“Retiros e tiros no Araguaia: conflito em Luciara”

Casa de retireiro foi queimada em Luciara em conflito por terras da União. Foto: Associação dos Retireiros do Araguaia
Casa  de retiro de Ruben Sales, queimada em Luciara em conflito por terras da União. Foto: Associação dos Retireiros do Araguaia

Por Antonio João Castrillon Fernández*

Ensina-se nas escolas, divulga-se na imprensa, diz-se nas conversas, que Mato Grosso é o produto bem ou mal sucedido de um longo processo de colonização. Ouvimos e lemos que, no período mais recente (segunda metade do século XX para aos dias atuais), empresas, famílias, bancos e tantas outras instituições subiram ao médio norte do estado, migraram do sul para o norte, para trazer o progresso, que é medido por tamanho de área cultivada, sacos colhidos, bois criados, potência de tratores e número de linhas das plantadeiras e colhedeiras.

Essa história, por um lapso de memória, creio eu, pois ela não é mentirosa, assim dizem, esqueceu de dizer, de fazer ouvir, de escrever, de fazer ler, que este mesmo estado foi construído por outros processos de ocupação, que não ouso dizer colonização, pois não queria negar a história de outros, apenas fazer a sua própria. Ao longo do século XX, trabalhadores, famílias, grupos de famílias, comunidades, povos indígenas, por um caminho inverso, agora do norte para o sul, também migraram para Mato Grosso. Não trouxeram consigo bancos, escolas, instituições de pesquisa, não porque não queriam apenas por que não os tinham. Vieram ao encontro de novos territórios, de novas possibilidades, em que pudessem se estabelecer, produzir e garantir a vida de suas famílias. Chegaram primeiro. Estabeleceram-se. Produziram. Ensinaram. Formaram territórios. Criaram tradição – São Retireiros! São Povos Indígenas! São Quilombolas! São Ribeirinhos! São Extrativistas! São Camponeses! São Posseiros! São Tantos Outros que os nossos olhos, nossos ouvidos ainda não aprenderam a ver e ouvir.

No decorrer dos anos 30 a 60 do século passado, parece distante, mas não passa de algumas gerações, o Vale do Rio Araguaia foi o destino escolhido por muitas famílias para se estabelecer, depois de perderem suas terras em situação de conflito. Saíram do Maranhão, Goiás, Ceará e de outras regiões, em longas jornadas, que poderiam durar meses ou anos, para ocupar os gerais dos varjões do Araguaia. Ao longo do rio grupos de famílias estabeleceram colocações; criaram seus filhos; plantaram roças; manejaram gado, utilizando as pastagens nativas; formaram comunidades e tocaram suas vidas. Acompanhando o ciclo da natureza, no inverno, movimentavam o rebanho bovino de baixo para cima, escapando das águas que subiam; no verão, desciam para os varjões, nos RETIROS, para alimentar o gado nas áreas de pastagens nativas verdejadas pelo recuo das águas. Essas famílias, que se autodenominam de retireiros, criaram uma tradição, por conhecimento vivido, acumulado, transmitido, de uso, de manejo e de apropriação dos recursos naturais. Distante de qualquer egoísmo compartilham de forma comum o uso da terra – trata-se de terras comunais.

Em tempos mais recentes, quando das famílias de retireiros e de suas comunidades já estabelecidas, chegam também na região os “fazendeiros”, “empresários”, grileiros, em busca de oportunidades e negócios, muitos deles estimulados e incentivados pelos programas de colonização e ocupação da Amazônia. Uma Amazônia fictícia que o Estado teimava em dizer estar vazia e desocupada. Para as comunidades que tradicionalmente ocupam esses territórios, como os RETIREIROS, foram e está sendo períodos de intensos conflitos territoriais. Ocupar a terra não bastava e ainda não basta para definir o seu domínio. Os “títulos”, muitos deles viciados e falsificados, eram suficientes, à vista do Estado, para anular as territorialidades e tomar as terras tradicionalmente ocupadas pelos retiros. Perguntam pelas suas escrituras e eles respondem, “são os ossos dos nossos ancestrais”. Dizem que não

