Carta de amor, por Claret Fernandes*

Volta Grande do rio  Xingu -  PA.  (FOTO: DIDA SAMPAIO/AE)
Volta Grande do rio Xingu – PA. (FOTO: DIDA SAMPAIO/AE)

*para Combate Racismo Ambiental

Tenho ouvido teus sussurros nessas madrugadas do tempo, que teima em amanhecer. São tantas bocas que passam a noite comigo, me beijam no leito e, talvez por isso, me chamem de ‘casa dos deuses’, nesse amor (quase) infinito.

Quero abrir-te meu coração por completo, sem nenhum segredo.

Pressentimentos horríveis me invadem o peito há mais de 30 anos. O choro persistente de Kararaô me impõe longas noites de insônia, rolando na cama, entre as ilhas.

Quantas flechas se quebraram e quantas malhadeiras se romperam.

Quanta ofensa! Desde essa época, muitos me chamam de idiota, de atrasado, contra o progresso. Mas tu bem sabes: aquilo que parecia apenas pressentimento tornou-se realidade. As vozes de outrora ganham ar de profecia.

Na Volta Grande, o muro de concreto sobe na velocidade do imenso canal, que rouba a água – que sou eu – reduzida à força mecânica de 18 turbinas.

O canal, com vazão de 14 mil m³ por segundo, é um rio artificial de 20 km de comprimento, 360 metros de largura na sua superfície, que exige a escavação de 110,8 milhões de m³ de solo e rocha – equivalente ao Canal do Panamá. Esse material encheria 5 milhões de caminhões basculantes.

Eu, a casa dos deuses, a habitação dos peixes, o lazer das aves, a fantasia das meninas aguardando o boto encantado, a fonte da biodiversidade, a vida de diferentes povos, agora me reduzo à força mecânica de algumas turbinas.

Vai entrando no cenário de Altamira, tomado da marca CCBM, a sigla CMBM – Consórcio Montador Belo Monte. A barragem entra na sua última fase: a montagem das máquinas!

Aproveitando a Copa, acionistas de Belo Monte estiveram aqui, bem no nosso quintal, sob a luz do sol,  entre eles o representante da Iberdrola.

Mercadores! São tão habituados a buscar e pronto!

Tu entendes, não? Sei que entendes! É uma dor profunda. Não se trata de uma questiúncula ambiental. Trata-se de mudança de curso, de rumo, de função social. Era livre para a generosidade com todas, agora sou preso para o lucro de uns poucos.

Sinto, às vezes, até vergonha de dizer, mas, como te falei, vou abrir-te meu coração. É que tenho alguns escrúpulos. Como vou olhar o espelho das grandes águas se o que aparece é um esqueleto de rio, entre o muro e a casa de força? 100 km de completa nudez, com 6 turbinas. Foram-se as vestes de núpcias, as águas esverdeadas, as espumas brancas do noivado. Tantos que me olhavam com admiração e respeito agora têm dó e fazem galhofa de mim.

Tu sabes! Rio gosta de ser caudaloso, sem mostrar seu esqueleto para ninguém. Ninguém mesmo!

Tu sabes também que rio não gosta do que andam fazendo com nossas garotas, muitas adolescentes, seduzidas com o vale-sexo.

A Grande Serpente, que se achegou de mansinho, que se deitou comigo, no meu leito, que fez juras de amor, com beijos e abraços, agora me trai, me estupra, me chuta, e me joga fora. A Grande Serpente da boca de mel agora traz bala de borracha, de chumbo, e solta um mau hálito insuportável pela boca sempre escancarada e seu barulho, dia e noite, estressa a Amazônia inteira.

Aquele seu focinho torto, e enorme, me quebra a espinha na Volta Grande; o nervo, agredido, me dói dos pés à cabeça, desde Mato Grosso ao Amazonas e até mar adentro – pois rio sofre por inteiro -, e o meu corpo, antes grande de musculatura, está prestes a tornar-se imenso, mas do inchaço, das lapadas constantes, planejadas e impiedosas, estendido no chão, preso num lago de 50 mil km².

Se me olhas em Altamira, no cais, continuo como dantes: o sossego, o tremular das águas… Mas isso é apenas aparência! Ainda sou um rio, embora fervendo por dentro de dor e indignação, mas já sou lago por antecipação. Vivo essa dialética, já com saudade do que deixarei de ser.

