Só operários mortos em obras de estádios não podem protestar, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Não há uma relação direta entre a manutenção do grupo no poder e quem ganha a Copa do Mundo, pelo menos desde a redemocratização. Em 1994, levamos a Copa e o ministro da economia foi eleito presidente, portanto, continuidade. Em 1998, perdemos e Fernando Henrique foi reeleito – continuidade de novo. Em 2002, ganhamos e Lula chegou ao poder, ou seja, ruptura com o grupo no poder. Em 2006, perdemos e ele foi reeleito, continuidade. Em 2010, perdemos, mas Dilma manteve o PT no poder – continuidade de novo.

Porém, há uma relação clara e direta entre a incapacidade de governos de ouvirem as demandas da população e as encaminharem corretamente através da elaboração e aplicação de políticas públicas e a não eleição ou não reeleição de grupos políticos. Principalmente no que diz respeito à qualidade de vida,  item central na pauta dos protestos que estão acontecendo em várias cidades do país.

Parte da população sabe o significado da expressão “Pão e Circo” e não está satisfeita com a ausência de algo que possa ser chamado de “legado” após uma nuvem de gafanhotos chamada Fifa passar por aqui, escoltada por empreiteiras e interesses políticos escusos.

Por isso, as manifestações que estão indo às ruas hoje não são contra o futebol. Aliás, só gente muito desocupada iria às ruas se manifestar contra o futebol. É uma discussão de direitos que, em tese, já são garantidos pela Constituição mas que, na prática, estão longe de serem realidade. Os atos pré-Copa são sim um tema político e o seu questionamento frente à ausência de políticas sociais também.

Gostaria de pedir aos amigos jornalistas que estão cobrindo as manifestações que façam aquele esforço para ir além nas narrativas sobre os impactos no trânsito ou possíveis danos ao patrimônio cometidos por minorias. Entendo que há emissoras que são parceiras da Fifa nas transmissões e que, por conta disso, evitam ir muito à fundo ao tratar das causas dos protestos contra grandes obras relacionadas à Copa. Mas todos nós faríamos um favor supremo ao contribuir para o entendimento de não são “hordas de bárbaros” que protestam mas, pelo contrário, grupos politizados e conscientes de seus direitos.

Falar sobre a política higienista das grandes metrópoles e de seus governantes é importante, por exemplo, e tem relação direta com boa parte dos protestos, como aqueles ligados à luta pela moradia. As empresas de ônibus, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão lá, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras (o plano diretor da cidade de São Paulo que o diga). E existe maior atentado à dignidade humana que a remoção de pessoas, no campo ou na cidade, que não têm para onde ir sob um injustificável bem maior?

Qual a diferença de descer porrada em indígenas no Amazonas e Roraima para construir uma estrada durante a Gloriosa e lançar balas de borracha em uma comunidade pobre em São José dos Campos para erguer um empreendimento? Ou encher um grupo de jovens que protestavam contra a tarifa do ônibus e jornalistas que apenas faziam seu trabalho com gás lacrimogênio porque não estavam em casa vendo novela ou no bar bebendo?

“Quem quiser manifestar, pode! Mas quem quiser manifestar não pode prejudicar a Copa”, disse Dilma Rousseff, nesta terça (13). Mas, ao mesmo tempo que pede paz nas ruas, a União está jogando o trator em cima de ribeirinhos, camponeses e indígenas para a construção de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, no Pará. Violência estatal não é só dar porrada com cassetete. Ela pode vir através de financiamento público abundante também a quem cria danos à qualidade de vida de parcelas da população. Dinheiro digital é mais limpo e não cheira a gás.

O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infraestrutura e erguer moradias, girando a economia. Só que “esqueceu” de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, o processo de gentrificação, de encarecimento das cidades segue a toda. A busca por áreas urbanas para a incorporação leva à expulsão de quem não consegue mais pagar o aluguel. E a desocupação de terrenos ou favelas onde vivem comunidades inteiras só não é feita se há extensa cobertura midiática.

Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e essas comunidades teriam direitos preservados. Mas se o Coelhinho existisse, talvez eu tivesse ganho o ovo de chocolate que tanto queria na última Páscoa. Ou se Papai Noel fosse de carne e osso, obras para a Copa não desalojariam ninguém de forma questionável.

Por fim, alguém acha que a realidade vai mudar apenas com protestos on line ou cartas enviadas ao administrador público de plantão? Ou que a natureza de uma ocupação de terra, de uma retomada de um território indígena ou de uma manifestação urbana não pressupõe um incômodo a uma parcela da sociedade?

Parar a cidade, inverter o campo, subverter a realidade. Ninguém faz isso para causar sofrimento aos outros (“ah, mas tem as ambulâncias que ficam presas no trânsito” – faça-me um favor e encontre um argumento decente, plis), mas para se fazer notado, criar um incômodo que será resolvido a partir do momento em que o poder público resolver levar a sério a questão.

Ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.

É trágico que parte da mídia tenha conseguido plantar o discurso que resume tudo a “vandalismo”, esvaziando as pautas e reivindicações. Isso é um comportamento de compactuação com uma vida bovina, de apanhar por anos do Estado, em todos os sentidos e, ainda por cima, dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com cerveja e amendoim no sofá da sala.

Não existe observador independente. Um jornalista vai influenciar a realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido e, se for honesto, deixará isso claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem ser possível exercer uma pretensa imparcialidade, mas isso é só metade da história. Deve se buscar ouvir com decência todos os lados de um fato para reconstruí-lo da melhor maneira possível. Afirmar que existe isenção em uma cobertura jornalística de um conflito, contudo, só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade.

Isso sem contar que tentar manter-se alheio a reivindicações justas é, não raro, apoiar a manutenção de um status quo de desigualdade e injustiça. Coisa que, por medo, preguiça, vontade de agradar alguém ou pseudo-reconhecimento de classe, a gente faz muito bem.

Manifestações populares e ocupações de terra e de imóveis vazios significam que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os rotos e rasgados são capazes de sobrepujar ricos e poderosos. Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos.

Muitas das leis “desrespeitadas” em protestos não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está.

Você pode fazer o omelete que quiser, mas se quebrar os ovos vai preso.

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