No dia 19 de setembro, equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia dirigiu para o município de Luciara com o objetivo de realizar Oficina de Mapas com a Associação dos Retireiros, que tem como presidente o Sr. Rubem Taverny Sales. No mesmo dia, por volta das nove horas da manhã, na estrada MT 100, que dá acesso ao município, um bloqueio coordenado, pelo que se houve dizer, pela associação dos produtores rurais de Luciara, impediu a entrada da equipe de pesquisadores no município e sob ameaças exigiu o seu retorno. Mas o pior estava por vir. Do dia 19 ao dia 22 de setembro a cidade ficou isolada, não é exagero dizer sitiada. Todas as entradas e saídas foram bloqueadas: estradas principal e secundárias, aeroporto e porto. Além disso, os comerciantes locais, solidários a tal manifestação, fecharam as portas dos seus estabelecimentos. Essa manifestação caracteriza-se como protesto de uma parte da população, estimulada especialmente por pessoas que possuem áreas ou documentos de áreas dentro do território tradicionalmente  ocupados pelos retireiros, contra a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), conduzida desde 2006 pelo Icmbio.

O isolamento da cidade combinado com a ausência do poder público para reestabelecer o estado de direito favoreceu o desencadeamento de uma série atos de violência contra lideranças dos retireiros e daqueles que apóiam a luta deste grupo, principalmente do Sr. Rubem Sales e sua família; do José Raimundo Ribeiro da Silva (Zecão), diácono da prelazia; e, do vereador Jossinei, retireiro. A violência que atinge as pessoas pelo constrangimento, intimidação e destruição, visa também enfraquecer e desestruturar a identidade coletiva do grupo, que está fortemente ligada ao processo de territorialização específica das áreas de retiro.

Na noite do dia 18 de setembro, a casa do retiro do Rubem foi incendiada. No dia 19 a estrada bloqueada, impedindo a entrada e saída de pessoas. As pessoas e instituições que apoiam a luta dos retireiros foram coagidos, sob ameaças, a retornarem. No dia 21, atearam fogo em pneus em frente à residência do Rubem. No dia 22, a casa de retiro do Domingos, pai de Jossiney, vereador e retireiro, foi incendiada. A Lidiane, irmã do Rubem, recebe ameaça de ser queimada viva em cima da sua moto. Na madrugada do dia 23, dois disparos de arma de fogo foram deflagrados na porta da casa José Raimundo Ribeiro, diácono da Prelazia de São Félix do Araguaia e apoiador das lutas dos retireiros. Sucessivas manifestações (passeatas) passaram em frente à residência da família do Sr. Rubens com o objetivo de intimidá-la e coagi-la. Somente no domingo à tarde o bloqueio foi suspenso. A despeito de todas as denúncias e comunicados apresentados ao Estado nenhuma providência foi tomada no sentido de reestabelecer o estado de direito e garantir a integridade física e moral das pessoas que estavam sendo ameaçadas. Na terça-feira (24 de setembro) a Polícia Federal, por demanda do Ministério Público Federal, realizou a prisão temporária de algumas pessoas suspeitas e manteve um efetivo de policiais no município. Atitude que não equaciona a situação de conflito; mesmo com esta proteção temporária as lideranças ainda temem pela própria vida.

Rubem com sua família, Lidiane, Jossiney, Zeca, seu Domingos e tantos outros que sofrem com a violência praticada  contra suas casas, suas vidas, suas histórias, suas ruas e seus territórios, não cometeram nenhum crime, apenas lutam pelos seus direitos, todos assegurados pela Constituição Federal, ratificados em acordos internacionais pelo governo brasileiro (Convenção 169), bem como estimulado por programas que visam garantir os direitos de povos e comunidades tradicionais (Decreto 6040 de 2007). Rubem é representante dos retireiros e povos do cerrado na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que tem por objetivo a efetivação do Decreto 6040. Essas  pessoas apenas lutam pelos seus direitos. Sentem medo? Não sei, mas não enfraquecem. Juntamente com outras  comunidades tradicionais e com os povos indígenas teimam em dizer que Mato Grosso é um estado de múltiplas  identidades coletivas, é um estado pluriétnico e desenhado por diferentes processos de territorializações específicas.

Cabe a nós reaprender a ver, a ouvir, a ensinar e a construir a nossa história. Podemos ser moderno, mas não somos  contemporâneos. Ainda teimamos em deixar na escuridão todos aqueles e tudo aquilo que as luzes esconderam.

*Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.

Veja também:

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Novas informações sobre as ameaças aos Retireiros do Araguaia, em Luciara, MT

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Nota da Equipe do Projeto Nova Cartografia Social – Núcleo MT: “Violência impede realização de Oficina de Mapas com os Retireiros do Araguaia”

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