A Grande Serpente, que me ataca a coluna, na tocaia, na calada da noite fria dos gabinetes com ar condicionado, planeja despedaçar-me, no leito, em outros pontos, num complexo de barragens.

 Ela (a Grande Serpente) diz que não. Mas onde reina a traição, ‘não’ pode significar ‘sim’. Começam a aparecer textos no Blog da própria Norte Energia que induzem ao ‘sim’, com o argumento da otimização de Belo Monte, passando de 4 para 8 mil MW de energia firme.

Essa mesma Grande Serpente pretende atacar-te também, oh Tapajós! Tenho ouvido teus sussurros mesclados de lamúrias e algum contentamento: o Diálogo Tapajós, que te engana com a falsa neutralidade; o Decreto, com estudo forçado, que te invade o sono; os discursos verdes e climáticos, que dividem o teu povo.

Desejaria que os Muduruku lhe cortassem de vez a cabeça. Mas a Grande Serpente camufla tão bem! Não é fácil um ataque fatal. Não é simples descobrir- lhe o ponto mortal, e certeiro. Há que se ter mais que flechas para enfrentar os fuzis.

Além de barragens, a Grande Serpente, apelidada de Vale, Belo Sun, Bungue e algumas outras querem minério, soja, madeira, gado. Há ferrovias, rodovias, hidrovias, portos… Tudo planejado de forma coordenada para escoar nossa riqueza. De 2012 a 2016, são previstos 150 bilhões de reais para infraestrutura do capital no Estado do Pará.

No início do mês de junho, ouvi vozes sobre o Porto de Miritituba, em Itaituba, comandado pela Bungue. Aquela munheca comprida te ferindo as margens, e o teu leito.

Tu não és de reclamar, mas o teu incômodo, presumo, é quase insuportável. Caminhões e mais caminhões transitam de 5 em 5 minutos lotados de soja do Mato Grosso, despejada nas barcaças.

Para o capital é interessante! Economizam-se 320 km de estrada até Santarém. O que já parece muito. Mas, no conjunto das obras, serão em torno de 2 mil km a menos. Perto de 70% da soja e outras mercadorias exportadas aqui da região ainda vão, hoje, até São Paulo.

O que é bom para o capital é ruim para ti e para o teu povo, que suportarão tudo isso nas costas. Rios de água viva sofrerão tantas intervenções e sacudidelas que se transformarão em estradas de morte.

Com um terminal apenas, o Porto de Mititituba já traz muitos transtornos. Porém são previstos 23 terminais. Além da Bungue, há outras empresas que continuam comprando terras a preço de ouro às tuas margens. As áreas ficam inflacionadas, com lotes a partir de 1 milhão de reais, então ribeirinhos vão sendo empurrados de lá.

Teus vizinhos não são mais os mesmos, nem têm os mesmos intentos. Os ribeirinhos fazem amor contigo, as empresas te estupram.

E mais! Todo esse investimento de várias empresas não é apenas para a soja do Mato Grosso; o seu plantio tende a estender-se pelas margens da Transamazônica, onde hoje grande parte é pasto, até o Médio Xingu, região de implantação de Belo Monte e muito rica em minério.

Entendes, não! Nossa sina está traçada pelo capital, a não ser que nos juntemos, na gota (quase) mágica da rebeldia organizada, que clareia a visão e mostra onde está a cabeça da Grande Serpente.

Cutucá-la apenas na calda ou numa das muitas garras pode ser perigoso e insuficiente; é preciso acertar-lhe a cabeça, que é única.

Desculpa-me se, agora, essa carta toma um tom pessoal, quase invadindo a particularidade do teu sentimento. É que tenho algo bem específico, bem íntimo para te dizer.

Desculpa-me, mais uma vez! Mas sabes o Filho? Aquele pescador morador das Palafitas? Vi a situação dele com meus próprios olhos.

 Pois não te enganes: o indivíduo tem dois olhos apenas, mas quando se tornam pessoas iguais a rios de rebeldia têm mais de mil olhos. É algo assim que aprendi de Bertold Brecht, nas místicas.

Os míopes olham as palafitas e veem traficantes, empobrecidos, mas nós, os rios, que temos mais de mil olhos, e milênios de anos, sentimos que a generosidade dos rios, e não a acumulação dos mercadores, é que gera fartura.

