O ensino a qualquer custo e a falta de compromisso com a educação brasileira. Entrevista especial com Daniel Cara

Foto: educacaointegral.org.br
Foto: educacaointegral.org.br

“O Plano Nacional de Educação – PNE foi aprovado praticamente por unanimidade por todos os partidos, e tanto nos programas de governo da candidata à Presidência da República Dilma Rousseff, como também dos candidatos Aécio Neves e Eduardo Campos, o PNE é quase totalmente marginalizado. Então, não existe um compromisso de fato em fazer com que o PNE seja um instrumento basilar da área de educação e da própria gestão pública como um todo”, adverte o cientista político

IHU On-Line – “O texto do Plano Nacional de Educação – PNE foi muito tímido perante as necessidades na área de educação (…) e é muito aquém das necessidades e daquilo que a sociedade brasileira precisava ter como base em um Plano Nacional de Educação”, avalia Daniel Cara, em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone.

O PNE (PL 8035/10), aprovado na Câmara dos Deputados no mês passado, estipula as metas educacionais para os próximos dez anos com o objetivo de melhorar os índices educacionais do país.

De acordo com Daniel Cara, alguns pontos acrescentados ao Plano pelos parlamentares são “contraditórios com o conjunto do texto”, como a permissão para parcerias público-privadas e a remuneração dos professores por resultados. “O problema é que remunerar os professores por cumprimento de metas relacionadas a testes padronizados acaba sendo uma medida contraproducente à qualidade da educação, a qual tem sido revogada mundo afora. Então, infelizmente, o Plano estimula no Brasil uma prática que já é ultrapassada em países mais desenvolvidos em termos educacionais”, critica.

Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação desde junho de 2006, Daniel Cara assinala que, entre as propostas do PNE, destaca-se a tentativa de universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%. Outra preocupação do Plano é em relação à redução das taxas de analfabetismo e analfabetismo funcional de 30 milhões de brasileiros, sendo destes pelo menos dois milhões de jovens. Segundo ele, o ensino brasileiro, sobretudo os anos finais do ensino fundamental, “que é exatamente a etapa anterior ao ensino médio, é de baixa qualidade. (…). Isso resulta em uma população que, quando ingressa na universidade, não tem a formação básica necessária para fazer um bom curso e depois se tornar um profissional pleno. Trata-se, portanto, de um prejuízo grande para o próprio desenvolvimento do país”.

Favorável à expansão do ensino superior no Brasil, ele é categórico: “não dá para expandir a educação superior a qualquer custo e em qualquer nível, é preciso expandir a educação superior com qualidade, e isso não é tão simples”. As melhorias e os investimentos devem ser feitos na educação superior pública, sugere, e reitera: “O ponto chave que precisa ser bastante providenciado é que Prouni e Fies devem ser tratados como medidas emergenciais, mas dificilmente se tornarão medidas emergenciais, porque têm grande impacto social. É claro que é melhor o acesso a alguma educação de ensino superior do que nenhuma, mas a qualidade dessa educação superior é muito baixa. A capacidade dessa educação superior com Prouni ou Fies em gerar, por exemplo, melhor empregabilidade ou conseguir romper as dificuldades econômicas brasileiras em áreas que são chave, é enorme, porque a formação é quase sempre pior do que a formação ofertada pelas escolas técnicas de nível médio.

Então, não vejo Prouni e Fies como a solução, nem como a principal política de expansão da educação superior, como tem sido tratado pelo governo. A principal política de expansão da educação superior tem de ser na educação pública superior; é essa que tem, tradicionalmente, mais qualidade”. A crítica se estende ainda à atuação do Ministério da Educação na fiscalização dos cursos nas universidades privadas, que foram amplamente expandidas em todo o país. “O Ministério da Educação regula um pouquinho as áreas que considera mais sensíveis, como a do Direito, da Medicina, mas, por exemplo, nos cursos de licenciaturas e Pedagogia, se vê que essa regulamentação não ocorre. Como resultado, percebemos que tem aumentado muito a quantidade de professores que não têm condições de dar aula.”

