Maria Rita Kehl: Índios vivem hoje situação parecida com a da ditadura

Índios Krain-a-kore pedem comida na beira da BR 163 (Cuiabá/Santarém). Foto: Orlando Brito, 03/03/1974
Índios Krain-a-kore pedem comida na beira da BR 163 (Cuiabá/Santarém). Foto: Orlando Brito, 03/03/1974

A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, diz que situação atual dos índios é parecida com a da ditadura

Por Guilherme Freitas, O Globo

Em novembro de 2012, foi criado um grupo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar violações de direitos humanos sofridas por índios e camponeses. Desde então, a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da CNV e coordenadora do grupo, visitou povos indígenas no Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul do país. Os depoimentos e relatórios colhidos até agora compõem um painel de abusos sistemáticos cometidos ao longo do período analisado pela comissão (1946 a 1988), em especial durante a ditadura. Inúmeras mortes foram causadas por obras do governo em terras indígenas (como a construção de estradas na Amazônia), sem estudo nem aviso prévio. Frentes de contato despreparadas levaram doenças a tribos isoladas. Há ainda denúncias de trabalho escravo, trabalho infantil, torturas e prisões irregulares. Em entrevista por telefone, Maria Rita Kehl avalia os trabalhos desse grupo da CNV e diz que a situação dos índios hoje é “muito parecida” com a do período da ditadura: “Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais”.

Quais foram as maiores violações de direitos dos índios identificadas até aqui pela CNV?

O tema das agressões a índios no Brasil é muito vasto. Estamos convocando a entrar em contato conosco todos que puderem nos indicar violações cometidas em locais isolados ou que não foram noticiadas. O primeiro relatório que recebi, no início dos trabalhos, foi sobre o massacre dos waimiri-atroari, de Roraima. Pelo menos entre 1.300 e 1.500 índios morreram durante a ditadura em consequência da abertura da BR-174 (Manaus-Boa Vista). As causas foram várias. Como não houve aproximação adequada para o contato e os índios não foram informados sobre as obras, eles ouviam as máquinas, saíam das aldeias para ver o que estava acontecendo e eram recebidos a tiro. Como também não houve vacinação, muitos morreram por epidemias. E os índios contam que, durante as obras, aviões passavam e jogavam “uma coisa que não queimava o mato, mas queimava a gente por dentro”. Obviamente não há documentos oficiais sobre isso, mas, pelos relatos, podia ser pesticida.

Que outros povos indígenas foram afetados durante a ditadura?

Além dos waimiri-atroari, fiz mais viagens a aldeias. Os ianomâmi, também em Roraima, enfrentaram a construção de uma estrada, a Perimetral Norte, na terra deles nos anos 1970, sem estudo prévio. Conversei com um ex-agente da Funai, hoje com 80 anos, que se demitiu na época alegando que não queria ser “coveiro de índio”. Ele me disse que as principais causas de morte foram sarampo e gripe e que as frentes da Funai não tomavam vacina, nem remédio, mesmo sabendo que fazer contato assim era como jogar uma bomba no meio dos índios. Visitei os suruí, na região do Araguaia, onde muitos índios foram torturados em interrogatórios sobre a guerrilha, mesmo não sabendo de nada. Nenhum deles foi anistiado ou indenizado até hoje. Vivem num pedaço de terra minúsculo, praticamente uma favela às margens da Transamazônica, e tiveram o acesso ao rio cortado pelo fazendeiros. Há pouco tempo os xavantes, do Mato Grosso, entregaram um relatório. Fizeram uma cerimônia muito emocionante, primeiro descreveram os abusos na língua deles e depois traduziram para nós. A situação varia em cada região, mas há um padrão de descaso e violência.

Você esteve em regiões onde há ameaças a povos indígenas hoje?

Em todas as audiências públicas surgem também denúncias atuais. O relatório da comissão vai de 1946 a 1988, então não podemos incluir casos de hoje, mas podemos transmitir essas informações ao governo. Fui ao sul da Bahia, onde pataxós e tupinambás sofreram na ditadura e sofrem hoje com ataques de latifundiários e com a presença do Exército na região. Enviei para a presidente Dilma, mas não sei se ela recebeu, o depoimento do cacique Babau, dos tupinambás, que está sendo perseguido. Ele diz que o importante para os índios é ter sua terra, e não receber cesta básica, porque é na mata que eles têm seu modo de vida e fora dela eles perdem as condições para manter sua cultura. Estive também no Mato Grosso do Sul para ouvir os guarani kaiowá, que até hoje vivem uma situação dramática, sem a homologação das terras. Lá estamos investigando a exploração de trabalho escravo e trabalho infantil indígena. O que precisamos determinar é se houve apoio do Estado a ações de empresas e fazendeiros. Os índios dizem que forças da polícia e do Exército eram acionadas com frequência para reprimi-los. É um padrão que se repete até hoje, e na ditadura foi ainda mais grave: quando a polícia é chamada para atuar contra índios, não pergunta quem tem razão. Os guaranis me disseram: “A gente sabia que quando vinham os de bota preta era pior”.

A Comissão também vai investigar denúncias sobre prisões e torturas de índios, como as que envolvem o antigo Reformatório Indígena Krenak, em Minas Gerais?

Sim, já temos um relatório sobre Krenak, com denúncias consolidadas. O Relatório Figueiredo aponta também violações cometidas em postos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Muitos deles tinham pequenos presídios indígenas. O relatório menciona um tipo de punição, conhecida como “tronco”, mas diferente daquela aplicada a escravos. Esse “tronco” era uma espécie de forquilha feita com dois pedaços de pau. O índio ficava algemado em um deles, sentado, com um pé espremido no meio da forquilha. Isso quem fazia era o chefe do posto do SPI, uma instituição criada com o ideal de “civilizar” o índio.

Pelo que você tem visto e ouvido nas viagens pela CNV, como está a situação dos povos indígenas hoje, comparada à do período da ditadura?

Muito parecida. Acho estranho um país como o nosso ter como principal ponta de crescimento a agricultura, não a de alimentos, mas a de commodities, como soja, cana e milho. É nos estados dominados pelo agronegócio que os índios ainda hoje sofrem ameaças, despejos e assassinatos. O oeste do Paraná e o Mato Grosso do Sul, em especial, são regiões muito atingidas por isso. Morrem caciques, lideranças locais, e os crimes nunca são apurados, ninguém é condenado. Cria-se um clima de medo nessas regiões. Acabei de voltar de Guaíra, no norte do Paraná, região de muito milho, onde é evidente a imagem ruim que se tem dos índios. Fomos muito bem recebidos no hotel, mas quando voltamos da audiência com objetos indígenas e com a pintura que os índios fizeram em nosso rosto como sinal de amizade, o tratamento mudou completamente. Naquela região, os índios não têm mais espaço para caçar, perderam acesso à água, dependem de cestas básicas, muitas vezes passam fome. A situação deles é tão grave que você pode pensar: por que eles não “desistem” de ser índios? Mas é uma questão de pertencimento cultural. Pense nos brasileiros exilados durante a ditadura: tudo que eles queriam era voltar. O índio não pode ser um exilado dentro do Brasil. É assim que se produz a condição que alimenta o preconceito.

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