cantar: “Malunguinho tá de ronda/ Quem mandou foi o Jucá/ Malunguinho tá de ronda/ Que a Jurema manda/ Ô que a Jurema manda…”. A cidade de Jucá, referida no cântico, é uma das sete cidades encantadas, reinos espirituais da Jurema, e o Malunguinho (o nome vem da palavra malungo, que significa ‘companheiro’, na língua quimbundo, de Angola) é uma personagem histórica, um líder dos escravos negros do Brasil, muito respeitado.

É assim, numa sala já cheia de fumo, que Jose prepara o primeiro prato de comida para as divindades, o padê. Para o orixá Exú (muitas vezes mal identificado com o Diabo, e que é uma entidade muito mais “humana”, com um lado bom e um lado mau), cachaça num prato de barro, farinha de mandioca, óleo de palma, malagueta. E depois, para Malunguinho, moelas com laranja, farinha e muita cebola. Seguem-se louvores a “Nosso Senhor Jesus Cristo” e, ao mesmo tempo, pedidos a Exú para que permita a abertura dos trabalhos. O mestre toca maraca e lança os búzios várias vezes. Todos cantam.

E, subitamente, Ema, a mais velha das mulheres presentes, começa a agitar-se, todo o corpo abana, os que estão ao seu lado amparam-na e tiram-lhe o turbante da cabeça e os colares do pescoço. De cabelo já solto, ela lança a cabeça para trás, e dá uma gargalhada. “Ema é uma das médiuns mais antigas em Portugal”, explica Jose. Alguém sussurra: “Chegou o Tranca Ruas”. Esta entidade, que abre e fecha os caminhos, veio através de Ema, que já não parece ela, faz várias caretas e percorre a sala, sorrindo com um ar malandro para cada um dos presentes, pedindo cachaça, bebendo e oferecendo a quem quiser. Foi a primeira incorporação da noite.

O som dos maracás enche a sala, acompanhado pelos cânticos que vão invocando diferentes entidades. Uma jovem, a filha de Ema, que andara por ali com um ar discreto e um sorriso tímido, começa também a agitar-se, o corpo percorrido por espasmos. Os outros identificam rapidamente a chegada dessa entidade muito popular conhecida como Pomba Gira (existem muitas Pombas Giras, cujo nome é uma corruptela de Pambu Njila, “caminho com encruzilhada” em bantú). Tiram a blusa à jovem, que puxa a saia colorida para cima, prendendo o elástico da cintura debaixo dos braços e começando a dançar com gestos largos, atirando o cabelo, agora solto, de um lado para o outro. O rosto está transformado, o sorriso doce foi substituído por uma cara dura, intensa.

Mas a nossa atenção continua a dispersar-se, porque enquanto duas das participantes já incorporaram, há agora sinais de que Jorge, um dos homens presentes, também está a receber uma entidade. Alguém corre para ir buscar um velho chapéu de palha e um cachimbo, o corpo de Jorge curva-se, e oferecem-lhe um banco para se sentar. Chegou um Preto Velho, e neste caso muito velho mesmo, porque mal consegue endireitar-se e durante uma meia hora Jorge vai ficar assim, dobrado, com outros dos presentes a segurarem-lhe a mão e a ouvirem as palavras que ele vai dizendo baixinho.

De repente, chega o Zé da Risada, que incorpora em Jose. Também ele precisa de um chapéu de palha e de uma bengala, mas, ao contrário do Preto Velho, está cheio de energia, pede vinho e cachaça (há-de beber imenso durante o tempo que está presente), canta e dança, batendo com os pés no chão, e fumando ao mesmo tempo. É o senhor da casa, e por isso domina todas as atenções. Fala muito, explica quem é, dá informações e indicações, promete que depois dele virá a Maria Navalha.

Por esta altura, a pequena sala virou uma autêntica confusão. Há uma enorme energia ali concentrada, e todos parecem possuídos por essa energia, que os faz cantar e dançar. Finalmente, chega a entidade mais aguardada. Zé da Risada avisa que vai embora, mas que deixa um pouco de vinho para Maria Navalha. E eis que ela faz a sua aparição.