Daniel Cara também questiona o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec, o carro-chefe do governo federal. “Do lado de educação técnica de nível médio, a perspectiva do plano é de enfrentamento à nova visão do Pronatec da presidente Dilma, que tem uma visão do ‘curso a qualquer custo’. Então, é oferecido qualquer curso para qualquer formação profissional, o qual não garante empregabilidade. (…)

O Pronatec traz muito retorno para o governo por conta da facilidade na criação de matrículas, pelo retorno de propaganda e, além disso, traz um retorno que faz parte do jogo político, que é o de financiamento de campanha, como o Prouni e o Fies também trazem”, enfatiza.

Daniel Cara é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. É membro titular do Fórum Nacional de Educação e foi membro da direção da Campanha Global pela Educação entre janeiro de 2007 e fevereiro de 2011. Hoje é membro do Comitê Diretivo da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação – Clade. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual era a proposta do Plano Nacional da Educação – PNE original e quais mudanças foram feitas ao longo do processo de tramitação no Congresso? Como ficou o texto aprovado na Câmara dos Deputados no dia 25 de junho?

Daniel Cara – O texto original do PNE foi muito tímido perante as necessidades na área de educação e as próprias expectativas da área, porque ele deveria ter sido pautado pelas diretrizes aprovadas na Conferência Nacional da Educação, e não foi o que aconteceu. Então, é um plano muito aquém das necessidades e daquilo que a sociedade brasileira precisava ter como base em um Plano Nacional de Educação.

O texto que foi sancionado e está publicado, está bem mais próximo das necessidades da área. Para se ter uma ideia de um parâmetro comparativo importante, o texto original do Plano Nacional de Educação, proposto no governo Lula, apontava 7% do PIB para investimento público em educação, considerando parcerias público-privadas. Mas, em 26 de junho de 2012, nós conquistamos, na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a aprovação de 10% do PIB para a educação pública. Então, o texto desconsiderava parcerias público-privadas, mas na versão final publicada, foram determinados investimentos da ordem de 10% do PIB em parcerias público-privadas. Esse é um dos aspectos que não ficou bom no plano, porque nós acreditávamos que o correto seria um investimento público na educação pública. Mesmo assim, o plano é mais ousado e muito mais consistente em termos educacionais do que o plano original enviado pelo presidente Lula, e isso aconteceu essencialmente por conta da participação da sociedade civil.

IHU On-Line – Que outras propostas discutidas foram ou não acrescentadas ao PNE?

Daniel Cara – Houve questões que foram acrescentadas ao plano e que são até contraditórias com o conjunto do texto, como, por exemplo, a permissão para parcerias público-privadas e a questão da remuneração dos professores por resultados. Esse aspecto não constava no texto original, nem era parte das demandas da sociedade civil, mas foi adicionado tanto por parlamentares ligados ao governo como por parlamentares ligados à oposição. O problema é que remunerar os professores por cumprimento de metas relacionadas a testes padronizados acaba sendo uma medida contraproducente à qualidade da educação, a qual tem sido revogada mundo afora. Então, infelizmente, o Plano estimula no Brasil uma prática que já é ultrapassada em países mais desenvolvidos em termos educacionais.

IHU On-Line – Apesar desses problemas, você menciona que o PNE tem a possibilidade de mudar a realidade da educação pública brasileira, possibilitando escolhas com padrão mínimo de qualidade. O que é o Custo Aluno Qualidade Inicial? Qual a situação das escolas brasileiras em relação ao Custo Aluno Qualidade Inicial?

