Carta das comunidades da Serra do Cipó, atingidas pela criação e pretendida expansão do Parque Nacional, em luta pelos seus direitos

Panorâmica do PARNA Serra do Cipó. Fonte: Wikipédia
Panorâmica da Serra do Cipó. Fonte: Wikipédia

CARTA ABERTA À POPULAÇÃO CIPOENSE, AO ICMBIO E AO MPF

“A memória vem e salva, a memória vem e guarda,
guarda o cheiro da minha terra, a música do meu povo,
a certeza de hoje e sempre que ninguém vai nos tirar.”
(Milton Nascimento)

A Serra do Cipó, no coração de Minas Gerais, é uma região marcada pela alta diversidade biológica e cultural. Situada na porção média da Cadeia do Espinhaço, a Serra é divisor de águas das bacias do Rio São Francisco e Rio Doce. A leste predomina a Mata Atlântica, a oeste o Cerrado, e, nas áreas de maior altitude, os campos rupestres. Foram nestes ambientes que as comunidades da Serra do Cipó construíram sua história, sua cultura e sua memória. O uso múltiplo de uma paisagem tão heterogênea é uma característica marcante dessas comunidades, com os plantios de arroz e feijão nas baixadas, o extrativismo vegetal no cerrado, a criação de gado no alto da Serra e, há cerca de quatro décadas, também era freqüente a extração de sempre-vivas nos campos rupestres. Em séculos de convivência com os ecossistemas locais, as comunidades construíram complexos saberes ecológicos sobre o manejo das espécies e paisagens que garantiram por gerações a perpetuação de seus modos de vida e ambientes.

Todavia, a implantação do Parque Nacional da Serra do Cipó (PNSCi) nos anos de 1970, no auge da ditadura militar, iniciou uma nova etapa na vida das comunidades.  Dezenas de famílias tiveram que, de forma abrupta, deixar suas casas, sua história e suas terras e mudar para outros municípios ou para o distrito de Cardeal Mota. Os diversos relatos feitos durante esse reencontro apontaram a violência física e simbólica que marcou o processo de criação do Parque, sendo que grande parte dos ex-moradores nunca recebeu nenhum tipo de indenização. O que deu início a um processo de dramas sociais vivenciados por estas comunidades que tiveram seus modos de vida profundamente modificados com a criação do PNSCi e a violação de seus direitos.

A hostilidade no trato, o silenciamento de suas memórias e as violências sofridas por essas comunidades, levaram pesquisadores(as) e entidades abaixo assinadas, participantes do Reencontro dos povos e comunidades do Cipó, realizado nos dia 18 e 19 de outubro de 2013, a denunciar as diversas violações dos direitos humanos ocorridas historicamente durante a criação e implantação do PNSCi. Queremos também reafirmar nossa solidariedade à luta dessas comunidades pelo seu direito à memória, exigindo a justa indenização por suas perdas materiais, culturais e sociais, bem como reparação pelos danos morais que tenham sido causados no processo de implementação do PNSCi. Neste sentido, exigimos do ICMBio:

1. Pedido de desculpas feito publicamente às comunidades tradicionais expropriadas de suas terras tradicionalmente ocupadas para implementação do PARNA Serra do Cipó, pelos sérios danos causados a elas;

2. Transparência e facilidade de acesso aos processos de indenização junto aos grupos familiares expropriados, assim como o imediato pagamento dos mesmos;

3. Listar e prestar conta dos bens materiais (utensílios domésticos, móveis, entre outros) pertencentes a estes grupos e que foram extraviados para outros lugares;

4. Transparência e discussão junto às comunidades a serem atingidas e à população cipoense sobre o processo de ampliação do Parque Nacional da Serra do Cipó que está em tramitação sem amplo conhecimento dos mesmos. Exige-se a realização de sociais e culturais que verifiquem a viabilidade dessa ampliação, incluindo consultas públicas e outras formas de oitiva da população local a ser atingida direta e indiretamente. Ressalta-se fortemente que a criação de parques ou ampliação de seus limites deve respeitar a legislação nacional – em especial o SNUC e as Convenções 169 da OIT e da Diversidade Biológica;

5. Exige-se o direito à permanência das famílias tradicionais ainda resistentes na região do Retiro – e não apenas de grupos vulneráveis, como já previsto no Plano de Manejo – respeitando suas formas tradicionais de apropriação e uso do ambiente, garantindo sua reprodução social e segurança alimentar, ameaçadas pelas restrições impostas pelo Parque. Neste sentido, exige-se tão somente o cumprimento da legislação ambiental e territorial que protege a integridade destes povos e sua permanência no território (Constituição Federal, arts. 215 e 216; Convenção 169 da OIT; Convenção sobre a Diversidade Biológica; SNUC; Plano Nacional de Áreas Protegidas; Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, dentre outros, que asseguram a proteção dos direitos e modos de vida de povos tradicionais);

6. Exige-se a paralisação imediata das obras para criação de estacionamento e de nova portaria do Parque, pois estão sobrepostas às terras tradicionalmente ocupadas pelas famílias tradicionais do Retiro, que não foram indenizadas e que não querem deixar seu território e modo de vida construído no lugar.

7. Exige-se que haja respeito e valorização não apenas da biodiversidade do Parna Serra do Cipó, mas da sociodiversidade ali presente, incluindo o respeito e fomento à manutenção de seus modos de vida, que foram responsáveis pela proteção dessa paisagem e desse ecossistema durante gerações e que correm o risco de serem sumariamente extintos por uma visão equivocada e ultrapassada de conservação ambiental.

Assinam esta carta os participantes do Reencontro dos povos e comunidades do Cipó :

  • Moradores do Retiro;
  • expropriados pelo Parque Nacional da Serra do Cipó;
  • Quilombo do Açude;
  • Apanhadores (as) de Flor sempre-viva e Quilombolas atingidos pelo PARNA Sempre Viva-Diamantina;
  • Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA-UNIMONTES);
  • Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA-UFMG);
  • Núcleo de Agroecologia e Campesinato (NAC-UFVJM);
  • Laboratório de Estudos Bioculturais (Fundação Helena Antipoff)
  • e demais participantes presentes.

Santana do Riacho, 19 de outubro de 2013.

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