Marta Azevedo: “Na minha gestão foram sete lideranças Guarani assassinadas”

Marta Azevedo quando tomou posse da presidência da Funai, em abril de 2012
Marta Azevedo quando tomou posse da presidência da Funai, em abril de 2012

Última presidente da Funai, Marta Azevedo deixou o cargo em junho de 2013 por problemas de saúde, enquanto adversários e ruralistas diziam que ela estava sendo derrubada

por Felipe Milanez – CartaCapital

Marta Azevedo é antropóloga, trabalha com demografia e é pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp. Começou sua carreira com os povos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, e trabalhou mais de 10 anos no alto rio Negro, com as organizações Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Instituto Socioambiental (ISA). Marta foi presidenta da Funai entre abril de 2012 e junho de 2013 e saiu por problemas de saúde. Durante esse período final do seu mandato, onde a saúde debilitada provocava ausências em Brasília, os adversários da Funai e ruralistas espalhavam boatos de que Marta estaria sendo derrubada. Notas pipocavam em colunas políticas de jornalões. Ao final, quando ela definitivamente saiu, criou-se uma confusão: seria uma vitória da ala anti-indígena do governo, aliada aos ruralistas, ou seriam problemas de saúde. Fiz a pergunta a Marta: “Só na minha gestão foram sete lideranças Guarani assassinadas por causa do conflito de terras! E isso sim me deixou doente! Como pode isso num governo democrático?”

Na entrevista abaixo, a primeira que Marta Azevedo concede desde que deixou a Funai, ela faz uma reflexão sobre a atual crise da questão indígena. Entre os dias 30 de setembro e 5 de outubro ocorre a Mobilização Nacional Indígena, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Os povos indígenas protestam contra medidas legislativas e do governo que visam um retrocesso de seus direitos, como a PEC 215, o PLP 227, a Portaria 303 da AGU, e também pela demarcação de terras. Marta critica o desenvolvimentismo e o racismo praticado contra os povos indígenas no Brasil. “Tudo o que não se conhece, ou que não nos é familiar, atacamos… são ainda os instintos bárbaros que existem em nossa civilização.” Durante a sua gestão foram assassinados por pistoleiros, entre outras lideranças, o pajé Kaiowa Nísio Gomes, e pela Polícia Federal foram assassinados Adenilson Munduruku e Oziel Terena.

CartaCapital: O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?

Marta Azevedo: O que está acontecendo hoje é o que sempre aconteceu desde o século XVI, ou seja, continuam os ataques aos povos indígenas, tão fortes e ferrenhos como algumas épocas onde o não indígena que supostamente se diz dono do nosso país avança supostamente em direção ao “progresso”, à civilização, ao desenvolvimento. Tudo a mesma coisa, tudo contra os povos indígenas. O que acontece atualmente, desde esse novo surto de desenvolvimentismo, onde nada é novo, ou seja, onde se quer explorar até o esgotamento, os recursos naturais do nossa parte do planeta, é que justamente alguns povos indígenas estão em terras que possuem esses recursos naturais.

Aqui, e em outras partes do mundo, as leis não “pegam”, essa foi nossa ilusão, de quem militava a favor dos povos indígenas juntamente com o próprio movimento indígena. A ilusão foi achar que bastava elaborar leis que fossem favoráveis a esses povos. Na época da Constituição Federal de 1988, todo o movimento indígena esteve mobilizado e acharam que com isso estariam mais tranquilos. Foram convencidos de que demarcar extensões de terra lhes garantiriam um futuro digno, com acesso aos serviços de educação e saúde. Porém, a priorização da demarcação das terras na Amazônia Legal a partir da Eco92, com recursos do projeto PPTAL, fizeram com que regiões inteiras, como o Mato Grosso do Sul, estados do Nordeste e também do Sul, ficassem sem recursos para os processos de demarcação, que ficaram então atrasadíssimos.

Hoje em dia cerca de 20% da população dos povos indígenas vivem em terras ainda não demarcadas, em áreas rurais (não estou contabilizando a população dos povos indígenas que vivem em áreas urbanas). É uma estimativa, mas dá uma ideia para nós de quanto ainda falta demarcar. Essa população está vivendo em diferentes regiões do Brasil, mas a maior parte está efetivamente no MS e no Nordeste.

Esses ataques não são somente aos direitos dos povos indígenas, mas atingem diretamente aos povos indígenas. Morre em média uma liderança indígena por mês devido aos conflitos pela terra no Brasil. Isso é uma vergonha. Os ataques aos direitos vêem de interesses econômicos desenvolvimentistas, na minha opinião, equivocados.

O Brasil é o primeiro país do mundo em biodiversidade e o segundo do mundo em sociodiversidade. É nisso que deveríamos estar investindo, em pesquisas sobre a nossa rica biodiversidade, que não existe sem a sociodiversidade. Ou seja, bio e sócio diversidade estão relacionadas, e isso já está mais do que comprovado em pesquisas acadêmicas. No Brasil, o IBGE contabilizou 305 povos indígenas no último censo de 2010, enquanto que na República Democrática do Congo, por exemplo, são 250 povos e na Indonésia são 800 povos. Ou seja, esses países semelhantes ao Brasil enquanto possuidores de riquezas naturais e sociais são os países megasociobiodiversos, e deveriam ser exemplos de outros modelos de desenvolvimento, e não matrizes de repetição de modelos ultrapassados em termos de relações sociais e de qualidade de vida baseada no consumismo desenfreado e insustentável.