Daniel Cara – O Custo Aluno Qualidade Inicial – CAQi é um mecanismo de financiamento da educação, desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a partir de 2002, na época do governo Fernando Henrique Cardoso. É um mecanismo que contabiliza quanto custa a educação pública de qualidade para o alcance de um padrão mínimo de qualidade, e está pautado na precificação de insumos e na garantia desses insumos para todas as escolas públicas. Então, quais são os insumos? O primeiro grupo está relacionado à valorização dos profissionais da educação. Isso significa remuneração inicial dos professores adequada, uma política de carreira que mantenha os professores motivados, que mantenha a carreira docente com professores que estão de fato envolvidos no processo do magistério, como também a formação continuada desses profissionais. O segundo grupo está relacionado à organização escolar, especialmente à distribuição do número de alunos por turma, porque salas superlotadas são completamente improdutivas em termos educacionais. E, por último, existem os insumos infraestruturais que todas as escolas têm de ter, como laboratórios de informática, bibliotecas, laboratórios de ciências e quadras poliesportivas cobertas.

Hoje apenas 0,6% das escolas brasileiras tem esses insumos, especialmente os infraestruturais. Para que todas as matrículas atuais alcançassem esse padrão de qualidade, seriam necessários investimentos anuais na ordem de 46 bilhões de reais, segundo estimativa de 2012, os quais precisam ser reajustados sempre que se verificar a necessidade. Praticamente a totalidade desse recurso de 46 bilhões, segundo o Plano Nacional de Educação, tem de ser transferida do governo federal para governos estaduais e municipais, como prevê o paragrafo 1º do artigo 211 da Constituição.

IHU On-Line – Entre as metas do PNE, pretende-se universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até 2020, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%, nesta faixa etária, e elevar a escolaridade média da população de 18 a 24 anos de modo a alcançar o mínimo de 12 anos de estudo para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres, além de igualar a escolaridade média entre negros e não negros, com vistas à redução da desigualdade educacional. Tendo em vista essas metas, pode nos dar um panorama em relação à quantidade e à qualidade dos ensinos fundamental e médio brasileiro? Há uma crítica positiva no sentido de dizer que mais crianças estão na escola, contudo, permanecem as críticas negativas acerca da qualidade do ensino brasileiro. Como se mede e avalia quantidade e qualidade no ensino?

Daniel Cara – O ensino fundamental, especialmente os anos finais, que é exatamente a etapa anterior ao ensino médio, tem um forte déficit de qualidade: o ensino oferecido é de baixa qualidade e não permite a apropriação da cultura pelos alunos, e isso deve ser o objetivo fundamental da educação. Isso resulta em uma população que, quando ingressa na universidade, não tem a formação básica necessária para fazer um bom curso e depois se tornar um profissional pleno. Trata-se, portanto, de um prejuízo grande para o próprio desenvolvimento do país. O ensino fundamental, aparentemente, está resolvido em termos de matrículas, mas só aparentemente, porque as populações do Norte e Nordeste do país, as populações do campo, quilombolas, indígenas e as pessoas com deficiência não têm acesso ao ensino fundamental e muito menos ao ensino médio. Então, ainda temos de criar um volume grande de matrículas, especialmente nessas regiões, para dar conta das demandas educacionais.

Em termos de qualidade, os dados são sofríveis. O PNE aponta caminhos interessantes, como, por exemplo, maior uso de tecnologias nas escolas — claro que isso adiciona um custo — e estratégias pedagógicas que estimulem os alunos a práticas mais criativas do que as práticas tradicionais das escolas. Então, existem caminhos que foram determinados pelo PNE, os quais precisam ser equilibrados. Agora, resta saber quais serão os esforços dos governos em cumprir o Plano Nacional da Educação.

Eleições

Um dado extremamente estarrecedor é o de que o PNE foi aprovado praticamente por unanimidade por todos os partidos, e tanto nos programas de governo da candidata à presidência da República Dilma Rousseff, como também dos candidatos Aécio Neves e Eduardo Campos — e que a verdade seja dita, Eduardo Campos soube trabalhar melhor essa questão —, o PNE é quase totalmente marginalizado. Então, não existe um compromisso de fato em fazer com que o PNE seja um instrumento basilar da área de educação e da própria gestão pública como um todo, porque o esforço do Plano Nacional da Educação é fazer com que ele seja uma lei central dentro do conjunto da administração pública e não só da área de educação. Até porque, obviamente, o PNE vai envolver um esforço grande da área de planejamento, orçamento e gestão do Ministério da Fazenda, por conta do aumento dos recursos que dirige. Portanto, é extremamente preocupante o fato de os candidatos escantearem o PNE.

