RS – Carta aos Cidadãos de Vicente Dutra

Foto de Diogo Zanatta, em Zero Hora de 22/11/2013.
Foto de Diogo Zanatta, no Zero Hora de 22/11/2013, sobre os incidentes da véspera em Vicente Dutra.

Nota: esta carta aberta foi escrita a partir dos incidentes que vêm acontecendo especificamente em Vicente Dutra, mas bem poderia, como escreve seu autor, se referir a outras cidades do centro-oeste. Ou da Bahia, atualmente. Ela é acima de tudo, um chamado à “coerência”, como ele diz, envolvendo ainda o término da violência, do racismo, e o respeito aos direitos dos povos indígenas. Uma iniciativa louvável, que endossamos publicando-a. TP.

Por Jeferson Mendes*

De início quero me solidarizar com as famílias atingidas pela grande crise que se instalou na sua cidade. Conheço-os todos, sei dos esforços que fazem para sustentar suas famílias e sei que paira uma onda de violência e racismo nas redes sociais do “Prado”, que estimulam novos confrontos. Quero fazer um chamado à coerência.

Tenho acompanhado através da imprensa e das redes sociais os últimos acontecimentos e tenho percebido que uma onda de racismo e discriminação se instalou entre vocês. Todos sabemos que esse conflito foi “armado” por pessoas brancas que passaram, no decorrer do ano, a incentivar essa situação.

Sabemos que foi proibida a entrada de indígenas nas Águas, que estão impedidos de jogar futebol no campo, que sofrem ameaças diárias, não foram convidados para o desfile cívico de 07 de setembro etc, etc. Sabemos que desde a origem deste empreendimento que há denúncias e problemas que teimam em se repetir.

Além disso, existem denúncias de recursos enviados pela União que não chegam até os indígenas. Sabemos que, na época dos estudos da FUNAI, pessoas influentes e diretamente relacionadas, que almejavam os recursos das indenizações e que erroneamente acreditavam que tudo seria indenizado, não buscaram negociar, reivindicar, nem acordar nada.

Sabemos que o início do conflito foi devido ao fato de existir orientação de impedir o acesso dos indígenas ao balneário: isso é crime de racismo, não se pode impedir o acesso de alguém a algo por seu pertencimento étnico-racial.

Sabemos que os indígenas obedeceram e iam se retirar e que aí, ao se retirarem, ocorreu o acidente, que foi inflamado por outros até que um advogado da cidade atirou nos indígenas e então ocorreu o revide.

Sabemos que existem vítimas do lado indígena e que estes nem para o Hospital da cidade podem recorrer, pois pelas redes sociais cidadãos têm incentivado até mesmo o envenenamento da alimentação dos indígenas.

Sabemos que muitos de vocês possuem parentes no MT, MS e GO – aonde travam uma verdadeira GUERRA CIVIL contra os indígenas e que estes têm incentivando-os ao racismo e à violência. Sabemos que usam a desculpa do “desenvolvimento” e do “trabalho” para justificar suas atrocidades como se suas ganâncias desmedidas pudessem ser classificadas assim; como se seus lucros ao produzir produtos primários para exportação significasse alimentos para o povo. Lucros produzidos sob veneno, destruição ambiental e assassínio indígena.

Sabemos que lá os indígenas estão longe, no sertão, ao contrário de Vicente Dutra, onde estão dentro da cidade, são colegas de colégio e de faculdade de seus filhos e estão cercados de outras reservas repletas de guerreiros nas cidades da região.

Sabemos que políticos ligados ao latifúndio e ao agro business estão tentando sublevá-los contra os indígenas envolvendo-os num conflito estranho à comunidade vicentina. Sabemos que eles não ficarão ai se o conflito se acirrar. Serão vocês e seus filhos que terão de se proteger, de interromper a vida normal, que podem ser mortos e feridos.

Sabemos que os indígenas reivindicam a aplicação do ART. 32 da CE89, que reconhece os erros do Estado nessa questão e que estabelece reassentamento aos colonos que foram jogados pelo governo nessa situação. Sabemos que em suas faixas e declarações reivindicam que o Estado indenize os pequenos agricultores. Sabemos que eles nunca impediram o funcionamento do balneário e nunca quiseram para si esse empreendimento.

Sabemos também que os kaingangs estão mobilizados para guerra; aliás, guerreiros formidáveis, nunca foram inteiramente subjugados. Ao contrário, na época da colonização do planalto do médio alto Uruguai, espalhando um mar de sangue pela região, forçaram os governos a aceitar suas condições e até hoje mantêm as reservas que os caciques Braga, Nonoai e Doble, verdadeiros generais e estadistas de seu povo, arrancaram dos governos imperiais e após, republicanos.

Sabemos que esse nobre povo conta com recursos humanos e financeiros, que sua psicologia guerreira considera essas razias como integrantes de seu modo de ser. Apesar de toda a tecnologia, apesar das roupas etc. permanecem os mesmo guerreiros para os quais a morte em combate é algo almejado, motivo de honras e realização pessoal.

Creio que a irresponsabilidade das pessoas que originaram tudo isso está patente a todos. Não acredito que os cidadãos desta cidade concordem com as consequências de suas violências e faço um chamado à realidade: cada ameaça de morte no facebook, cada ofensa publicada na internet, cada fofoca, está sendo vista pelo mundo, pelas autoridades e pelos próprios indígenas, incentivando mais violência.

Terminem com as segregações, aceitem eles, estabeleçam pontes, punam os reais culpados desse conflito, punam aqueles que usam a ganância para enganar os demais, contem a verdade, restabeleçam a confiança, parem de incentivar novos conflitos. Se não agirem assim a guerra ficará instalada dentro de suas casas, e os seus filhos – assim como os indígenas – é que irão tombar.

*Jeferson Mendes é atualmente morador em Porto Alegre.

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