Afastadas pela poluição, lavadeiras do Rio Itacorubi testemunham crescimento desordenado do bairro

Aos 89 anos, Geraldina Tomé hoje apenas acompanha o trabalho das filhas. Foto: Fernando Mendes
Aos 89 anos, Geraldina Tomé hoje apenas acompanha o trabalho das filhas. Foto: Fernando Mendes

Poucas famílias do bairro mantêm lavação de roupas para clientes mensalistas, em tradição repassada de mãe para filha desde a época dos quilombolas que formaram primeira comunidade do morro

Por Edson Rosa, em Notícias do Dia

O rio ainda passa ao lado da casa delas, mas Geraldina Nunes Tomé, 89, e Ida Marina da Silva, 82, moradoras mais antigas da rua do Quilombo, nunca mais viram a água cristalina que descia pela vertente oeste do morro da Lagoa da Conceição. Matriarcas das duas últimas famílias das tradicionais lavadeiras do Itacorubi, elas também são testemunhas da degradação ambiental causada pelo crescimento desordenado e falta de saneamento básico no bairro.

“Está tudo contaminado, muitas pessoas despejam esgoto e jogam entulhos. Nosso rio está morto”, lamenta Geraldina, sem saber que o assoreamento do leito do Itacorubi é consequência dos desmatamentos da mata ciliar e ocupação desordenada. “Antigamente, era largo, tinha peixe pulando. Agora, é só um fiapo de água”, completa a lavadeira.

Aposentada e com as dores dos 70 anos de trabalho, Geraldina apenas observa o trabalho das filhas, que lhe herdaram o ofício.  Diariamente, elas mantêm a rotina de enxaguar, bater, quarar, estender, recolher, passar, dobrar e entregar. “Hoje, somos poucas, três ou quatro. Mas, a lavação ainda é o ganha-pão de algumas famílias”, diz a mais velha, Zilda, 61, que adora mexer na água, mas não gosta muito de passar.

“Temos freguesia fixa, pessoas que não abrem mão da roupa lavada e passada a mão como antigamente”, conta Zilda, que conta com quatro clientes fixos e alguns eventuais – o preço para os mensalistas varia entre R$ 100 e R$ 300. No caso dela, são quatro entregas por mês. “Os clientes trazem a as roupas sujas na segunda, e na sexta vêm buscar limpas”, explica.

Hoje, o trabalho é feito quase todo com máquinas centrífugas, mas o velho tanque ainda não foi desativado. No quintal de casa, as lavadeiras cultivam uma área de grama para quarar as roupas brancas, enquanto peças estendidas em varais fixos e móveis produzem dão um tom colorido na paisagem da vizinhança.

Nem sempre foi assim. Da janela da singela casa de madeira, azul, com jardim bem cuidado, dona Ida fala com saudade do tempo em que as lavadeiras se ajoelhavam em torno dos pequenos lagos, formados pelas pedras do leito do rio para bater trouxas e trouxas de roupas. “Foi um tempo muito bom”, sorri.

Dona Ida lembra com saudade do tempo em que lavava roupa nos lagos. Foto: Fernando Mendes/ND
Dona Ida lembra com saudade do tempo em que lavava roupa nos lagos. Foto: Fernando Mendes/ND
Com extinção, sobram histrórias

O decreto 3.592, de 11 de agosto de 2005, no segundo mandato do ex-prefeito Dario Berger (PMDB) acabou com o que restava da Associação das Lavadeiras do Itacorubi, na rua Amaro Antônio Vieira. Construída na década de 1980, a pequena sede com tanques enfileirados, usado como depósito e local de reunião das mulheres, foi colocado abaixo e o terreno, ao lado do rio, reincorporado ao patrimônio do município. No local foram construídos Posto de Saúde, creche e o Centro de Referência e Educação Complementar.

Na época das lavadeiras da beira do rio, elas usavam sabão de pedra de soda cáustica e anil – corante entre azul e violeta usado para clarear as roupas brancas. Também usavam latões para ferver peças multicoloridas, as mais encardidas, antes de serem novamente enxaguadas.