IHU On-Line – Outra meta do PNE é elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional. Quais são as causas do analfabetismo funcional, e é possível estimar o percentual de analfabetos funcionais no país?

Daniel Cara – É possível determinar a quantidade de analfabetos funcionais pelas metodologias — que agora são oficiais porque são do IBGE. A ideia de analfabetismo funcional é do Instituto Paulo Montenegro, vinculado à empresa IBOPE. Segundo dados oficiais, existem hoje no Brasil quase 30 milhões de analfabetos funcionais; isso significa que deveríamos reduzir esse volume para 15 milhões, segundo o PNE. O analfabetismo absoluto é uma chaga social brasileira que precisa ser resolvida. A responsabilidade do analfabetismo obviamente não é do cidadão analfabeto, porque ele foi vítima de uma sociedade extremamente trivial; trata-se de uma responsabilidade do Estado brasileiro. Esta questão está posta na Constituição de 88, que previa, em 10 anos, a universalização da alfabetização no país. Essa meta não foi alcançada nem conquistada, porque hoje os governos tratam a questão do analfabetismo como uma questão secundária; praticamente se tem a expectativa de que os analfabetos faleçam, porque em geral é uma população mais velha, muito embora o país tenha cerca de 2 milhões de jovens analfabetos. Trata-se de um desrespeito enorme ao direito das pessoas, uma falta de compromisso público flagrante, mas é um fato. Como nós não aceitamos esse fato, porque trabalhamos na perspectiva do direito, o PNE propõe que em 10 anos seja possível universalizar a alfabetização.

IHU On-Line – Outra meta é oferecer educação em tempo integral em 50% das escolas públicas de educação básica. Qual é o percentual de escolas públicas que oferecem ensino em tempo integral e qual a importância dessa medida para a formação das crianças e jovens?

Daniel Cara – Essas são medidas complexas, e o mais importante dessa meta é a referência para 25% das matrículas. O dado de quantas escolas oferecem educação em tempo integral no Brasil não é seguro em relação ao que existe hoje. Às vezes uma escola tem uma turma com aula em tempo integral e o restante das turmas não, mas se contabiliza como ensino integral. Por outro lado, de vez em quando o governo solta um dado, depois solta outro, então, num momento é um milhão de matrículas em tempo integral, em outro são dois milhões. O fato é que o Brasil tem de alcançar um quarto de suas matrículas em educação básica pública em tempo integral no final do plano em educação, ou seja, 10 milhões de matrículas. É um número bastante alto, mas é uma meta cumprível, e não está entre as metas mais difíceis.

O que torna o cumprimento da meta mais difícil é exatamente a qualidade da educação integral ofertada. Então, se a educação integral for pautada pelo ocupacionismo, que é simplesmente dar uma atividade de contraturno, normalmente uma atividade desvinculada do projeto político-pedagógico e mais vinculada ao lazer, a meta é cumprida com maior facilidade, mas sem os resultados esperados, sem garantir maior aprendizado, melhor formação dos estudantes, sem promover cidadania. Agora, se for para fazer do jeito correto, é muito mais difícil, o que significa articular a educação integral por meio de um projeto político-pedagógico, envolver os professores e não só os oficineiros e fazer atividades que tenham sentido dentro desse projeto político-pedagógico. Então, as atividades culturais têm de corresponder ao projeto político-pedagógico e gerar relação entre as áreas de ciência, geográfica, eventualmente o ensino de música à matemática, por exemplo. Esse desafio da educação em tempo integral mais completo e mais consistente vai determinar qual a capacidade do Estado brasileiro de cumprir essa meta.