Alguns dos presentes limpam o rosto afogueado e suado de Jose, ele senta-se na sua cadeira habitual, num dos cantos da sala, o corpo é percorrido por um estremeção, e é rapidamente auxiliado a mudar de roupa. Maria Navalha exige roupas muito especiais, por isso vem uma saia florida, que Jose prende também debaixo dos braços, e panos coloridos para amarrar à cabeça. Pega numa rosa vermelha e prende-a na borda da saia, junto ao peito. Pede perfume. Os gestos mudam, a voz também. O show de Maria Navalha vai começar — e ninguém sabe quando irá acabar.

Ela não dança tanto como os outros. Prefere ficar sentada na cadeira, fumando cigarro atrás de cigarro (às vezes três de cada vez, virando-os ao contrário e metendo-os acesos na boca), fala muito, conta coisas sobre a sua vida passada, fala de cabarets e marinheiros, dirige-se a cada um dos presentes e cumprimenta-o. Alguém diz que o facto de a entidade reconhecer as pessoas revela um “estádio superior” de incorporação. Maria Navalha vai ficar bastante tempo, pede para falar a sós com vários dos presentes, avalia as personalidades, faz considerações sobre os desejos e problemas de cada um. Fuma continuamente. E bebe cachaça.

Passa-se talvez uma hora (por esta altura já ninguém tem bem a noção do tempo), e por fim Maria Navalha anuncia que vai preparar a sua saída. Alguns dos participantes foram até lá fora, a um pequeno espaço construído recentemente, mas com os tijolos de betão ainda à vista (a tal pequena casa à esquerda que víramos à chegada). É a Casa de Exú, geralmente usada no final dos rituais. Jorge, que entretanto desincorporou o Preto Velho, é agora uma Pomba Gira das Sete Encruzilhadas, que, no interior, lança álcool contra as paredes, pegando-lhes fogo de seguida.

Aqui temos apenas a luz das velas, através da qual vemos as estátuas de mais algumas entidades, paus, garrafas e outros símbolos espetados numa espécie de canteiro elevado com terra. O espaço é apertado e mal cabemos todos lá dentro. As velas que cada um passou pelo corpo, para levar as energias negativas, são postas a arder, e as garrafas que também foram passadas pelo corpo de cada um são partidas contra a parede.

É daqui que Maria Navalha vai partir. Mas neste momento ainda está na casa grande, onde espalhou álcool pelo chão, queimando a imagem de um galo, e passando com os pés sobre as chamas, enquanto canta. Depois sai para o exterior, seguida pelos outros, e na Casa de Exú lança o conteúdo dos últimos frascos de álcool nas paredes, pega fogo, fuma um último cigarro, despede-se e desincorpora. Duas pessoas amparam Jose. A cerimónia terminou. É quase meia-noite.

Quem acompanhou tudo, e quem convidou a Revista 2 para estar presente neste ritual, foi o antropólogo brasileiro Ismael Pordeus Jr., o maior estudioso da passagem das religiões afro-brasileiras para Portugal, e daí para outros países da Europa, onde estão também a ter grande sucesso, e autor dos livros Uma Casa Luso-Afro-Brasileira com Certeza (publicado em 2000), e Portugal em Transe, editado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2009.

Nestas obras, Pordeus, que foi professor na Universidade Federal do Ceará, no Brasil, debruça-se sobretudo sobre a chegada da Umbanda a Portugal e conta a história do nascimento dos primeiros terreiros. Mas nos últimos tempos, a atenção do investigador tem-se centrado na chegada — bem mais recente — do culto da Jurema, sobre o qual foi lançado no Brasil o livro Jurema Sagrada do Nordeste Brasileiro à Península Ibérica, de Arnaldo Burgos/ Obá Tòwgún, organizado e apresentado por Ismael Pordeus.

Para conseguirmos entender o que acabámos de ver, é importante perceber o que distingue Candomblé, Umbanda e Jurema, sendo que todas elas se entrecruzam e influenciam mutuamente. O Candomblé tem origem nos cultos animistas de África, faz o culto dos orixás, e foi levado para o Brasil pelos escravos africanos a partir do século XVI, tendo ganho uma enorme difusão depois do fim da escravatura.

