Justiça rechaça censura à divulgação de fiscalizações por trabalho escravo, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

O juiz Miguel Ferrari Júnior, titular da 43a Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, indeferiu o pedido da empresa Pinuscam – Indústria e Comércio de Madeira Ltda para que fosse censurada informação sobre uma ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho divulgada pela Repórter Brasil. A operação resultou no resgate de 15 trabalhadores de condições análogas às de escravo, em Tunas do Paraná (PR), em 2012. A sentença confirma a decisão liminar, emitida em outubro deste ano, negando a censura.

“O acolhimento do pedido formulado pela autora implicaria inexorável cerceamento de direito fundamental à liberdade de informação jornalística”, afirma Ferrari Júnior em sua sentença, emitida nesta segunda (18). De acordo com o juiz apenas foi prestada “informação verdadeira”, ou seja, que a autora da ação foi “fiscalizada pelos órgãos federais responsáveis pela erradicação do trabalho escravo”.

O caso repercutiu fortemente entre jornalistas e entidades ligadas à defesa da liberdade de expressão, sendo divulgada por veículos de comunicação de todo o país no início de outubro quando a Justiça concedeu uma liminar à empresa, obrigando a Repórter Brasil a retirar a informação sob pena de multa diária de R$ 2 mil.

Na época, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) condenou, em nota pública, a proibição, afirmando que “a censura togada no país atenta contra o interesse público e priva a sociedade do direito à informação”. A decisão liminar foi revogada dias depois, quando o juiz reavaliou a decisão em meio à repercussão.

liminar, revogando a decisão, afirmou que “impossível se mostra a imposição de decisão obstativa da divulgação de fatos de interesse público, sob pena de ofensa aos mais comezinhos postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito, nomeadamente aqueles insculpidos no inciso XIV do artigo 5º e artigo 220 da Constituição Federal”. A Repórter Brasil foi representada por Eloísa Machado e Marcela Vieira, advogadas do Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (Cadhu).

Dados sobre ações de fiscalizações e resgates não apenas de trabalho análogo ao de escravo, mas de trabalho infantil, entre outras realizadas pelo governo brasileiro são de caráter público e acessíveis a qualquer cidadão ou jornalista. Impedir a divulgação dos resultados dessas operações é cercear a sociedade de informações de interesse público que têm sido veiculadas cotidianamente por sites, TVs, rádios, jornais e revistas. E, portanto, dificultar o combate a esses problema.

Creio que falo por colegas jornalistas que trabalham nos mais diferentes veículos de comunicação, com as mais diversas visões de mundo: estamos vivendo um momento de preocupante ataque à liberdade de expressão por empresas e governos que tentam inviabilizar a divulgação de informações de interesse público com a imposição de processos judiciais. Alguns pedem censura. Outros, indenizações milionárias. Por fragilidade nos argumentos e pela falta de provas, boa parte desses processos serão arquivados ou derrotados em algum momento. Contudo, esse redemunho gera uma canseira. Quantas vezes já ouvi colegas afirmarem que evitam determinadas pautas pelo transtorno que elas causam? Sem contar que, muitas vezes, mesmo estando certo, você perde. Lúcio Flávio Pinto e o seu Jornal Pessoal, no Pará, que o diga.

E isso atinge a todos, direita, esquerda, centro, blogs independentes, grandes jornais. Eu, você.

Jornalistas erram, claro. E nem todos atuam com boa fé. É  direito de quem se sentiu lesado injustamente reclamar. Mas existe um mundo de distância entre isso e ações que claramente contam com o objetivo de demover o jornalista ou seu veículo de comunicação de trazerem à tona informações que o poder político ou econômico querem manter em segredo.

Gosto quando dizem que a principal função do jornalismo é atormentar o poder – por mais difícil que isso seja na prática. Fazer contrapeso à posição hegemônica não apenas nas esferas política e econômica, mas em todas as que fazem parte de nossa vida cotidiana – cultural, social, ambiental… Claro que jornalismo pode e é usado largamente para reforçar interesses dos vencedores. É quando, inclusive, ele é mais fértil. Mas no momento em que questiona esses mesmos vencedores é que se torna realmente essencial para a democracia. Ou seja, jornalismo útil é aquele que vai na contramão.

O juiz Miguel Ferrari Júnior cita o jurista José Afonso da Silva em sua sentença ao tratar do respeito à liberdade de informação jornalística. Nesse momento, vale a pena ser lido. Não apenas por nós que, não raro, nos esquecemos disso, soterrados pelo nosso fordismo  do dia a dia. Mas por políticos e empresários que precisam que não gostam de viver em democracia.

“É nesta que se centra a liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de ser informado. Por isso é que a ordem jurídica lhe confere um regime específico, que lhe garanta a atuação e lhe coíba os abusos. A propósito da liberdade de imprensa, cabe recordar estas palavras de Marx: “A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria.”

De acordo com a sentença, a empresa terá que arcar com os custos processuais e honorários advocatícios. Cabe recurso.

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