Resultado da intervenção das usinas na região mostram que as inundações observadas neste mês podem ser ainda pior no futuro
por Felipe Milanez, Carta Capital
Rondônia, historicamente, fica longe. Extremo oeste do Brasil, o alto rio Madeira sempre foi relegado como um lugar distante dos centros de poder, pouco merecedor de atenção. Bom lugar para fazer experiências políticas e de engenharia. As catástrofes que acontecem por lá demoram a chegar na “opinião pública” que senta sobre o poder e o dinheiro. Foi assim com a Ferrovia do Diabo, a Estrada de Ferro Madeira–Mamoré (construída entre 1907 e 1912), e logo depois, quando Rondon esticou as linhas telegráficas (concluída em 1915 com o telégrafo instalado em Santo Antônio do Madeira), pouco antes de o rádio tornar o telégrafo obsoleto. Foi para Rondônia onde os militares, durante a Ditadura cujo golpe completa 50 anos nos próximos dias, decidiram enviar os pobres do sul do País para não ter que dividir a terra dos latifúndios. Lá longe, os migrantes do sul morriam de malária, em conflitos com povos indígenas, ou nas balas de pistoleiros. E tudo ficava por isso mesmo, com a pressão social mais aliviada. Ao longo do último século, Rondônia foi o retrato de um “triste trópico” de exploração e saque.
Não é a tôa que foi justamente Rondônia o local escolhido de experimento para o governo Lula iniciar seu plano neodesenvolvimentista de construção de usinas na Amazônia, cujos projetos atualmente passam de centenas. Os majestosos rios amazônicos vão tornando-se cada vez mais “as veias secas da Amazônia”, como escrevi em uma reportagem na revista RollingStone. Em Rondônia, um laboratório político para testes socioecológicos, é tolerado errar. Pode-se errar feio, grosseiramente, violentamente. E assim Lula decidiu iniciar a exploração energética do Complexo Madeira com duas usinas simultâneas, logo de cara: Santo Antônio e Jirau. Foram licenciadas durante a gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente que, em 2007, havia declarado o licenciamento das usinas uma “vitória da sociedade”. Qual sociedade? A de Rondônia, ou a que vive “longe” de lá?
A atual cheia histórica, batendo os 19 metros, tem provocado uma catástrofe humana e ecológica em Rondônia, no Acre e na Bolívia. No entanto, apesar das águas estarem altas há semanas, o problema apenas tem começado a receber atenção do distante sul do Brasil, o “sul maravilha”, terra do samba e do carnaval nessas mesmas últimas semanas.
O problema não é a cheia em si, que sempre ocorre, anualmente. Ainda que nesse ano haja mais águas. Não é o Madeira o culpado. Como disse o superintendente do Ibama, em Palmas, a respeito das usinas no Tocantins: “a natureza não se adaptou ao mecanismo de barramento do rio”. Definitivamente, a análise, de tão absurda, pode ser estendida para o Madeira, que também “não se adaptou ao mecanismo de barramento”. É de se esperar que o Xingu, que rompeu a ensecadeira feita para a construção de Belo Monte, também nos últimos dias, igualmente não se adapte ao barramento proposto. Tampouco o Tapajós. A Natureza insiste em “não colaborar” com o neodesenvolvimentismo (para seguir a linha de pensamento dos analistas ambientais que licenciam as obras no Ibama).
Mas a culpa não pode ser atribuída à vítima, seja ela a Natureza ou quem vive nesse ambiente. Não é o Madeira, nem quem sempre viveu nas suas margens, o culpado pela catástrofe. Há uma novidade: as duas usinas. O Movimento dos Atingidos por Barragens tem uma análise certeira de quem sofre, além do rio e do sistema ecológico: a população local. “Com as usinas operando no limite e enquanto os consórcios construtores disputam as possibilidades de gerar mais lucro, as comunidades e população que vivem à margem de todo o rio Madeira continuarão sofrendo com a maior enchente dos últimos cem anos da região, causada e potencializada pelas obras das hidrelétricas do rio Madeira.”
Enquanto Jirau doou 250 cestas básicas e mil frangos congelados “visando prestar auxílio aos atingidos”, Santo Antônio, publicamente, tem tentado ver se a água passa depressa. Ambas mostram-se sorrateiramente acuadas diante do desastre, em um silêncio constrangedor só rompido para cada uma atacar a vizinha, numa briga pública que coloca em risco milhares de pessoas. E começam, ainda de forma incipiente, a ser pressionadas por algumas autoridades no âmbito do Judiciário. A participação delas nessa catástrofe, uma vez passada a crise quando as águas escorrerem para o Amazonas, vai ser medida junto com a quantidade de mortos (pelo menos 60) e dos milhões em prejuízo.
Procurei dois destacados pesquisadores para uma breve análise da catástrofe. Antes mesmo dos licenciamentos, eles já alertavam para os problemas decorrentes dos possíveis barramentos do rio Madeira, que carrega metade dos sedimentos do Amazonas: Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), e Jorge Molina, do Instituto de Hidráulica e Hidrología (IHH) da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA). Um de cada lado da fronteira do Madeira, que nasce nos Andes e deságua no Amazonas.
