Após devastação causada por represa no Nordeste, famílias são reassentadas

Por Mario Osava,  da IPS/Envolverde, na Página do MST

Valdenor de Melo espera há 27 anos a terra e a indenização monetária que lhe cabem porque sua antiga propriedade ficou debaixo da água da represa da hidrelétrica de Itaparica, no rio São Francisco, no nordeste do país.

“Vou receber, tenho fé”, assegurou à IPS, embora ache que antes se aposentará como agricultor. Aos 60 anos, ao menos tem uma sólida casa de alvenaria, na aldeia rural de residências semelhantes, onde vive com parte de sua família.

A família Melo é uma das 10.500 deslocadas, segundo dados oficiais, pelas águas represadas para gerar eletricidade a partir de 1988, com capacidade para 1.480 megawatts (MW).

Mas o número real de deslocados é quase o dobro. São cerca de 80 mil pessoas, afirma o antropólogo norte-americano Russell Parry Scott em seu livro Negociações e Resistências Persistentes, baseado em estudos do Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Pernambuco, onde é professor.

A longeva esperança de Melo se baseia no processo iniciado com a construção da represa de 828 quilômetros quadrados, cujas águas engoliram quatro cidades e campos ribeirinhos ao longo de 150 quilômetros, na fronteira dos Estados da Bahia e de Pernambuco. Ao contrário das outras hidrelétricas brasileiras, a de Itaparica gerou uma mobilização organizada e de sucesso por parte dos camponeses afetados.

Sindicatos de 13 municípios vizinhos uniram-se no Polo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco e promoveram uma série de protestos desde o início da construção, em 1979.

As concentrações reuniram até cinco mil manifestantes, ocuparam cidades que seriam inundadas, sedes da construtora, estradas e canteiros da obra por várias vezes, em alguns casos por vários dias, enfrentando uma dura repressão policial.

Após batalhar sete anos, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, abastecedora da região nordestina e com 15 centrais, se rendeu e assinou o Acordo de 1986, para reassentar as famílias camponesas, indenizá-las por bens afetados e pagar-lhes uma quantia mensal até sua primeira colheita nas novas terras.

Também acertou-se que o reassentamento de 6.187 famílias rurais compreenderia terras de até seis hectares irrigadas e outra área mais extensa e seca para cada uma. O tamanho variava segundo a força de trabalho familiar e o valor das mulheres conta 60% do referente aos homens.

O Polo Sindical participou da elaboração do plano de reassentamento e continuou com sua pressão sobre a empresa e o governo diante dos atrasos no programa. A vitória camponesa foi favorecida pelo processo de redemocratização no Brasil, que em 1985 pôs fim à ditadura militar instalada 21 anos antes e que empoderou os movimentos sociais.

A tenacidade dos camponeses se alimentou da experiência. Buscavam impedir a repetição dos atropelos da década anterior, quando milhares de cidadãos foram expulsos de suas terras e cidades, com minguadas indenizações, para dar lugar a outras centrais na mesma bacia do São Francisco.

As famílias rurais que optaram pelo reassentamento – 85% das deslocadas, segundo Scott – foram alojadas em 126 agrovilas dispersas por vários municípios, cada uma com 50 famílias, em média.

“Conseguimos assentar uma parte, mas muitos partiram, não acreditavam em nosso movimento, preferiram a indenização” e se somaram às periferias pobres das cidades, contou à IPS o coordenador geral do Polo Sindical, Adimilson Nunis.

As agrovilas foram construídas com a infraestrutura necessária, escolas, sedes administrativas, fornecimento de energia e água, acrescentou.

Os povoados foram localizados ao redor dos chamados perímetros de irrigação, onde cada família ganhou terra mais produtiva. Mas a morosidade na implantação dos 12 perímetros desgastou a conquista sindical. As plantações irrigadas só puderam começar em 1993, quatro anos depois do previsto, e em apenas três perímetros. Outros seis começaram nos cinco anos seguintes.

A família Melo teve a má sorte de ser reassentada no Projeto Jusante (águas abaixo), no município de Glória, um dos três ainda “em construção”. A maioria de seus vizinhos desistiu.

“Na agrovila 5 só ficou uma família e na de número 9 outras três”, à espera da área irrigada, explicou Maria de Fátima Melo, filha de Valdenor, que espera continuar a vocação agrícola paterna. Contudo, por via das dúvidas, se tornou funcionária municipal como enfermeira, contou à IPS.

Os nove projetos operacionais desde a década de 1990 beneficiam com maiores rendas e avanços tecnológicos 4.910 famílias, segundo a Companhia de Desenvolvimento das Bacias do São Francisco e Parnaíba, encarregada da gestão dos sistemas de irrigação e da assistência técnica.

A cidade de Glória se converteu em um polo produtor de melancias e para isso contribuiu o projeto implantado em 1993, com 123 famílias assentadas em três agrovilas e um centro experimental, disse à IPS o agricultor Dorgival Araujo Melo, vereador pelo Partido Verde.

“A irrigação é a solução para o Nordeste, mas com tecnologias que economizem água”, para adequação ao clima semiárido da região, opinou o vereador. Seu orgulho é ter conseguido, em seu perímetro, substituir a irrigação de aspersão, que desperdiça água, pelo gotejamento, sistema de tubulações com buracos apenas onde é preciso molhar.

“A vida melhorou com a casa nova, a escola perto e a terra irrigada”, mas era melhor viver sem vizinhos próximos, com um quintal “onde criar cabras e galinhas” e plantar hortaliças, disse Ana de Souza Xavier, enquanto seu marido não gosta do isolamento rural.

O casal, com três filhos já independentes e curso superior, foi assentado em uma agrovila perto de Petrolândia, cidade construída para substituir outra inundada pela represa.

Com três hectares irrigados e 22 secos em produção há 20 anos, a família prosperou cultivando coco. “Antes, sofríamos com o fracasso da plantação de feijão e melancia”, disse à IPS o marido de Ana, Oswaldo Xavier.

A experiência da hidrelétrica de Itaparica, com cerca de 20 mil hectares irrigados em mãos de agricultores familiares, promove uma opção de desenvolvimento agrícola distinta da escolhida pela companhia elétrica.

Esta prioriza a grande produção, inclusive para exportação, exigindo grandes investimentos e tecnologias inacessíveis aos pequenos produtores.

Mas é difícil que Itaparica inspire soluções semelhantes para conflitos gerados por outros megaprojetos atuais, como a polêmica hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia.

O custo de seu programa de reassentamento rural somava, em 2010, o equivalente a 85% do total investido para construir a central e chegou a 100% em 2014, segundo um documento do Tribunal de Contas da União. Assentar cada família de Itaparica custou quatro vezes mais do que em outros projetos públicos de irrigação, acrescenta o informe.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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