Outro diferencial que existe atualmente com relação a crises anteriores – desde sempre, mas permanece como uma atualidade – é a enorme ignorância sobre os povos indígenas. Eu costumo dizer que no Brasil a instituição mais democratizada, mais bem distribuída, é a ignorância sobre os povos indígenas que fazem parte de nosso população. Parte-se do pressuposto de que são povos “simples”, ignorantes, atrasados, restos de um suposto passado da humanidade. Uma lástima, desconhecer a extrema sofisticação dos sistemas agrícolas e de pesca, só para citar um exemplo, desses povos, que conseguem alimentar toda sua população e ainda manter as florestas e cerrado existindo. Ou seja, a sofisticação de pensamento e de sistemas econômicos desses povos é enorme, muito maior e mais complexa do que os nossos, e isso vai sendo desrespeitado e desconhecido e desvalorizado por nós não-índígenas. O Brasil possui tipos variados de mandioca, de milho, de outras raízes, de plantas medicinais, etc., e tudo isso vai se acabando porque ignoramos os conhecimentos desses povos e suas maneiras de viver.

Tudo o que não se conhece, ou que não nos é familiar, atacamos… são ainda os instintos bárbaros que existem em nossa civilização.

CC: Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?

MA: A PEC 215 propõe retirar do executivo federal o processo de demarcação das terras indígenas, como se isso fosse resolver todos os “empecilhos” que esses povos representam para esse modelo de desenvolvimento exploratório que se baseia na suposição de que as commodities ainda vão valer muito nos próximos 30 ou 40 anos.

Pode até ser que devemos seguir explorando nossos recursos naturais, mas deveríamos fazer isso pensando nas gerações futuras, pensando que as gerações que vão nascer nos anos 2030 deverão encontrar um Brasil depredado, despedaçado. Será que não deveríamos pensar no Brasil de 2050? Já com uma população bastante envelhecida, com uma taxa de dependência parecida com as da Europa, e sem mais muitos recursos naturais para explorar… De que vão viver esses jovens?

Acho por isso importantíssimo que o processo de demarcação das terras indígenas, bem como sua gestão ambiental e territorial, seja discutida no âmbito do Conselho Nacional de Política Indigenista, que o Congresso insiste em ignorar. Existe hoje uma Comissão Nacional de Politica Indigenista (CNPI), onde se faz o diálogo com os representantes indígenas abertamente, onde se pactuam questões das políticas indigenistas. Porém, essa comissão já deveria ter se transformado em Conselho há algum tempo porque existe um projeto de lei para isso, que o Congresso ainda não aprovou.

O PL 227 torna possível instituir o interesse da União em caso de projetos econômicos importantes em terras indígenas, e, com isso, excepcionalizar todo um processo de licenciamento ambiental, consulta prévia livre e informada aos povos indígenas. Isso é inadmissível. O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT, que prevê e ordena a consulta livre, prévia e informada sobre qualquer empreendimento ou política publica ou privada que se irá executar com algum impacto sobre povos e comunidades indígenas. O Brasil ainda inovou, e esse governo federal reconheceu e está regulamentando isso, que além dos povos indígenas as comunidades tradicionais e povos quilombolas são alvo dessa convenção. Portanto, esse PL jogaria por água abaixo todo um esforço do governo federal em melhorar o diálogo com os povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais para execução das políticas públicas. Além da CNPI já mencionada anteriormente, o governo vem mantendo diálogos permanentes com povos de regiões onde a violência está cada vez maior, como no MS e sul da Bahia, para resolver as questões de terra.

Além disto, todo processo de licenciamento ambiental, no qual a Funai é órgão interveniente, vem sendo aos poucos aprimorado e equipes técnicas estão sendo formadas e vem melhorando cada vez mais esses estudos de impactos socioambientais em terras indígenas. Portanto, esse PL jogaria contra um esforço do próprio governo em aprimorar esses processos justamente que estão tentando abrir diálogos e melhorar conhecimentos entre esse modelo de desenvolvimento nosso e os povos indígenas. Não é possível que hoje em dia, em pleno século XXI, se mantenha a política dos espelhinhos e da pinga, ou seja, comprar os índios com espelhinhos modernos e com bebidas alcóolicas não funciona mais e deveria ser vergonhoso para aqueles que ainda praticam políticas de humilhação como essas.

CC: Como essas forças contrárias aos índios se tornaram tão poderosas e influentes?