Já a Umbanda é uma religião que tem dia e local de nascimento: surgiu no dia 15 de Novembro de 1908 durante uma sessão da Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro, através de um médium, Zélio Fernandino de Moraes, que, dizendo ter encarnado o Caboclo das Sete Encruzilhadas, estabeleceu as bases do novo culto, que mistura orixás e santos.

Por fim, temos a Jurema, muito baseada nos estados brasileiros de Paraíba e Pernambuco, e que tem no centro o culto feito primeiro pelos índios (muito antes da descoberta do Brasil) e depois pelos caboclos (descendentes do cruzamento dos índios com os brancos) à árvore da jurema. Nasce neste contexto um culto do caboclo que é apropriado também pelos negros, e que tem características particulares no meio deste universo, relacionado, entre muitas outras coisas, com a existência de sete cidades encantadas, o uso do fumo para a comunicação com as entidades, e ingestão de uma bebida sagrada feita com a casca da jurema.

À medida que esta religião indígena se espalha, vai ganhando elementos de outras, nomeadamente da católica, incluindo nos seus cultos santos, santas, Jesus e outras figuras do universo católico (diz-se até que a árvore da Jurema terá protegido a sagrada família dos soldados de Herodes na fuga para o Egipto), e também práticas espíritas vindas da Europa. Ganha também elementos das religiões africanas. Surgem assim no culto da Jurema, para além dos Caboclos iniciais, os Pretos Velhos, e os Exus e Pombas Giras.

A primeira destas religiões a chegar a Portugal foi a Umbanda, conta Ismael Pordeus, cuja investigação se centra nesse processo de transnacionalização das religiões afro-brasileiras. Ainda hoje é a mais forte, com cerca de 40 ou 50 terreiros espalhados por todo o país, enquanto o Candomblé tem vindo a crescer mas tem apenas uns 12 ou 15 terreiros, e a Jurema — que chegou em 2004, via Espanha, com a instalação de um terreiro no Cadaval — tem apenas dois. (Também no Brasil a Jurema tem uma dimensão muito menor do que a Umbanda, que é praticada em todo o país).

“A Umbanda é montada no Brasil no início do século XX, se separando da tradição afro, e se mesclando com todas as migrações do final do século XIX, dos restos da revolução industrial na Europa, polacos, franceses, irlandeses, que chegam ao Brasil com as suas crenças”, explica o investigador.

“Esta nova religião vai tomando um grande impulso, mas durante o tempo da ditadura é objecto de grande repressão, que nenhum antropólogo relatou tão bem como Jorge Amado em A Tenda dos Milagres. Aí pelos anos 40, começam a ter teólogos, e embora deixando de lado a memória tradicional africana, ainda pegam elementos dessa prática religiosa e misturam-nos com o espírito kadercista [espiritismo vindo da Europa], e a umbanda torna-se também uma prática filosófica e uma caridade. Nos anos 50, já têm programa de rádio, editam uma revista de Umbanda e criam uma união-federação de vários terreiros.”

Já com uma enorme força, a Umbanda atravessa fronteiras, para o Uruguai e a Argentina, mas também para Norte, em direcção aos Estados Unidos. E nos anos 70 atravessa o Atlântico, chegando a Portugal. É essa história que Ismael Pordeus conta no seu livro Portugal em Transe, onde explica que são sobretudo as mulheres, portuguesas que tinham imigrado para o Brasil e que regressam a Portugal, que trazem o culto. O primeiro terreiro de Umbanda abre em 1974, na Calçada Salvador Correia de Sá nº 1, em Lisboa, pela mão de Virgínia Albuquerque. “Tive a honra de conhecer essa senhora, de Vila Nova de Gaia, que nos anos 50 imigrou para o Brasil, onde foi iniciada, casou-se com um português, e pelos estados de aflição convergiu para essa religião. Abriu, com o marido, uma ervanária, acumularam capital e transferiram-se para Portugal”, recorda o antropólogo.