“Em cada trecho, tinha um grupo de cinco ou seis lavadeiras. Todas trabalhavam juntas, em meio a cantorias e muitas risadas”, lembra Marcília Teixeira Fernandes, 86, que criou 12 filhos e parou de trabalhar há 20 anos, depois do derrame cerebral que a deixou com dificuldades até de caminhar. “Antes de ficar doente tive 22 lavações, todas clientes do Centro”, conta.

Mesmo antes da associação criada em 1986 e extinta em 1995, as lavadeiras do Itacorubi já trabalhavam de forma comunitária. “Como na época não era comum, as mulheres trabalharem fora, era o meio que elas tinham de ajudar o marido”, diz Zilda Geraldina Tomé. Cada uma fazia o próprio preço e tinha quantas clientes fosse possível.C

Profissão herdada de quilombolas é característica da comunidade

Coleta e entrega das roupas eram semanais e coletivas, feitas em caminhões pertencentes a dois comerciantes do bairro, Júlio e Agapito. No Centro, o ponto de encontro era o largo do TAC (Teatro Álvaro de Carvalho). “A gente ia e vinha na carroceria, e o caminhão só voltava depois da última lavadeira chegar de sua caminhada pela cidade ”, conta Marcília.

Herdado por quilombolas refugiados na Ilha após travessia da baía sul em canoas a remo, desde a Enseada do Brito, em Palhoça, o trabalho das lavadeiras do Itacorubi remonta ao período colonial. Desde as primeiras ocupações da encosta, na época dos antigos ferros de passar aquecidos a brasa, muita coisa mudou no bairro.

Os quilombos se juntaram, a comunidade cresceu inicialmente com migrantes de outras regiões da própria cidade e de municípios vizinhos. A partir de 1976, os 25.640m², cortados por cachoeiras que formam também os riachos Sertão e Valagão, foram ocupados por famílias vindas das regiões Oeste e Planalto de Santa Catarina. Mais tarde, vieram também gaúchos e paranaenses.

A parcela mais carente da população se concentra na parte alta do morro, na comunidade do Quilombo, onde a falta de saneamento básico é marca característica da ausência do poder público. Das 90 famílias cadastradas inicialmente pela prefeitura em 1976, 16 anos depois já eram 360, de acordo com levantamento feito na época pelo Ipuf (Instituto de Planejamento urbano de Florianópolis).

Na parte baixa, no caminho para a Lagoa da Conceição e praias do Leste da Ilha, funcionam estatais do setor agropecuário e o campus da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina). Prédios residenciais se destacam na área mais tradicional do bairro, que no Censo de 2010 estava com pouco mais de 5.000 habitantes.

Conheça o bairro

Curiosidades e história

O bairro foi criado oficialmente pela Lei 5.504, de 21 de julho de 1999. A origem do nome é controversa entre pesquisadores.

Segundo Lia Dornelles, Itacorubi é a pronúncia aportuguesada de Itakuru-í, espécie de pássaro abundante na região no passado.

Ana Lúcia Freire, com base no Dicionário Tupi Moderno defende que Itacorubi significa “rio de pedras esparsas”.

José Boiteux, por outro lado, defendeu n o Dicionário Histórico e Geográfico de Santa Catarina que o nome original da localidade era Itacolomy – “menino de pedra”.

Localização: região central de Florianópolis, entre os bairros Santa Mônica, Córrego Grande, João Paulo Trindade.

Considerado o maior mangue urbano do mundo, provavelmente o manguezal mais atingido pela influência do homem na Ilha.

 

Comments (2)

  1. Gostei muito da reportagem, cresci nesse Bairro e vi de perto todo o progresso e crescimento desordenado que aconteceu nos últimos 5 anos. Hoje vejo o rio que cheguei a tomar banho, subia rio a cima e brincava de pescar sendo destruído por pelo crescimento urbano. É uma pena tal destruição.

  2. Conheci a lavanderia comunitária, passava sempre ao lado dela para ir a casa de minha mãe que mora no Quilombo. Muito bom e educativo texto.
    Parabéns

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.