Os tratores, a guavira e a iminência do fim do mundo

Guavira
Guavira

Oiara Bonilla, Amazônia Real

Ontem, dia 25 de novembro, comemorou-se o aniversário da morte de Marçal de Souza Tupã´i, liderança guarani, assassinada por fazendeiros há exatos 30 anos, assim como de outras lideranças importantes também mortas em novembro, como Nísio Gomes (2011), Genivaldo e Rolindo Vera (2009).

Na semana passada, todos devem ter assistido àquelas imagens onde se viam ameaças de morte explícitas sendo proferidas por uma senhora, aliada de fazendeiros que estavam ocupando a sede da Fundação Nacional do Índio em Campo Grande (MS).

Resolvi então sair um pouco do contexto amazônico para dar uma volta pelo cerrado sul-matogrossense e contar uma história, ou melhor, recontar uma história que me foi relatada há pouco tempo por uma jovem rezadora kaiowá.

Na noite anterior, uma forte tempestade havia castigado a aldeia. Ela então me explicou que o mundo estava para acabar e me contou como ele havia sido criado muito tempo atrás.

Os irmãos Sol e Lua, Pai Kwara e Jacy, gêmeos desiguais, e em constante disputa, após livrar-se das onças que assassinaram sua mãe, resolvem criar este mundo, o mundo tal como o conhecemos hoje. Após criar a humanidade, uma das primeiras coisas que Sol e Lua criam, é o fogo. Eles logo o entregam para os rezadores que passam a ser os responsáveis pela vida da humanidade na terra, pela manutenção do mundo. O fogo, sempre aceso dentro das casas kaiowá, é até hoje o que reúne a família, o que a mantém unida, a protege das intempéries, permite o preparo dos alimentos, garantindo o sustento e o bem estar de todos.

O tempo passa e os dois irmãos continuam sua frenética atividade criadoura. Assopram em humanos para criar os animais. Assoprando, vão formando os caminhos, os rios, as árvores, as frutas comestíveis. Assopram em uma folha e criam a guavira, frutinha do cerrado que, até uns anos atrás, florescia em todos os cantos: caminhos, campos, florestas sul-matogrossenses, alegrando os meses de primavera (novembro, principalmente).

E assim foi tomando forma o mundo que conhecemos: vasto, diverso e povoado por uma multiplicidade de seres. Entre estes seres, o branco e índio nascem. São irmãos. Mas o índio, primogênito, sai perdendo. Seus dentes e suas armas são mais fracas que as dos brancos, sua tecnologia é rudimentar e o dinheiro, quando cai em suas mãos, não rende nada.

Mas o Sol, nessa repartição de atribuições, deu mais força ao índio, força física, e a responsabilidade espiritual pela manutenção do mundo. O índio, irmão mais velho do branco, é responsável por ele, pois este, apesar de favorecido, é irresponsável e inconsequente.

O mundo de hoje está chegando ao fim. As violentas tempestades que o assolam são prova indiscutível disso. Vai chegar o dia em que as poderosas rezas guarani e kaiowá não conseguirão mais conter a ira do Sol, e ele queimará o mundo: as plantas, os plantios, as florestas. Os rios secarão, os peixes morrerão. Tudo queimará quando Pai Kwara, o Sol, mostrar a sua potência. O fogo se tornará destruição.

O Sol está furioso e cansado da inconsequência dos humanos e principalmente dos brancos. Mas não só porque os brancos confiscaram as terras dos índios. Ele está furioso também porque os brancos, com seus tratores, estão acabando com os pés de guavira. Os fazendeiros estão arrancando os pés de guavira de suas propriedades, para evitar que os Guarani e Kaiowá, atravessem “suas” terras para colher as frutas.

A guavira é a fruta das crianças. Quando os arbustos estão carregados, crianças e adultos se juntam em torno dela, catando e comendo frutas. As crianças, a comensalidade e a alegria são a garantia do futuro e do bem viver da humanidade. Assim como o fogo doméstico, a guavira reúne e alegra. Proibir as crianças de guavira é frustrar a infância. Frustrar a criança, assim como arrancar a terra do índio e, assim, apagar os fogos domésticos é decretar o fim da humanidade, se é que ela já não acabou.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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