Escravidão e Ditadura: por mais Comissões da Verdade

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A reescrita histórica da Escravidão e da Ditadura e suas indenizações estão dentro de um mesmo movimento, mas a dinâmica social brasileira produz uma diferença racial típica no tratamento destes crimes. Até mesmo setores progressistas da sociedade parecem não estar muito atentos a esta dinâmica. Não percebem, por exemplo, que a Polícia Militar mata mais hoje do que durante a Ditadura: mortos que tem classe e cor específica. Estes crimes, cometidos pelo estado, também são políticos e são repetição não apenas dos crimes da Ditadura, mas já dos crimes contra a humanidade da Escravidão. O pau-de-arara da UPP no Rio de Janeiro é descendente daquele do DOI-CODI que é, por sua vez, descendente direto daquele da senzala”.

“Navio negreiro navegou, matou pela cor.
Depois da senzala, tortura é na favela,
Hitler morreu, mas tô no gueto, judeu da nova era”.

O homem estragou tudo – Facção Central

Por Tomaz Amorim Izabel* – Negro Belchior

É típica das relações brasileiras, tanto privadas, quanto públicas, a tentativa de solucionar conflitos profundos através de ações e tratados apressados e superficiais. Quando a simples violência não resolve mais, basta a assinatura de um acordo (normalmente em prol da manutenção de algo inexistente, como a “unidade nacional”) que libere de maneira igual todos os envolvidos, culpados e inocentes, sem consideração pelos possíveis efeitos posteriores. Quando se tornaram insustentáveis política e economicamente, a Escravidão e a Ditadura Militar foram terminadas “pacificamente” através de acordos como estes. Há uma diferença, fundamental, no entanto, no tratamento posterior dado a estes momentos, tanto pelos governos, quanto pelos movimentos políticos e sociais.

Enquanto nossa sociedade civil finalmente se organiza para revelar os crimes cometidos pelo estado durante a Ditadura (embora ninguém fale em punição), nada se fala sobre os crimes contra a humanidade cometidos pelo estado durante os mais de trezentos anos de Escravidão dos diversos povos africanos e indígenas no Brasil. No momento em que as diversas Comissões da Verdade fazem a justa crítica à Lei da Anistia, que perdoou tanto os crimes cometidos pelos milicianos que combateram armados a Ditadura, quanto os crimes cometidos pelo próprio estado, resta a pergunta: Quem anistiou o Brasil pelos seus crimes contra os povos indígenas e africanos? Quando esta culpa foi assumida, seus responsáveis apurados, sua crítica feita publicamente, sua história ensinada às crianças, por fim, quando foi que estes crimes impagáveis foram indenizados?

Não cabe opor a indenização das vítimas da Ditadura àquela inexistente aos crimes da Escravidão. Principalmente porque elas fazem parte de um mesmo esforço de reescrita histórica: do ponto de vista da resistência e dos oprimidos em nosso país. É, no entanto, gritante a diferença e a rapidez no tratamento que nossa sociedade dá a estes diferentes crimes O atraso de mais de cem anos na aprovação de uma lei fundamental como a 10639/03 (ensino da história e cultura afro-brasileira e africana) e sua aplicação ainda precária, contrasta com a produção crescente de livros, documentários, filmes e teses sobre o período recente de vinte cinco anos de Ditadura. A justa indenização que recebem torturados e familiares de desaparecidos contrasta com inexistência de qualquer indenização semelhante à população afro-descendente. (Pelo contrário, o que se vê são ataques constantes, inclusive por parte do estado, por exemplo, às comunidades quilombolas, históricos locais de resistência à escravidão). Buscamos uma história coletiva dos oprimidos, mas para escrevê-la em suas minúcias, precisamos perceber que no Brasil há uma diferença gigantesca entre os oprimidos que são pretos e os que são brancos, entre quilombolas e milicianos, entre aqueles que formaram a classe baixa do país e aqueles da classe média e alta.

Theodor Adorno, filósofo judeu-alemão que teve de exilar-se durante a Segunda Guerra e que depois retornou para colaborar na reconstrução da Alemanha, escreve em um texto intitulado “Educação após Auschwitz” um imperativo que deveria também guiar nosso pensamento sobre os grandes crimes contra a humanidade cometidos no Brasil: “O centro de toda educação política deveria ser para que Auschwitz não se repita”. A função da reescrita histórica, das Comissões da Verdade e das indenizações é esta: para que aquela violência passada não continue se repetindo no presente, para que ela não seja mais possível. As discrepâncias apontadas anteriormente entre o tratamento que damos à Escravidão e à Ditadura só são anacrônicas se cairmos no erro de achar que as consequências daquelas violações não reconhecidas e punidas não são mais efetivas no presente. Em outras palavras, que aquela violência de estado não continua se repetindo. As recentes manifestações populares comprovam ambos que o estado ainda reprime com violência grupos que se opõem politicamente e que a repressão à população negra, que via de regra é pobre e periférica, é muito mais violenta e assassina. Duas vítimas de ação semelhantemente arbitrárias da polícia, Giuliana Vallone (jornalista da Folha) e Douglas Rodrigues, receberam respostas públicas bastante diferentes para a mesma pergunta: Por que o senhor atirou em mim?

A reescrita histórica da Escravidão e da Ditadura e suas indenizações estão dentro de um mesmo movimento, mas a dinâmica social brasileira produz uma diferença racial típica no tratamento destes crimes. Até mesmo setores progressistas da sociedade parecem não estar muito atentos a esta dinâmica. Não percebem, por exemplo, que a Polícia Militar mata mais hoje do que durante a Ditadura: mortos que tem classe e cor específica. Estes crimes, cometidos pelo estado, também são políticos e são repetição não apenas dos crimes da Ditadura, mas já dos crimes contra a humanidade da Escravidão. O pau-de-arara da UPP no Rio de Janeiro é descendente daquele do DOI-CODI que é, por sua vez, descendente direto daquele da senzala.

As lutas pela verdade e pela indenização das vítimas e seus descendentes destes momentos históricos distintos do Brasil não são antagônicas ou contraditórias (como quer fazer parecer, por exemplo, o último filme cínico de Sérgio Bianchi, “O jogo das decapitações”), mas complementares. Não basta garantir que se possa protestar na Avenida Paulista, enquanto a periferia continua coagida com armas letais. Não basta apenas mudar o nome do Elevado Costa e Silva se o Palácio continua se chamando “dos Bandeirantes”. Não basta, para dar conta de nossa história de massacres e abusos, apenas uma, mas são necessárias muitas Comissões da Verdade. Por fim, não basta indenizar algumas dezenas de militantes. É necessária uma política ampla de reconhecimento dos crimes contra a humanidade passados, inclusive com pedidos públicos de desculpas (reais e com consequências práticas, não como os da União Européia na África do Sul em 2001) aos povos, países e brasileiros envolvidos, no passado e no presente, e que levem à tentativa de superação dos efeitos destes crimes através de programas sociais voltados aos descendentes destas populações: sejam eles indenizações em dinheiro, cotas em concursos e em universidades.

Cabe aos movimentos sociais compreender a importância, apoiar e exigir a formação de novas comissões. Cabe a atual Comissão da Verdade honrar seu nome e, ao perceber que a história da violação dos direitos humanos pelo estado brasileiro vai além dos crimes cometidos na última ditadura, apontar para a formação de outras comissões que, por sua vez, ajudarão, a cada história recontada, a impedir a repetição desta violência que ameaça permanentemente a todos nós.

*Professor e mestre em Teoria Literária pela Unicamp.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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