IHU On-Line – Elevar a qualidade da educação superior pela ampliação da atuação de mestres e doutores nas instituições de educação superior para 75%, no mínimo, do corpo docente em efetivo exercício, sendo, do total, 35% doutores, está entre as metas para o ensino superior. Qual a importância de elevar o número de pessoas com formação superior no país, e como se dá a relação entre a formação superior e a formação técnica no Brasil?

Daniel Cara – O avanço do ensino superior é desejável, porque o Brasil tem uma taxa de escolarização bruta da população muito baixa e uma taxa de escolarização líquida praticamente irrisória, se comparado até com países da região. A taxa de escolarização líquida está próxima de 14% da população e a estimativa é de que se tenha uma taxa mais próxima à da Argentina só daqui a dez anos. A educação superior na Argentina é tratada como um bem público e o aluno pode reivindicar a matrícula. O ponto central de toda a história é que nós precisamos expandir a educação superior e precisamos fazer isso urgentemente. Agora, não dá para expandir a educação superior a qualquer custo e em qualquer nível, é preciso expandir a educação superior com qualidade, e isso não é tão simples.

No Plano Nacional de Educação determinamos uma demanda de cinco milhões de novas matrículas na educação superior, sendo que, destas, dois milhões devem ser feitas na rede pública. Esse é um caminho que acreditamos que pressione pela qualidade, especialmente no setor privado, que, ao ver esses dois milhões de matrículas, tente disputar a atenção dos alunos, porque o setor privado na educação — salvo raríssimas exceções — é extremamente dedicado ao núcleo mais fácil, então, investe muito pouco na universidade, remunera mal os professores e não se preocupa com os critérios de educação.

Educação técnica e a propaganda do Pronatec

Agora, do lado de educação técnica de nível médio, a perspectiva do plano é de enfrentamento à nova visão do Pronatec da presidente Dilma, que tem uma visão do “curso a qualquer custo”. Então, é oferecido qualquer curso para qualquer formação profissional, o qual não garante empregabilidade. O Plano Nacional de Educação pretende criar um milhão de novas matrículas públicas para técnico profissional de nível médio, e isso vai fazer uma grande diferença, porque a boa escola pública brasileira é a escola técnica, que tem de longe a melhor qualidade. Essa é a matrícula que tem de se expandir, e não a matrícula do Pronatec.

IHU On-Line – O Plano Nacional de Educação tem a intenção de substituir o Pronatec nesse sentido?

Daniel Cara – Não vai ter esse risco porque o Pronatec traz muito retorno para o governo por conta da facilidade na criação de matrículas, pelo retorno de propaganda e, além disso, traz um retorno que faz parte do jogo político, que é o de financiamento de campanha, como o Prouni e o Fies também trazem. A participação do setor privado na área de educação tende a subir nos próximos anos; o New York Times e o Wall Street Journal apontam que o mercado da educação privada, principalmente de ensino superior no Brasil, vai ser o maior mercado do mundo em educação, porque há também a disposição do governo em transferir recursos.

Isso tudo gera um tensionamento em relação ao que propõe o Plano Nacional de Educação, mas o PNE não vai conseguir suplantar todo esse contexto criado pelo governo em relação à educação.

IHU On-Line – O índice de não empregabilidade dos alunos do Pronatec é alto?

Daniel Cara – Não dá nem para saber qual é o índice do Pronatec; é pior do que isso. Quando se perguntou para o Ministério da Educação, há uma semana, durante a final da Copa do Mundo, qual era o grau de retorno do Pronatec, o Ministério assumiu que não tem essa resposta. Não sei se nos últimos dias conseguiram buscar esse dado.

IHU On-Line – O senhor mencionou que não se pode expandir o ensino universitário a qualquer custo. Nesse sentido, como avalia programas como Prouni e Fies e as políticas públicas dos últimos anos em relação ao acesso à universidade? Há críticas positivas, no sentido de que possibilitou o ingresso de mais estudantes ao ensino superior e, por outro lado, há críticas negativas, no sentido de que os alunos chegam à universidade com deficiências na formação básica; ao mesmo tempo, abriram muitas universidades de baixa qualidade e há um interesse maior pelo diploma do que pelo ensino. Que contradições o senhor percebe em relação a essas questões e que modelo de país está se formando com essas políticas?