MA: Essas forças se tornaram poderosas no Brasil justamente pela ignorância, pelo extremo desconhecimento sobre os povos indígenas. Quanto mais ignorância maior o preconceito. Nas escolas dos não indígenas ainda é ensinado que os indígenas HABITAVAM O BRASIL, VIVIAM EM ALDEIAS, E POSSUÍAM CHEFES….. tudo com verbos no passado, como se não existissem mais indígenas. Isso em escolas que ficam em municípios que possuem terras indígenas em seus perímetros.

Acredito que essa situação irá mudando devagar, políticas educacionais de aproximações e de diálogos vem sendo implementadas, e mais do que tudo, a entrada dos estudantes indígenas nas universidades vem mudando a maneira de ver dos estudantes e professores sobre esses povos. Acredito que os povos indígenas vão nos obrigar a melhorar essa nossa ignorância generalizada.

CC: O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil para melhorar essa situação?

MA: O que pode e deveria ser feito no Brasil é mais do que tudo melhorar a educação dos não indígenas. Melhorar o conhecimento sobre os povos indígenas, suas histórias recentes, seus conhecimentos tradicionais, suas maneiras de viver. Isso deve ser feito na escolas dos não indígenas, no ensino fundamental e médio. E todos os funcionários públicos, sejam municipais, estaduais ou federais que estejam em posições de trabalho relacionadas com políticas públicas direcionadas aos povos indígenas deveriam passar por uma formação básica que lhes dessem conhecimento sobre esses povos.

O Brasil deve muito de sua cultura, formação, muito de nossa língua brasileira a esses povos. Falamos uma língua prenhe de termos e sintaxes baseadas em línguas indígenas, todos nós sempre temos uma ‘avó indígena’, que em geral foi ‘agarrada à laço’. Todos nós – com exceção daqueles que migraram mais recentemente – temos no nosso sangue muito do DNA materno indígena. Devemos reconhecer, respeitar essa herança, nos orgulhar e dialogar com muito respeito com esses povos.

Incentivar as pesquisas COM OS POVOS INDIGENAS, não só sobre esses povos, mas em conjunto com eles, para entender e aprender com eles sobre maneiras de viver e sobre suas sofisticadas formas de ver e viver o mundo.

CC: Qual a esperança?

MA: Minhas esperanças são muitas. Uma delas é que os jovens indígenas estão colonizando as universidades, mostrando como se pode fazer trabalhos acadêmicos em formas e conteúdos diferentes, nos mostrando e ensinando as poéticas das línguas indígenas, as técnicas de agricultura que não são invasivas, as maneiras de proteger lavouras com plantas específicas. Existe atualmente uma valorização pela culinária indígena, da qual herdamos muitos dos alimentos que consumimos diariamente. Existe ainda mil possibilidades de pensarmos em colaborações com esses povos para propostas de desenvolvimentos regionais com produção brasileira de perfumes, óleos, remédios, e muitas outras coisas que ainda são desconhecidas por nós.

CC: Por que não conseguiu ir mais adiante enquanto esteve na presidência da Funai? Algum lamento, frustração?

MA: Quando assumi a presidência da Funai dei prioridade absoluta à questão dos Guarani Kaiowá no MS, não só por ser um povo com o qual convivi e ainda tento manter alguma proximidade e trabalho nessa região, mas por ser efetivamente o povo que tem a pior situação no Brasil. A realidade dos Guarani no MS é catastrófica e é uma vergonha para nós, brasileiros, além de ser vergonhoso para os governos estadual e federal. Nessa gestão pela primeira vez se implementou um plano de segurança, com a Força Nacional, visando a pacificação da região. Além disto, foi resolvida a questão da indenização dos fazendeiros por títulos de boa fé, obtidos do Estado ou da União. Porém, o governo estadual tem dificultado as negociações. E claro, a implementação da solução da indenização dos fazendeiros para resolver a questão da terra Guarani e Terena (também do MS), passa por negociações políticas. Negociações essas que fazem como que os povos indígenas sejam parte de um quadro político maior hoje em dia. Então, acho que avançamos sim, muito mais do que foi possível avançar em governos anteriores, porém, ainda não o suficiente para resolver de fato. Ou seja, as mulheres e crianças Guarani ainda escutam o pipocar dos tiros todas as noites, para assustar e intimidar essas comunidades. Os jovens e as lideranças ainda são assassinadas e precisam ficar escondidas e mantidas em segurança pelo programa de proteção aos defensores dos direitos humanos, pois são constantemente ameaçados.

Me pergunto quando teremos a decência de respeitar os povos indígenas e de ter a pauta socioambiental como prioridade, como na minha opinião deveria ser um pensamento estratégico para o futuro do Brasil.

CC: Por que você saiu da Funai? Foi mérito dos ruralistas, como clamavam na época?

MA: O mérito da minha saída? Se sim, pode dizer que não, infelizmente o mérito da minha saída foi mesmo minha saúde… Fiquei com um problema sério de saúde – uma doença auto-imune- que claro que pode ser debitada da conta deles ruralistas. Pois se não fossem eles muitos indígenas estariam vivos e eu estaria saudável! Só na minha gestão foram sete lideranças Guarani assassinadas por causa do conflito de terras! E isso sim me deixou doente! Como pode isso num governo democrático?

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