“Quando abri o meu terreiro e comecei a fazer sessão de Pretos Velhos, todas as quartas-feiras, a notícia logo se espalhou e vinha gente de todos os lados para ver a novidade”, contou a Pordeus esta mulher que fez a iniciação das quatro primeiras mulheres em Portugal, Mariazinha, Conceição, Mariana e Albertina. Entre as primeiras iniciadas estava também Ema Casimira — a mesma Ema de que falamos no início deste texto, que na casa de Jose, em Azeitão, incorporou o Tranca Ruas. Mais tarde, Virgínia Albuquerque mudou-se para uma cave em Benfica, onde instalou o Terreiro de Umbanda Ogum Megê.

“Fui conhecer esse terreiro onde ela tinha sessões à quarta-feira, e recebia uma Maria Conga, uma Preta Velha. Tocava-se o atabaque [tambor] e cantava-se, ela recebia a Maria Conga e as pessoas da plateia vinham-se consultar com ela, sentadas num banquinho. Acompanhei pessoas que se submetiam aos rituais de limpeza, aos banhos”, descreve Pordeus.

“Para poder existir um terreiro tem que haver um líder religioso, que tem que formar uma comunidade”, continua. “Os membros passam por rituais de iniciação, que se vão dar a partir da descoberta dos arquétipos que cada pessoa conduz”. Ou seja, para cada pessoa são identificadas as entidades guias a partir de um complexo panteão, que é diferente no Candomblé, na Umbanda ou na Jurema.

Os primeiros níveis deste panteão estão estabelecidos, mas a partir de um determinado nível “fica por conta da criatividade de cada um”. Vão surgindo entidades, que podem só aparecer num determinado terreiro, por exemplo. O que é muito curioso, sublinha Ismael Pordeus, é que já surgiu em Portugal um panteão próprio, com entidades que não existem nos terreiros brasileiros. “Eu conheci aqui em Portugal uma figura que não existe no Brasil, que é o marinheiro Agostinho, que entrevistei durante um transe. É um marinheiro que foi para a pesca do bacalhau, era alcoólico, passou anos na pesca, fez a costa brasileira, e que diz que quando a matéria subiu, ou seja, quando ele como pessoa morreu, Iemanjá, aquela grande mãe maravilhosa, o pegou e disse ‘você agora vai trabalhar para mim’. E ele vem a Portugal para trabalhar num terreiro e ajudar as pessoas com problemas de alcoolismo. Esta já é uma personagem da Umbanda portuguesa, o que prova que se está montando um panteão português.”

E como se dá o aparecimento de uma nova identidade? Quem a legitima? “Se você chegar dizendo ‘eu sou a Maria da Pedra’ e entrar em transe, e começar a cantar ‘eu sou a Maria da Pedra, eu venho trabalhar, eu jogo pedra em quem me atacar’, uma frase dessa poesia quebrada, todo o mundo aceita e acha legítimo”, afirma. “Fascina-me esse imaginário e essa aceitação do que é diferente. E é isso que faz com que a religião prolifere muito.”

A maioria das pessoas que se aproxima das religiões afro-brasileiras vai à procura de solução para problemas, geralmente ligados à saúde, dinheiro ou amor — os chamados estados de aflição. Depois, há algumas que querem envolver-se mais profundamente, e começam um processo de iniciação, que no caso da Jurema passa por um baptismo e mais adiante, o Tombo de Jurema.

Jose já tem vários filhos-de-santo e está a preparar o Tombo da Jurema para mais três — a cerimónia deverá acontecer ainda este ano, e é feita no exterior, na mata, de preferência junto a uma cachoeira, e pode incluir o sacrifício de um animal. É a consagração máxima depois do baptismo e do calço, as duas primeiras etapadas da iniciação.

Também é no exterior que se celebram, por exemplo, casamentos. Na parede do templo de Jurema está uma fotografia do casamento entre dois homens celebrado por Jose, na praia do Meco, à noite. Na imagem vêem-se os noivos e, junto a eles, uma espécie de luz que parece representar outros dois corpos. Jose diz que este é o maior testemunho da presença dos espíritos que acompanharam a cerimónia.

No livro Jurema Sagrada do Nordeste Brasileiro à Península Ibérica, Pordeus explica o que lhe despertou grande interesse na Jurema: “Um dos aspectos fascinantes são os pequenos versos, as orações cantadas pelos personagens do panteão, onde são narrados feitos, exaltadas personalidades, feitas referências à fauna, à flora, evidenciadas qualidades mágicas e relatadas acções do quotidiano. […] Estes versos, no mais das vezes, se aproximam do quotidiano, da visão de mundo tradicional, e lembram as rimas dos versos encontrados na literatura de folhetos, tão comum nas feiras do Nordeste brasileiro.”