Daniel Cara – O problema do Fies e do Prouni não é de custo, até porque as matrículas não custam tanto para as universidades privadas como custam para as públicas. Hoje, a educação básica fica com 85 centavos e o ensino superior fica com 15, essa é uma distribuição que está aquém inclusive dos países mais desenvolvidos, em que a educação superior chega a ficar com 30, 20% do investimento geral da educação. Então, precisa, sim, ter um investimento maior no ensino superior, porque vai ter expansão de matrículas, como também precisa ter na educação básica. No todo, em números absolutos, o investimento tem de aumentar bastante.

Agora, o ponto chave que precisa ser bastante providenciado é que Prouni e Fies devem ser tratados como medidas emergenciais, mas dificilmente se tornarão medidas emergenciais, porque têm grande impacto social. É claro que é melhor o acesso a alguma educação de ensino superior do que nenhuma, mas a qualidade dessa educação superior é muito baixa. A capacidade dessa educação superior com Prouni ou Fies em gerar, por exemplo, melhor empregabilidade ou conseguir romper as dificuldades econômicas brasileiras em áreas que são chave, é enorme, porque a formação é quase sempre pior do que a formação ofertada pelas escolas técnicas de nível médio. Então, não vejo Prouni e Fies como a solução, nem como a principal política de expansão da educação superior, como tem sido tratado pelo governo. A principal política de expansão da educação superior tem de ser na educação pública superior; é essa que tem, tradicionalmente, mais qualidade.

IHU On-Line – Investimento em universidades públicas evitaria o crescimento de tantos Centros universitários e universidades de baixa qualidade?

Daniel Cara – Exato! O Ministério da Educação regula um pouquinho as áreas que considera mais sensíveis, como a do Direito, da Medicina, mas, por exemplo, nos cursos de licenciaturas e Pedagogia, se vê que essa regulamentação não ocorre. Como resultado, percebemos que tem aumentado muito a quantidade de professores que não têm condição de dar aula.

IHU On-Line – O problema da educação brasileira não é financeiro, está relacionado à qualidade do ensino desde a formação dos professores nessas novas universidades como depois, na formação dos alunos?

Daniel Cara – O problema não é financeiro em partes. Ele não é financeiro na medida em que considera que se investe muito em educação superior, o que não é verdade. Deveria se investir mais em educação básica e em educação superior em números absolutos. Por que tem de se investir mais em educação superior? Porque tem de expandir a educação pública superior que é de qualidade. A qualidade da educação básica pública é o desafio. Agora, esse desafio precisa ser cumprido porque os estabelecimentos privados, em sua grande maioria, salvo raríssimas exceções, como universidades confessionais — e não são todas as confessionais — são ruins. Existem algumas universidades privadas que são muito boas, como a FACAMP, mas são poucas. Claro que em relação aos cursos de Pedagogia é bem fácil identificar esse problema, porque em geral são de baixíssima qualidade nas universidades privadas.

IHU On-Line – O PNE diz algo em relação ao método de ensino? Nas discussões sobre educação, como tratam a questão relacionada ao método de ensino?

Daniel Cara – O PNE não trata sobre isso, porque a liberdade sobre o método de ensino está alicerçada na Constituição Federal, no artigo 206. O debate sobre qual método é mais adequado é restrito a cada escola, porque é um debate contextualizado. Não dá para achar, em um país tão diverso como o Brasil, que um método de ensino seria capaz de garantir educação para todas as pessoas.

O que o PNE sugere é a criação de uma base comum nacional dos currículos. Por que é importante criar essa base comum? Para ter algumas referências. Agora, essas referências não podem nem coibir a autonomia do professor em contextualizar a sua aula, nem diminuir a margem de ensino relativo às culturas e às peculiaridades regionais. É preciso uma base, uma referência, mas não uma “receita de bolo”.