Sei da tua discrição, mas admira-me muito quanto peixe tens oferecido àqueles moradores. Todos os dias, cada vez que o Filho vai às malhadeiras, espichadas no teu leito, tu lhe entregas entre 10 a 20 peixes, alguns grandes. Ele faz até 200 reais por dia, isso garante a subsistência de sua família, pois soma, ao final do mês, até 6 mil reais. Que grande projeto garante essa renda ao povo comum?

Esse teu Filho me confessou algo: dos boatos das barragens. E disse em soluços e olhar lacrimejante que isso não pode ser verdade. ‘Amo o Tapajós, e esse desastre não vai acontecer’.

 Tu precisas entender uma coisa, oh Tapajós! O amor que teu filho tem por ti lhe embaraça a vista. Tu me prometes que vais abrir-lhe o olho? Prometes?

O choro até sensibiliza, mas somente a força popular organizada é capaz de mudar o rumo das coisas, e acertar a cabeça da Grande Serpente.

Conheço-te bem, enquanto rio que sou. Sei que tua generosidade não é somente com o Filho da Palafita de Itaituba. Ao longo do teu leito, são milhares de pessoas – barqueiros, carroceiros, indígenas, camponeses, urbanos -, todos usufruem de tua generosidade, e todos serão impactados por essa Grande Serpente que se materializa em barragem, minério, porto, hidrovia, barcaças de soja.

Insisto contigo! Não sejas como eu! Nalgum momento, entre pressentimentos horríveis, cri no canto da sereia. Não creias! E alerta teus filhos para o pior a fim de que a indignação organizada chegue no tempo oportuno, e o melhor aconteça.

Uma última coisa! Senti firmeza nas famílias de Nova Miritituba, atingidas pelo porto comandado pela Bungue. Desconfio de que, na tua brisa suave sobre o buritizal, onde moravam, lhes sopras coisas ao ouvido. Algo de rebeldia!

Eram 93 famílias nesse acampamento, em 2011, com promessa de terra, casa de alvenaria e mais 8 mil reais para cada uma delas. Mas foram todas enganadas, restando-lhes apenas o terreno.

No início de abril, trancaram a Transamazônica e conquistaram água, Transformador e outras melhorias. Soube da fila de caminhão que se formou. Alguns dizem que é uma luta espontânea, mas não me sai da cabeça que, ali, tem o dedo teu. Tu lhe sopraste algo ao ouvido. Podes admitir, pois entre mim e ti não há segredos, não é mesmo?

Agora, sabes, são 600 famílias! Contam-se 6 km do acampamento ao Porto, mas em linha reta é muito perto.

 Fernando, uma das referências lá, tu conheces? Se não, é só ver com as companheiras do MAB. Elas têm ajudado a espalhar tuas gotas de rebeldia entre os teus.

Então! Fernando contou que a poeira da soja envenenada está trazendo complicações respiratórias para os moradores do acampamento, especialmente para idosos e crianças. Pelo que vi, não vão deixar isso barato!

Ah outra coisa! Há gente com ciúme de nós, sabias? Mas tudo por questões muito bobas. Uma militante disse que tu és mais bonito do que eu. Coitada! Ela ainda não sabe que cada qual é belo no seu jeito de ser formoso.

São ciúmes bobos, como te disse. Se ficamos mais juntinhos, se nos colocamos nessa causa comum, se nos estendemos Transamazônica afora, num só Método – tá vendo como venho aprendendo coisas! -, até esses pequenos ciúmes vão se acabar.

A Grande Serpente de uma cabeça só, materializada em diversas cores e interesses, procura nos dividir. Por isso é muito importante esse trabalho de unidade, que se inicia entre nós e vai se espalhando pelo Tucuruí, Tocantins, Madeira, abrangendo toda a Amazônia.

Meu Tapajós querido! De minha parte, continuarei dando ouvidos a essas vozes: nos pesadelos, no sonho, nas brisas de rebeldia. Sei que vais ouvir também.  Vamos acumulando forças para sacudir, um dia, essa canga capitalista que nos sufoca.

Continuemos fazendo amor! Rio que ama de verdade vai além do leito, do peito, do grito, do choro, do espaço geográfico. Ele se espraia na imensidão do mundo, na imensidão dos oceanos, até coabitar na liberdade.

Até lá!

Do teu camarada, Xingu.

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