A grande diferença da Jurema é o tal panteão de personagens da má vida. “São prostitutas, ladrões, criminosos, mas sempre numa linha de Robin Wood, que tiram aos ricos para dar aos pobres”. E são representados pela imagem típica do malandro, ele de fato branco, sapato brilhante, passo de dança, dois dedos na borda do chapéu, ela provocante, longos cabelos negros, vestidos vermelhos com grandes decotes, rosa no peito e faca na liga.

E como é que este imaginário, a par dos do Candomblé ou da Umbanda, se integra na cultura portuguesa? É muito interessante a interpretação que faz, a esse respeito, a investigadora portuguesa Clara Saraiva, da Universidade Nova de Lisboa, no seu trabalho Religiões Afro-Brasileiras em Portugal: bruxos, padres e pais de santo. Sublinhando que “a Umbanda coexiste de forma harmoniosa com o Catolicismo”, Clara Saraiva defende que o sucesso destes cultos “pode ser entendido no contexto da atracção por uma nova religião que permite uma maior visibilidade individual, mas ao mesmo tempo não choca com crenças anteriores e formas de resolver crises na vida” (traduzido do trabalho citado, a partir do inglês).

Além disso, escreve ainda a investigadora, ao contrário do Brasil, em que o debate se centrou muito na “pureza” dos cultos (o Candomblé mais negro, a Umbanda mais branca), “em Portugal, a preferência tende para o paradigma da versão ‘ideal’ portuguesa, em que as representações e práticas ligam os três pontos do Atlântico — Portugal, África, Brasil – numa unidade simbólica, criando aquilo a que Pordeus Jr. chama a variante portuguesa dos cultos afro-brasileiros”.

No final da longa noite no terreiro de Azeitão, Jose e os outros participantes despem as roupas usadas no culto, refrescam-se, sentam-se a conversar e a apanhar o fresco da noite nas cadeiras no exterior da casa, enquanto lá dentro se acaba de preparar o jantar. Jose conta que Helena é uma das suas primeiras seguidoras, que o conheceu ainda em Espanha, e que o incentivou a mudar-se para Portugal.

Entre a comunidade que aqui se foi formando, há vários casos diferentes. Jorge, que é médium, conta que sentiu sempre presenças ao seu redor, mas só mais tarde na vida compreendeu e aceitou a sua espiritualidade. Já a filha de Ema, que também é médium, tentou recusar. “Não admitia”, diz. Até que resolveu ceder, e hoje acompanha a mãe na Jurema.

Todos estão calmos e descansados, o que parece improvável depois do que se passou nas horas anteriores. Mas todos garantem que “quando os espíritos vão, levam tudo com eles”. Jose, que tem 44 anos e diz “trabalhar com o Seu Zé [da Risada] desde os 15 ou 16”, conta que às vezes percebe que tem uma queimadura, mas que não se lembra de nada do que lhe aconteceu durante o transe. “Consigo estar 24 horas sem parar e sem comer. Nunca se sabe quando a entidade vai partir, ela não marca relógio. O tempo que a gente está trabalhando lá dentro [no terreiro], é o tempo que estamos descansando. A gente anda como se fosse numa estrada sem fim, anda, anda, anda. Só volto cansado porque é uma estrada longa, de resto não sei mais nada. Dá um vento, eu entro naquele vento, e vou nele.”

É hora de comer o arroz de cogumelos e o frango com limão que a comunidade preparou. O ambiente é de boa disposição e descontracção. No final, pegamos nas rosas vermelhas que Maria Navalha distribuiu por todos, e despedimo-nos ao portão.

De regresso a Lisboa, relemos uma frase de Ismael Pordeus no livro sobre a Jurema Sagrada: “Os homens constroem, no processo do imaginário, os deuses que passam a existir no quotidiano de suas experiências sociais, transformando e reorganizando a sociedade. O imaginário é uma fábrica de deuses.”

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