Cláudia, a mulher-arrastada. E os homens engravatados, fardados e-que-escrevem, por Alceu Castilho

Claudia tinha quatro filhos e ainda cuidava de outros quatro. Foto: Luiz Ackermann / Extra
RG de Cláudia da Silva Ferreira. Foto: Luiz Ackermann / Extra

Alceu Castilho, em Outro Brasil

Corre nas redes sociais um movimento para que Cláudia da Silva Ferreira seja tratada como tal. Com nome e sobrenome, uma história. E não como “a mulher arrastada” por policiais, no Rio. Muito justo. E necessário. Ela era uma mulher, uma mulher-que-cuidava-dos-filhos (e dos sobrinhos), uma mulher-que-tinha-saído-para-comprar-pão (e mortadela). Mas, sim, ela foi arrastada. Antes disso, baleada. E aqui temos uma distorção – linguística, narrativa – em cima de uma distorção. Pois ninguém fala em Cláudia como “a mulher baleada”. Ou “a mulher executada”.

A indignação não pode se restringir à ação mais patética da polícia. Os patetas que a arrastaram foram, naqueles instantes em que a levavam para o hospital (baleada), exatamente isso: patetas. Não planejaram esse desfecho mais chamativo. Não temos aqui – insisto, estou a falar dessa cena final – mais um caso João Hélio Fernandes Vieites, o menino arrastado por bandidos, em 2000. Temos algo pior: algo que perpassa toda uma instituição, toda uma argamassa – uma sociedade – em frangalhos. Algo mais que uma distração brutal. E que um caso de banditismo comum.

Se Cláudia da Silva Ferreira foi baleada antes de ser arrastada, temos antes dessa cena – sim, extremamente chocante – um fato bem mais estrutural: temos uma corporação de assassinos. Que mata Cláudias e Amarildos e milhares de pessoas (negras e com filhos e que compravam pão), por todo o país, sem que alguma trapalhada escancare a brutalidade habitual.

A trapalhada não é cruel. Ela parece cruel. Cruel foi a execução de Cláudia. Chocante é ter um corpo no porta-malas. Violento foi o assassinato às escondidas, essa solução em escala para os conflitos sociais. Essa solução histórica, esse extermínio de brasileiros, essa naturalização da barbárie. Violento é o chefe de polícia, é cada um dos governadores, violento é esse sistema que mantém essa instituição que apela sem culpa para balas e porta-malas – e que abriga um ou outro policial tão trapalhão quanto despreparado.

Vou insistir no ponto: não estamos diante de uma videotrapalhada. Estamos diante do registro de uma parte chocante de uma cena mais ampla. Menos travelling (uma cena mais frenética de um filme) e mais uma imagem congelada: uma mulher baleada. Uma mulher que perde a vida. No filme “Roma, Cidade Aberta”, um clássico do pós-guerra, a personagem Pina – Anna Magnani – corre, desesperada, para tentar salvar o marido, preso pelos nazistas. E grita: “Francesco! Francesco!” Aqui, não sabemos ao certo se Cláudia corria. Deve ter corrido. Deve ter pensado em correr.

Seria natural ela correr. Natural? Seria cultural. Porque o medo cotidiano nas periferias do Brasil é o medo dessa polícia fascista, dessa polícia que confisca câmeras porque não quer o registro de suas trapalhadas e de seus métodos incivilizados de imobilizar, de prender, de reprimir, de humilhar. O medo de Cláudia é o medo de cada um de nós. Medo institucionalizado, um medo curtido, soldado, multiplicado no dia-a-dia por homens fardados, homens engravatados e homens-que-escrevem: jornalistas.

A libertação das Cláudias e Amarildos que ainda não foram arrastadas e baleados não se dará sem a libertação desses homens-que-escrevem. Que pressionem os homens engravatados que, por sua vez, levem os homens fardados (e que sejam identificados, que não sejam anônimos) a patamares menos animalescos de intervenção social.  A preservação da vida das Cláudias e Amarildos passa, portanto, pela decisão – que também não é apenas individual – de homens-e-mulheres que-escrevem, de homens e mulheres que não podem escrever arrastados por uma tradição – patronal – de insensibilidade e descaso. De jornalistas cúmplices, cínicos e com horror à contextualização histórica e social.

Toda a sociedade brasileira estava naquele porta-malas. Toda a sociedade (mundial, capitalista, consumista, cega) está sendo arrastada e baleada. A ferida é planetária. Mesmo os defensores dos canalhas que promovem o extermínio estão sendo, dia-a-dia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e nos grotões (onde indígenas são atropelados, onde casas de camponeses são queimadas), violentamente reduzidos a arremedos de cidadãos. Mesmo quando marcham “pela família” eles marcham para trás. E sem retrovisor. É uma sociedade em marcha-a-ré, essa que matou Cláudia da Silva Ferreira – a “mulher arrastada”, a “mulher baleada”.

A luta que os filhos e sobrinhos de Cláudia podem ter – e de todos aqueles capazes de imaginar sua dor – não é aquela por policiais menos atrapalhados e por porta-malas que não falhem. É por uma polícia e uma sociedade humanizadas. Todos os que lidam com informação – jornalistas diplomados ou não, com crachá ou não, comunicadores de um modo geral, comentadores de redes sociais– têm um papel importante nesse sentido.  A escolha de cada palavra e de cada história e de cada tema pode contribuir mais ou menos para essa humanização. A escolha do lado errado bate, mata e arrasta – e tornará cada um de nós, aos olhos da posteridade, apenas mais um anônimo infame.

Saiba mais a respeito:

Viatura da PM arrasta mulher baleada na Zona Norte do Rio [Claudia da Silva Ferreira trabalhava no Hospital da Marinha e criava oito crianças]

Cláudia tinha saído para comprar R$ 3 de pão e R$ 3 de mortadela. PM diz que policiais já estão presos

Se arrastassem mais um pouco, só aparecia o osso, desabafa marido de Cláudia da Silva Ferreira

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