IHU On-Line – Muito se fala na destinação dos recursos do petróleo para a educação, mas esses recursos sequer existem atualmente. Em termos de recursos, o que é possível fazer hoje para melhorar a educação brasileira?

Daniel Cara – O recurso do pré-sal vai começar a chegar, e é uma fonte promissora de recursos, mas não é suficiente. Vamos precisar ter outras fontes de recursos, entre elas o imposto sobre grandes fortunas, que está determinado na Constituição. Além disso, tem de ser feito um remanejamento orçamentário; não adianta acreditar que o PNE será desenvolvido sem nenhum sacrifício. A população brasileira se sacrificou pela implementação do Plano Real, e graças a esse sacrifício conseguiu controlar a inflação. A inflação está pressionando novamente a economia, mas hoje há mais controle no Brasil do que existia no passado.

IHU On-Line – Como o PNE trata da educação escolar indígena?

Daniel Cara – O plano não se propõe a resolver todas as questões e em alguns casos tangencia a resolução real do problema. A população indígena aponta para uma necessidade própria, tese com a qual praticamente todo o resto da área de educação discorda, porque o sistema de educação indígena, contextualizado no sistema brasileiro, deixaria de ter a comunicação necessária para que todos os cidadãos brasileiros tivessem apropriação da cultura indígena e, por outro lado, a cultura indígena também tivesse um processo de intercâmbio com a cultura das populações de regiões urbanas, da própria região do campo.

Nesse sentido, o PNE traz o desafio de tentar criar certa unidade na gestão da política de educação, mas uma unidade que não oprima as peculiaridades, quer dizer, uma unidade pautada inclusive pela diversidade.

IHU On-Line – Quais os avanços e retrocessos em relação à educação no país nos últimos anos?

Daniel Cara – Os principais avanços do Brasil na área da educação são frutos do trabalho da sociedade civil, embora haja tentativas do governo de se apropriar dessas conquistas. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, que superou o Fundec — que inicialmente era um projeto do presidente Lula, mas, assim como o PNE, era muito tímido e não contemplava a participação financeira do governo federal e não incluía as creches —, hoje conta com a participação do governo federal, assim como inclui as creches. Então, foi a sociedade civil que conquistou esses dois pontos.

Posteriormente, conquistou-se a Lei do Piso, a qual, segundo o projeto inicial do governo federal, era muito tímida e foi aperfeiçoada. O mesmo aconteceu com a lei de cotas, já que o governo federal não apostava na aprovação dessa lei, embora alguns setores do governo apoiassem muito, especialmente a secretaria que trata diretamente do tema, mas não o Ministério da Educação. De todo modo, a sociedade civil fez a lei ser aprovada no Congresso.

Outra conquista foi a Lei do Fundo Social do Pré-sal para a educação, porque a presidente Dilma queria destinar metade dos rendimentos à educação, que dariam alguns milhões de reais por ano ao setor, e nós conseguimos a metade do fundo, que dá alguns bilhões de reais. A previsão é de que o dinheiro do pré-sal já esteja contribuindo com a área de educação em cerca de dois bilhões de reais, embora o fundo ainda não exista.

Então, os avanços na área da educação são frutos da sociedade civil, e isso não deve constranger o governo, porque em um governo democrático as vitórias da sociedade civil são as vitórias de todo o país, apenas não têm como efeito a incorporação delas por um partido, porque isso não é justo. Tanto é que a presidente Dilma não se vangloria sobre os resultados do PNE, embora se vanglorie sobre o resultado da lei de royalties, o que não deveria fazer.

Em relação àquilo que não avançamos, são os problemas históricos essencialmente relacionados à questão da valorização dos profissionais da educação. O grande recado do Plano Nacional de Educação é que a agenda da valorização dos profissionais da educação é a agenda central para obtenção da qualidade do ensino, que é a grande questão nunca solucionada. Agora, é preciso que o Plano Nacional de Educação seja implementado para que isso seja resolvido. O principal desafio do plano é a valorização do magistério.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.