Todos, uns, alguns, ninguém, outros e a violência gramatical do Estado nas manifestações populares

esquerda1Por Eustáquio José, em Conversas de Esquerda

A política no Brasil agora se tornou questão gramatical. A afirmação tem um motivo de ser: o que nós vemos, quando o assunto são manifestações – desde as manifestações de junho de 2013 para cá -, é uma tentativa de caracterizar pejorativamente ou de menosprezar a situação de quem protesta chamando-os pelo nome de “vândalos”. Mais uma vez isso acontece nesses últimos protestos contra a Copa do Mundo desse ano, em várias capitais há dois dias atrás (conferir link aqui). Para responder a simples constatação de que pessoas foram vítimas da truculência desmedida da polícia, orientada pela violência instituída e jurídica do Estado, alguns defensores do governo identificam “mascarados”, “vândalos”, arruaceiros”, pessoas violentas que entram nos protestos e acabam criando o clima de “guerra civil” e justificam a reação (sempre é reação) da polícia, braço legalizado do Estado, perante a população.

Esses “vândalos”, entretanto, não possuem identidade, não precisam possui-la. Esses “vândalos” são alguns, elementos, indivíduos, e são sempre diluídos nessa impessoalidade, nessa condição de anonimato que os colocaria na clandestinidade. Uma vez clandestinos, esses jovens ou adultos passam a cair no artigo constitucional de que todos têm direito de se manifestar livremente, porém só é vedado o anonimato. São, portanto, ilegais, anti-legais, são os fora da força da lei, os que precisam ser violentados em nome da ordem. Aí entra em cena justamente o aparato, ou o aparelho, para ser mais próximo do que disse o pensador francês Louis Althusser, que faz com que esses  exemplos de “ninguém” possam ser canalizados, mortos, presos e depois voltem à normalidade imposta.

Atentem, amigas e amigos, que muitos dos que se colocam de máscaras, de vendas, de bonés e escondem a sua identidade estão, na verdade, fugindo da imensa violência estatal, pois sabem que serão facilmente identificados e enquadrados. Na verdade eles assumem outra identidade e não fogem de ter alguma. São manifestantes, todos aqueles que querem mudança e que não aceitam as coisas como estão. Pela escolha frágil do anonimato convencional, essas pessoas estão sujeitos ao império de serem uns, isto é, outros que permitem que qualquer pessoa realmente que cometa crimes, que sirva a interesses contrários aos vários manifestantes de parecerem também serem manifestantes. Isso foi no Junho de 2013 e sempre será visto porque essas pessoas procedem para manter o circo e para abrir caminho para que muitos estejam criminalizando e pondo notícias de que toda a manifestação é brutal, é estúpida e põe em risco a segurança de outras pessoas, dos outros. 

A linguagem é propositalmente dúbia, vaga, turva. A linguagem se serve de pronomes indefinidos, expressões ou locuções impessoais, de advérbios e outras classes gramaticais que estão de mãos dadas com a relatividade, com a contingencialidade e com a maneira oblíqua de tratar as coisas. Não são vistos nomes. Não são necessários nomes. Mas é necessário que se relacione o protestante com o arruaceiro, esses adjetivos precisam estar inseparados e trabalhando para que todos estejam entendendo que o Estado quer o bem e está aberto ao diálogo, desde que nós, ah nós, não tenhamos como questionar seus métodos e suas ideias.

O Estado se serve dessas manobras para criminalizar toda a manifestação popular que ponha em risco a sua proposta já definida de coisas. Não tem segredo: se você apoia o governo, as suas ações, é legítimo, se não apoia, como vários colunistas e jornalistas disseram, não é patriota e está contra o país. É uma reedição do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mais branda é verdade, mas algo que se põe nesse sentido. Caso se tenha uma crítica direta a algo que anda acontecendo nas ruas logo surgirão pessoas a dizer: “mas e aquele cidadão X?”. O cidadão X é justamente o elo de infiltração, de generalização necessário para descredenciar toda a manifestação. A ação de X faz com que Y, Z, W, K, L, M, A estejam todos errados e sejam comparáveis a X. O ato é simbólico, mas serve para que nós possamos ver bem que tipo de palanque o Estado constrói para si. Nele, amigas e amigos, nós não somos “nós”, mas aqueles que apoiam ou não existem perante este.

Não se iludam. A linguagem totalmente vaga é a mesma que você no noticiário e nos grandes sites de divulgação e reprodução dos interesses da minoria, porém a mais forte e economicamente ditadora das regras, que chamamos de elite. Para essa elite pouco importa o nome e o adjetivo que caracterize o indivíduo, estes devem sumir para que se tenha no lugar o “anônimo” inconstitucional, não identificável, não possuidor dos direitos da cidadania, o marginal, o perigoso e o inconsequente que quer por em risco todos os outros numa motivação egoísta e seleta de tão poucos. Aqui está o nó que faz com que tudo pareça uma goma de mascar jogada no chão, imprestável e que atrapalha quem quer trafegar. Manifestantes atrapalham a vida pública e a segurança nacional, por isso devem ser tirados do caminho sem precisar que se identifique ou que se distinga quem é vândalo de quem seja apenas manifestantes; todos esses precisam sumir.

Diante dessa lógica se movimenta o Estado em sua violência e só sobram nos jornais e manchetes uma coisa: a ideia de que é preciso seguir rumo ao progresso custe o que custar. Pão e circo sem etiqueta nem prazo de validade.

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