Para Molina, “há fortes suspeitas” de que as usinas pioraram as coisas no Brasil. E o problema, completa Fearnside, é que a credibilidade do Ibama e da ANA foi posta em dúvida, no momento em que o governo prepara-se para leiloar mais uma série de usinas na Amazônia. A questão é tão grave que a Justiça Federal determinou que os estudos de impacto ambiental sejam refeitos.
Pior: no futuro, lembra Fearnside, as mudanças climáticas devem aumentar a ocorrência de eventos extremos.
Fearnside entrou no INPA em 1978, e publicou trabalhos científicos que são referências fundamentais sobre 10 barragens na Amazônia brasileira: Balbina, Tucuruí, Samuel, Curuá-Una, Santo Antônio, Jirau, Teles Pires, Jatapu, Cotingo, e Belo Monte). Os trabalhos e outras informações sobre barragens estão disponíveis no seu site http://philip.inpa.gov.br e na coluna que escreve em Amazonia Real
Abaixo, entrevista com Fearnside, feita por e-mail. Logo após, um breve texto de Molina, que responde a perguntas que lhe enviei.
Felipe Milanez – Quais as perspectivas?
Philip Fearnside – O futuro? Cheio de incertezas. Esta cheia excepcional e o que aconteceu nos últimos três ou quatro anos anteriores, como a erosão que Santo Antônio provocou em Porto Velho, colocam em dúvida muitas coisas: os estudos e os projetos das duas usinas, a operação dos reservatórios, os níveis d’água de inundação reais, as verdadeiras consequências do impactos destes projetos no Brasil e na Bolivia e o que pode ocorrer no futuro. Eu temo que também foi posta em dúvida a credibilidade do IBAMA, da ANA e a sua capacidade de cumprir suas próprias normas e condições.
FM – Quais as relações entre as usinas e os efeitos dessa cheia? Quais os riscos envolvidos?
PF – As duas usinas devem estar contribuindo, de maneiras diferentes, ao agravamento dos impactos da enchente atual. A presença da barragem de Santo Antônio, logo acima de Porto Velho, pode estar aumentando a erosão da orla da cidade. O vertedouro da barragem modificou as correntezas em frente à cidade, jogando mais água contra a orla, como foi demonstrado em 2011-2012 quando cerca de 300 casas foram derrubadas ou condenadas. A velocidade da água neste local também deve ser maior do que no rio natural, sendo que toda a liberação da energia está agora concentrada em uma única queda só 7 km acima do centro da cidade.
No caso de Jirau, deve estar contribuindo à inundação na Bolívia no trecho logo acima do final do reservatório propriamente dito em Abunã, na divisa entre Brasil e Bolívia. Os sedimentos amontoados, justamente no início do reservatório em Abunã, devem represar a água rio acima, aumentando a inundação. As afirmações das empresas de que este fenômeno de “remanso superior” não aconteceria no caso de Jirau foram contestadas por mim em um artigo em 2013 na revista Water Alternatives (versão em português disponível em http://philip.inpa.gov.br).
FM – Esse é um problema decorrente da disputa entre as usinas ou, mesmo que tivessem cumprido o plano inicial dos projetos, esses riscos já existiam?
PF – A alegação de Jirau de que a usina de Santo Antônio não abaixou o nível do reservatório como planejado quando a vazão começou a subir, se confirmado, indica um forte impacto sobre a população próxima ao lago, inclusive em Jaci Paraná. O mesmo pode aplicar a Jirau, sendo que se o nível do reservatório tivesse sido rebaixado ao máximo para aproximar o rio natural, a inundação teria sido menor, inclusive nos trechos hoje interditados da rodovia BR-364.
FM – Quais as perspectivas no futuro?
PF – As mudanças climáticas em curso estão previstos a aumentar a ocorrência de eventos extremos, incluindo inundações. Os planos do governo brasileiro para construir dezenas de barragens na Amazônia teriam grandes impactos dos mais variados tipos. A história das usinas do rio Madeira mostra como o sistema atual de tomada de decisão não consegue dar o peso adequado aos custos sociais e ambientais. Há extensa documentação dos impactos das usinas do Madeira, e de outras barragens existentes e planejadas na Amazônia, disponível em http://philip.inpa.gov.br.
Concordo com tudo, menos com o fato de que a Marina,como Ministra do Meio Ambiente, aprovou essas obras,temos informações de técnicos que trabalhavam no ministério na época de que ela e a Dilma, na época Ministra de Minas e Energia, tinham brigas homéricas que envolviam essas usinas, inclusive, pouco antes da aprovação a Marina pediu afastamento do cargo e quem aprovou as obras, logo após, foi o Minc, nomeado pelo Lula.
É bom ler um artigo de um brasileiro que não predeu a memoria. Quem aprovou Jirau e Santo Antônio ? O que Marina tem para dizer agora? Certo estava Jarbas Passarinho ao afirmar que : O homem é ele e suas circunstâncias. O fato é que o leite derramou ! As usinas estão construidas e agora é correr atrás do prejuizo. Como o prejuizo atinge a distante população de rondonia, vamos correr devagar….